MEDICINA E HUMANIDADES – Entrevista para a Revista DOC
1 - Em qual das duas áreas você se
formou primeiro: Medicina ou Filosofia? E por que a escolha por cada uma delas?
Você se considera um médico dedicado à Filosofia ou um filósofo que pratica
Medicina?
Formei-me em Medicina pela Universidade
Federal do Espírito Santo. Depois fui residente em Oftalmologia no Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde atuei
também como preceptor e onde fiz meu Doutorado em Ciências – Oftalmologia.
Não
tenho nenhum título formal em Filosofia, tampouco em Bioética. Sou filósofo no
sentido em que busco a sabedoria na qualidade de indivíduo, cristão, pai de
família e médico, buscando integrar conhecimento e consciência, conforme
definiu o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho. Não tenho título de bacharel
em filosofia, embora atue de forma acadêmica, escrevendo, editando e
pesquisando, também nessa área.
O
meu estudo no campo da filosofia e das humanidades em geral ocorreu e ainda
ocorre de forma independente há cerca de quinze anos. Digo independente no
sentido em que não busquei formalizar um título.
Sobre
ser médico, cristão ou filósofo, nos termos que entendo, não vejo uma escolha
ou predominância, vejo uma complementaridade. Minha fé constrói a forma pela
qual entendo a realidade, a filosofia determina junto com minha fé a postura
que adoto diante do real e a medicina é uma forma de aplicar o que sei e
acredito em prol dessa mesma realidade. Em minha profissão encontrei uma
compatibilidade de valores entre as perspectivas de minha vida.
A
medicina eu escolhi como profissão. A filosofia eu escolhi por obrigação com a
verdade e por identificação, motivado pela minha fé. É uma mistura antiga, essa
a da filosofia com a medicina, legada a nós desde a Antiguidade Clássica.
2 - Quando você decidiu explorar a
Filosofia na área médica? E como surgiu essa ideia?
Decidi
explorar a filosofia na área médica quando ingressei no programa de residência
médica. Diversas mudanças e novas responsabilidades em minha vida convidaram-me
a adotar uma postura mais reflexiva. Quanto mais eu estudava sobre humanidades
médicas, mais eu enxergava minha carência em conhecimentos humanísticos. O
interesse pelos temas mais variados e a aplicabilidade deles na arte médica, ao
lado da ciência, levaram-me a prosseguir no estudo e na pesquisa.
No
começo estudei filosofia de forma geral e, aos poucos, as conexões surgiram,
levando-me ao estudo da Filosofia da Medicina e da Bioética.
3 - Como se dá a relação entre
Medicina e Filosofia? O que há em comum e de divergente nessas duas áreas?
A
medicina, nas palavras de Edmund Pellegrino, é a mais científica das
humanidades e a mais humana das ciências. É uma arte que utiliza a ciência para
lidar com a realidade do paciente em busca do bem.
Um
médico exercerá sua arte nas três esferas do conhecimento conforme o
entendimento aristotélico: exercendo uma habilidade, dotado de conhecimento, em
um contexto ético específico. Essa integração entre ação, conhecimento e moralidade
é completamente compatível com a filosofia em sua formulação socrática.
A
filosofia e, particularmente, as humanidades médicas, ajudam a compreender
melhor o ser humano em toda a sua complexidade e a interferir de forma mais
positiva na vida alheia.
Tanto
a filosofia quanto a medicina ajudam a compreender o mundo em que vivemos e, em
especial, o homem. A grande diferença entre uma e outra é o alcance. A boa
filosofia é a base para todos os demais conhecimentos.
4 - Em seu blog, você fala sobre Humanidades
Médicas. Como explicar esse conceito? E por que é possível dizer que a
Filosofia é uma delas?
O conceito de Humanidades Médicas só pode ser
compreendido hoje em conjunto com a compreensão da divisão artificial entre
arte ou humanidades e ciência. Em oposição à ciência, que seria o conhecimento
experimental, matematizado e pretensamente mais objetivo, têm-se as
humanidades, que compõem todo aquele conhecimento empírico e subjetivo que lida
com o inédito e com a imprevisibilidade inerente a cada ser humano.
Hoje
fala-se muito a respeito da bioética em saúde. Mas para falar de bioética com
propriedade, é necessário compreender a Alta Cultura de uma civilização; seus
fundamentos humanísticos, incluindo literatura, história, arte e, na base de
tudo, a filosofia e a religião, que nos oferecem as ferramentas necessárias
para uma reflexão integradora de todos os campos do conhecimento.
5 - Ao longo dos anos, as transformações
sociais vêm provocando mudanças na Medicina, principalmente na relação
médico-paciente, e têm sido alvo de discussões de pesquisadores da Bioética.
Para você, quais mudanças, de fato, ocorreram e como as explica?
Mudanças ocorreram, ocorrem a cada dia, e
ocorrerão sempre.
Na
antiguidade o médico se confundia com o feiticeiro e com o sacerdote. Curava e
matava. Tudo começa a mudar com a medicina hipocrática, quando o médico se
separa da esfera religiosa propriamente dita e almeja uma arte mais técnica e
científica, conhecedora das causas e devotada ao reconhecimento da preciosidade
da vida humana.
Com
o advento do cristianismo, essa percepção do valor da vida humana torna-se
hegemônica e se difunde pela civilização ocidental.
Com
a medicina moderna, veio a concepção mecanicista do ser humano. Já na época
contemporânea, onde temos os grandes milagres da técnica médica, surgiram
problemas relacionados a falhas éticas em pesquisa e riscos de mutações
civilizacionais irresponsáveis. Uma outra modificação bem presente, ao ponto de
ser ignorada por muitos, é o conflito inerente de interesses quando o médico se
encontra dividido entre diversas demandas, vindas do Estado e de instituições
privadas que se colocam como intermediárias da relação médico-paciente,
quebrando o vínculo tradicional de confiança que existe entre médico e paciente
há milhares de anos.
Eu
entendo que mudanças são constantes, porque a realidade não é estática. Porém,
há um fundo de valores que permanecem, e que devem sempre serem atualizados e
reconhecidos nos mais diversos contextos, para que a medicina continue
promovendo o bem ao qual se propõe. Se o médico não atualizar de forma
constante esses valores ao longo dos contextos que se alteram, o elo de
confiança com o paciente será quebrado. Digo atualizar no sentido de tornar
ato, tornar algo presente. Os valores estão aí, sempre estiveram, é necessário
manifestá-los na relação médico-paciente.
6 - Como você caracterizaria a
Medicina Hipocrática? Acredita que seus legados ainda estejam presentes
atualmente?
A
medicina hipocrática é aquela arte comprometida com a busca da causa dos
problemas de saúde do ser humano por meio de uma explicação predominantemente
natural e com a cura ou o alívio em relação à doença e com o consolo, o conforto
e o respeito ao paciente.
Embora
existam algumas técnicas ancestrais de investigação clínica e até mesmo alguns
procedimentos terapêuticos que guardam grande semelhança com práticas
utilizadas ainda hoje, as explicações científicas mudaram completamente.
Contudo, há um elemento atemporal na antiquíssima medicina hipocrática que permanece
tão valioso, atual e distintivo a ponto de ter gerado respeito entre os
cristãos e muçulmanos que vieram séculos depois: o seu componente ético.
Vários
elementos da ética hipocrática ainda se encontram presentes na medicina: a
defesa da vida humana como pilar da benevolência e da não malevolência; o
sigilo entre o médico e seu paciente; o reconhecimento da fragilidade de quem
se encontra doente e a necessidade de proteger seu pudor e sua vulnerabilidade
e muitos outros elementos. Procuro deixar claro os pontos de contato entre as
diferentes culturas e épocas nas obras “A Tradição da Medicina” (já lançada, na
qual abordo o Juramento de Hipócrates e as virtude médicas) e “A Arte Médica”
(a ser lançada pela Editora Monergismo, na qual abordo a tradição hipocrática
de forma geral, em seu conteúdo ético).
Os
elementos hipocráticos ainda estão presentes, embora muitos menosprezem ou
difamem a antiga ética. Do passado veio também uma infeliz e dolorosa lição
sobre o que pode acontecer quando nos afastamos de tais ideais nobres, como
quando aconteceu com os horrendos exemplos da medicina comunista e da medicina
nazista, se é que podemos chamá-las pelo nome de medicina.
7 - Como o paternalismo médico pode
ser explicado pela Filosofia e qual sua opinião sobre o tema?
Há
várias explicações e significados possíveis para o termo paternalismo, o que
torna arriscado qualquer discussão sobre o tema. De regra geral, pode-se falar
acerca de um paternalismo forte e autoritário, ligado à figura daquele médico
que não considera a opinião do paciente e mal lhe escuta direito. Por outro
lado, há um paternalismo fraco, representado pela figura do médico benevolente
que age em prol do paciente extremamente vulnerável e destituído de autonomia
real. No primeiro caso, o paternalismo torna-se um ato imoral, destituído de
empatia e respeito; no segundo, pode ser até mesmo uma conduta obrigatória e
benevolente com o paciente e sua família. Inclusive, muitos pacientes exigem do
médico uma postura paternalista fraca.
Há
muitas nuances e diferentes formas de enxergar esta questão. Contudo, é
incontornável o fato de que a doença causa, na maioria das pessoas, uma extrema
fragilidade psíquica e um aumento da dependência em relação ao próximo. Na
figura do médico muitos enxergarão a imagem paternal. Essa condição inerente à
condição humana frágil e limitada somente reforça a enorme responsabilidade do
médico e a grande necessidade de formar adequadamente o seu caráter ao
trabalhar suas virtudes. Um dos grandes objetivos da relação terapêutica em
prol do bem do paciente, inclusive, é restituir autonomia ao paciente, um
elemento importante de sua integridade, como lembra Eric Cassel em sua obra de
grande importância para as Humanidades Médicas (The Nature of Suffering – A
Natureza do Sofrimento).
8 - Você é coordenador de Medicina da
UNESC. A grade do curso tem algum conceito filosófico embutido? E qual é a
importância de formar o aluno de Medicina com base nesses conceitos?
Há
conceitos ou aspectos filosóficos em tudo o que fazemos, mesmo que não sejam
percebidos. A educação médica não escapa desta observação. O próprio método de
aprendizagem ativa se ampara em muitos pressupostos filosóficos e pedagógicos.
Quanto
ao conteúdo na grade curricular, há algumas inserções que gradualmente foram estabelecidas,
conforme a compatibilidade e a necessidade do Projeto Pedagógico do Curso. De
forma geral, há um estímulo ao estudo de questões psicossociais, embora seja
menosprezado por escolas médicas mundo afora, mesmo que estejam formalmente
integrados às discussões. Há também módulos específicos que abordam elementos
da formação profissional do médico, da filosofia da medicina, da bioética, dos
direitos humanos e da cultura que são ministrados por mim com ajuda de colegas
médicos e professores do direito.
Além
da inserção curricular, é necessário criar um ambiente de pesquisa e promoção
das humanidades e da ética médica. Um caminho encontrado por nós foi criar o
Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina, com atividades de extensão, ensino
e pesquisa em Humanidades Médicas, levando trabalhos a congressos e publicando
livros e artigos. Por fim, exercendo um papel importantíssimo, surgiu a Liga de
Humanidades Médicas, de iniciativa discente. Diferentes atores e diferentes
processos ajudam a despertar a curiosidade e a enxergar a importância desses
estudos.
Sobre
a importância em se formar o médico em termos humanísticos, devo lembrar da
famosa citação de José de Letamendi y Manjarrés: O médico que só sabe medicina, nem medicina sabe. A medicina é uma
arte complexa, e a ciência claramente é insuficiente para preparar o futuro
profissional. As humanidades médicas buscarão o que há de melhor na cultura por
mais de dois mil anos acumulados para formar um indivíduo maduro e preparado
para a verdadeira ação em sociedade; justamente o que os antigos gregos
denominavam spoudaios e que hoje
muitos chamariam de cidadãos ou elementos maduros da sociedade.
Fala-se
muito em cidadania. De regra é apenas uma expressão vazia e sem conteúdo
concreto para a maioria das pessoas, essa tal de cidadania; tornou-se um chavão.
Um indivíduo preparado para compreender os profundos recessos da experiência
humana, própria e alheia, dotado das melhores ferramentas de comunicação e
empatia legadas por mais de dois mil anos de história e cultura, e preparado
com os instrumentos da técnica filosófica que providenciarão firmeza de caráter
e solidez à consciência, estará apto a assumir de forma responsável a
responsabilidade de ser médico e cidadão. Isso é cidadania de verdade.
9 - Quais são os principais ensinamentos
que a Filosofia pode fornecer ao médico? Você indicaria o estudo da área para
seus colegas de profissão?
A filosofia fornece autoconhecimento e
humildade. O seu aspecto geral e o amplo leque de reflexões também prepararão o
médico para a ação interdisciplinar e potencializarão a criatividade e a
inteligência, possibilitando conexões entre conhecimentos e experiências que,
de outra forma, permaneceriam dissociadas. A investigação séria, metódica e
profunda sobre a realidade auxiliará na compreensão da vida alheia e de formas
de promover a saúde e combater a doença e o sofrimento. O treino lógico e
dialético promoverá um raciocínio clínico e ético eficaz e complexo, capaz de
lidar com as grandes complexidades vividas dia após dia por médicos em seus
consultórios, hospitais e postos de saúde.
Sem
dúvida nenhuma, o estudo da filosofia de boa qualidade está indicado para
qualquer pessoa que queira viver uma vida mais plena e consciente. Não digo a
filosofia do bacharelado ou da licenciatura, que reúne um conteúdo específico
de conhecimentos, mas sim, a filosofia como forma de viver (que pode estar
associada à forma anterior), como prática de vida, conforme o projeto original
de Sócrates, Platão e Aristóteles, assim como enxergam alguns grandes filósofos
mais recentes como Olavo de Carvalho, Mário Ferreira dos Santos, Pierre Hadot,
Louis Lavelle e Eric Voegelin, somente para citar alguns.
10 - No dia a dia, como você concilia
o exercício da Filosofia e da Medicina? Fale um pouco de sua rotina, por favor.
A
busca constante pela sabedoria a todo momento implica um exame constante da
própria vida. Tal exame permite enxergar as mais diferentes situações de
diferentes perspectivas, reconhecendo melhor a complexidade da realidade em que
vivemos. Outra forma de conciliação entre medicina e filosofia é a crítica do
próprio conhecimento, e a constante busca pela coerência entre o conhecimento,
a crença e a ação.
Em
todos os meus estudos e práticas, busco sempre estabelecer pontes, conexões,
entre coisas aparentemente não relacionadas. Isso fornece a criatividade e a
agilidade de pensamento para buscar novidades e estar sempre alerta às mudanças
necessárias.
A
filosofia aplicada diretamente à medicina também ajuda na empatia compassiva,
na compreensão da realidade alheia e dos pontos de conexão desta conosco.
Quanto
à rotina de práticas e estudos, recebo muitas perguntas sobre como conciliar e
buscar tantos conhecimentos tão amplos e, aparentemente, diferentes.
Ser
cristão atuante, marido, pai de dois filhos pequenos, médico, cirurgião,
coordenador de curso, professor, pesquisador, editor e autor, entre outras
coisas e ler sempre entre cinquenta e oitenta livros por ano nos últimos dez
anos é um desafio e realmente gera um pouco de curiosidade.
A
fórmula que funcionou para mim inclui diversos pontos.
Faço
o que gosto e faço aquilo em que acredito. Nisto encontro motivação imensa para
melhorar sempre e nuca retroceder.
Há
técnicas para estudar. Procuro utilizá-las com as devidas adaptações. Consultas
às obras de Barbara Oakley e Pierluigi Piazzi e aos cursos sobre métodos de
estudo de Olavo de Carvalho fornecerão importantes dicas.
Sempre
estudo algo que desperta meu interesse ou que é extremamente necessário para
resolver um problema importante. Mesmo que sejam dez escassos minutos de
estudo, todo dia tenho que ler e absorver algo.
Mantenho
meu interesse por diversos assuntos ao mesmo tempo. Gosto de estudar
oftalmologia, medicina geral, epidemiologia, medicina baseada em evidências,
teologia, bioética, filosofia de forma geral, política, história e literatura.
Às vezes leio diversos livros aos poucos, todos ao mesmo tempo; às vezes concentro
minha atenção em uma leitura mais urgente. É incrível como as conexões vão
aparecendo aos poucos e como há, de fato, um crescimento exponencial das
relações culturais que passam a se mostrar nas mais diferentes áreas do saber.
Acordo
cedo, leio um pouco, vou trabalhar, almoço quase sempre em casa – um dos luxos
de se morar no interior -, trabalho novamente, retorno ao lar, estudo mais um
pouco e produzo um pouco. No fim de semana, a rotina obviamente muda, com mais
presença no lar junto à família e, no domingo, leituras mais centradas em
filosofia e teologia e a convivência na Igreja, elemento importantíssimo.
Essa
rotina funciona, entremeada com imprevistos e algumas viagens, graças à esposa
maravilhosa que tenho. Seria impossível fazer o que faço sem o suporte amoroso
e paciente da Joana. A família é protagonista para uma vida de estudos
saudável.
Além
disso, algumas dicas cotidianas: desligue a televisão, desista de novelas e
outras banalidades, leia diretamente nas fontes de confiança as notícias de que
você precisa para se manter atualizado (sem Fake News, não há tempo
a perder). Aproveite o seu tempo compreendendo o quão é precioso cada momento.
William
Osler, famoso médico anglófono, já preconizava leituras indispensáveis que
deveriam habitar a cabeceira de um bom médico ou estudante de medicina. A boa
leitura e a presença real junto ao paciente oferecem oportunidades
valiosíssimas para amadurecer e crescer intelectualmente e em termos pessoais.
11 - Qual é a área da Filosofia mais
chama sua atenção? E da Medicina?
Pode responder todas as áreas? Se tivesse que
decidir por uma, não conseguiria responder. Mas, da filosofia, estudo
principalmente a metafísica, a filosofia política, a filosofia moral e a
epistemologia. É difícil definir, pois a filosofia é essencialmente geral e
interdisciplinar.
Já
na medicina, gosto de oftalmologia - principalmente de órbita e
neuro-oftalmologia -, ética médica, história da medicina, semiologia, medicina
baseada em evidências e comunicação médica.
No
geral, tudo o que diz respeito a Deus e ao ser humano interessa muito a mim.
12 - Há alguma influência da
Filosofia na sua relação com os pacientes? É possível dizer que existe um
atendimento diferenciado?
Sim, há uma intensa influência de minha
filosofia e de minha fé na relação com os pacientes. Muito dependerá de como o
médico enxerga o mundo.
Um
atendimento que enxergo como diferenciado seria: a) Radicalmente realista e intuicionista, pois acredita
poder tocar a realidade do paciente, sem negar o grau de subjetividade e de
transcendência que às vezes nos escapa; b) Moral e empático, pois age em meio à relação
estabelecida entre pessoas com moralidade que estabelecem e demonstram valores
em suas atitudes; c) Comunicativo e compassivo, pois liga duas ou mais
perspectivas em prol de um bem comum ao perceber o sofrimento; d) Complexo e inédito, dentro de um contexto de
infinitude que permeia toda a realidade.
Tais
elementos derivam, de fato, de uma forma filosófica bem específica de enxergar
o mundo. Contudo, devo lembrar que há certas formas de pensamento e
perspectivas que também recebem o nome de filosofia que poderão acabar levando
aqueles que as subscrevem à loucura, ao delírio, ao solipsismo e à degeneração
maldosa.
13 - Você organizou em maio deste ano
a primeira edição do Seminário Capixaba de Filosofia (SECAFI). Com que objetivo
o evento foi criado? Quais foram os resultados?
O Seminário Capixaba de Filosofia foi um
evento multidisciplinar que envolveu médicos, advogados, historiadores,
cientistas políticos, cientistas sociais, escritores e filósofos, entre outros,
para analisar os frutos e principais características da obra filosófica do
Olavo de Carvalho, sem o rancor ideológico demonstrado por tantos elementos de
nossa sociedade que ousam falar do que não leram, ou, se leram, do que não
entenderam.
O
ambiente acadêmico das humanidades no Brasil transformou-se num lugar de hostilidade
e ódio à sincera busca pela verdade, no qual pessoas são rotuladas e
desprezadas por suas crenças políticas e o valor de suas obras é julgado pelo
alinhamento de seu autor. Queríamos um ambiente no qual tudo o que interessava
era o debate intelectual honesto, destituído dos preconceitos que embrutecem e
emburrecem o ensino superior em tantos locais do Brasil.
O
objetivo foi alcançado, eu acredito.
Abordamos
aspectos políticos, filosóficos, literários e históricos da obra de Olavo. Tais
elementos - gostem ou não aqueles que governam as cátedras dos estudos sociais
brasileiros, impregnados pelo gramscismo
- despertaram um diálogo realmente diversificado na sociedade brasileira, assim
como levaram centenas (ou milhares?) de pessoas às prateleiras de livros
filosóficos e clássicos da literatura. Foi graças ao persistente trabalho de um
pensador isolado que hoje o mercado editorial brasileiro está realmente
diversificado em termos políticos e filosóficos.
Em
sua primeira edição o evento atraiu pessoas de São Paulo, Paraná, Rio de
Janeiro, Minas Gerais e de diversos cantos do Espírito Santo. Foi um evento
puramente dedicado ao estudo filosófico, feito sem filiação partidária alguma e
com nenhum, repito, nenhum patrocínio que não fosse o dinheiro pessoal dos
organizadores, muito boa vontade e o dinheiro dos inscritos. Apesar disso, o
salão ficou lotado.
Para
um evento filosófico que não ofereceu créditos em cursos universitários ou
certificação nenhuma, totalmente dependente do interesse alheio e independente
do dinheiro de partidos políticos ou dos cofres públicos, foi um inesperado
sucesso. As palestras foram disponibilizadas e, em breve, há a expectativa de
lançarmos um livro com artigos especialmente selecionados.
14 - Quando a sua relação com a
Filosofia e a Medicina ultrapassou as fronteiras do consultório e da
universidade, chegando aos livros? Como surgiu a inspiração para escrever
Disbioética e A tradição da Medicina? Há previsão de lançar mais livros?
Após
dez anos de estudo, absorvendo cultura e meditando sobre a experiência
cotidiana, criei o Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina, no UNESC. No
segundo ano do seminário discutia com os alunos alguns artigos na área de
bioética quando nos deparamos com um inusitado trabalho defendendo o conceito
de abortamento pós-nascimento. Uma
resposta a este artigo transformou-se no livro “A Morte da Medicina”. A busca
pela cultura que sustenta a medicina ainda hoje, fornecendo elevados ideais
éticos e profissionais, acabou por gerar “A Tradição da Medicina”, no qual
abordo o Juramento de Hipócrates e a Ética Baseada em Virtudes. Por fim, os
desvios e perigos representados por determinados movimentos no campo da
bioética levaram-me a escrever o “Disbioética”, que ainda terá mais três
volumes, no mínimo.
O
volume dois da série Disbioética tratará sobre política e medicina. O terceiro
será intitulado “O Extermínio do Amanhã”, e tratará do aborto. Por fim, o
quarto volume abordará o tema da liberdade de consciência no campo da saúde.
Ainda
há previsão também de lançar um volume sobre os aspectos éticos gerais das
obras hipocráticas e suas interações com outras tradições culturais, como a da
cultura cristã no ocidente, e reflexões sobre o Código de Ética Médica.
Ainda
pretendo escrever sobre muitas outras questões, ressaltando também diversos
médicos e filósofos do passado e do presente.
15 - De olho no futuro, qual a sua
perspectiva para este universo onde Filosofia e Medicina caminham de mãos
dadas?
Vejo
um longo e árduo caminho para que se crie, ou se resgate, a Alta Cultura dentro
da medicina. Embora estejamos em meio a relativas trevas nos dias de hoje, não
temos a opção de desanimar. Nossos pacientes dependem da qualidade e da
dignidade profissional da medicina em muitas situações de fragilidade e sofrimento.
E
é justamente nas grandes crises que surge a filosofia. O momento atual de crise,
se bem trabalhado, pode muito bem apontar o surgimento de uma nova consciência
entre os médicos, pode apontar a necessidade de escutar a antiga frase de José
de Letamendi y Manjarrés, e fazer com que compreendamos com clareza a antiga
verdade de que o médico precisa saber muito mais do que somente a medicina para
ser um bom profissional.
Com
uma filosofia de qualidade, o médico refletirá melhor sobre os rumos tomados e
decidirá com maior consciência. Com filosofia de qualidade o médico poderá
voltar a participar de forma mais efetiva na sociedade, tanto culturalmente
quanto politicamente.
Se
não resgatarmos nossa identidade cultural e a aprimorarmos com base em uma sólida
formação de caráter, conhecimentos e técnicas, a nobre profissão médica em seus
mais elevados padrões estará com os dias contados.
Hélio Angotti Neto
21 de setembro de 2017
Colatina - ES