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quarta-feira, 11 de abril de 2018

A CULPA NOSSA DE CADA DIA - PARTE 1

A CULPA NOSSA DE CADA DIA - PARTE 1
Um estudo fenomenológico da crise no Brasil com base nos Esquemas de Diferenciações de Karl Jaspers a respeito da culpa.

Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim; e o meu vigor se tornou em sequidão de estio.
Salmos 32.3,4.



1. Caminhar sem enxergar
O Brasil cambaleia. Andamos – ou rastejamos? - por tempo demais rumo à sombra que margeia o abismo, confiando em guias cegos enquanto tapávamos nossos olhos e sorríamos indolentes. Em nossa boca o pão fácil, para nossos olhos as belas imagens naturais do gigante eternamente adormecido e o espetáculo artificial das mídias de massa, em nosso sangue a anestesia dos tóxicos lícitos e ilícitos, em nossos ouvidos o discurso vazio da demagogia e a narração do jogo de futebol de domingo, reminiscências de uma glória esportiva perdida e agora degenerada, tão artificial quanto aquelas lutas-livres de nossa infância.
Assistimos dia após dia aos julgamentos e peripécias de nossas elites política, econômica e judiciária; atores de um grande teatro que nos custou o futuro de atual geração de jovens. Muitos afirmam, como já declamou tantas vezes Manuel Bandeira: Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei, lá tenho a mulher que eu quero, na cama que escolherei. Vou-me embora pra Pasárgada. 
Arrumam, por aí, suas malas e partem com famílias e dinheiro para o norte das Américas ou para nossa antiga pátria mãe, Portugal. Os que ficam para trás, muitas vezes murmurando, lamentam a má sorte, a violência e a desgraça de cada dia que desfila na televisão junto a comerciais de estatais e doses de sofística.
 No discurso, por todos os lados, alguns padrões se repetem.
Os inflamados da esquerda, em cujo coraçãozinho revolucionário está sempre aquela velha sede de sangue, aquela antiga vontade gnóstica de olhar na cara de Deus erguendo o punho para dizer que sabe melhor qual deve ser o destino alheio enquanto expurga a criação dos indesejáveis, gritam cada vez mais alto. Basta um empurrão, e lá estão eles esquentando as grelhas para o holocausto enquanto afiam suas facas e municiam suas armas. É simplesmente doentio e maligno. Como o mais patético histérico, gritam horrorizados com a violência da direita, com o terror dos militares (agora já esclerosados) enquanto espancam pessoas na rua – somente quando estão em franca maioria, veja bem - e destroem patrimônios públicos e privados. 
Os moderados da esquerda, que receiam condenar seus radicais violentos e seus salvadores da pátria, símbolos de uma democracia de aparências em busca da próxima tirania, e que lamentam ao perceber que algo profundo e significativo rompeu na imagem da esquerda em nosso país, tentam ganhar tempo. Mas sabem que o abismo está a um ou dois passos. Sabem que serão os mencheviques de amanhã ou os culpados pela sangria de depois de amanhã. Fazem alianças, brincam de faz-de-conta, fingem ser um pouco, mas só um pouquinho, liberais ou até mesmo conservadores. 
Os de centro, uma boa desculpa para permanecer alienado, trancado fora do mundo tempestuoso da política e da cultura brasileira, continuam placidamente sem fazer nenhuma diferença, a não ser dar eco para os malignos. Permanecem partidários da temperatura morna, cujo destino será ser vomitado da vida pública se ainda houver futuro. Restolho podre de um velho conservadorismo bem brasileiro, o conservadorismo do conchavo, dos esquemas, dos arranjos onde todos saem gargalhando enquanto a maioria que não se enquadra neste “todos” permanece embaixo, pisoteada e explorada.
Os de direita, otimistas com um afamado ressurgimento – um tolkenianoretorno do rei para terras tupiniquins? -, crentes na mudança cultural que poderá restabelecer um rumo ao país como se este fosse uma tábula rasa e toda a maldade acumulada pudesse ser dissipada em menos de meio século, estudam e promovem cursos e planos para fazer alguma diferença, ou somente para cumprir o dever de casa, que tantos outros ignoraram. O risco é ignorar a proximidade do abismo, assim como os moderados da esquerda, e achar que com um grande salto sairão da escuridão ao observar uma luz no Norte, ao longe. No meio do caminho está ainda a selva escura, e podem acabar tropeçando na entrada daquele local onde um solene aviso sobre abandonar as esperanças repousa pregado. A serpente ainda se contorce, e o veneno ainda está na presa.
Outros da direita enxergam claramente o abismo, e buscam antigas soluções, tocam cornetas enferrujadas e clamam por uma botina militar. Assumem de peito aberto o estado incipiente ou até mesmo demente de nossa democracia enquanto pedem o punho de ferro de generais, marechais e tantos outros “ais”. Lá vamos nós pelo mesmo caminho outra vez, caindo no engodo da dialética do poder entre dois processos revolucionários: o positivismo autoritário militar e o revolucionarismo radical autoritário da esquerda. Não haveria uma solução que não nos reduzisse a crianças guiadas pela mão de um pai bravo? Quando deixaremos de ser Pérsia, com seus Reis-deuses e nos tornaremos Atenas, dispostos a debater na Ágora?
Muitos caminhos, uns de sangue, outros de perigo, talvez nenhum deles de luz. Veritas filia temporis. Mas antes de apontar rumos, algo de podre caminha conosco. Talvez nossos próprios ossos, que assim ficaram enquanto negávamos consciência a nossas culpas. Sem arrependimento não há novo nascimento, como disse O Mestre.
Há uma culpa a ser reconhecida, há uma culpa a pagar. De certa forma todos somos devedores, todos somos responsáveis pela sangria cultural, econômica e literal que se abateu sobre nosso país. Enquanto nos calarmos, a podridão continuará entranhada, continuará nos roendo por dentro, prometendo falsas esperanças, oferecendo vãs filosofias, exibindo futuros enganosos.
Busco no relato de Karl Jaspers os instrumentos para pensar minha culpa, nossa culpa. O filósofo alemão também pensou sua culpa e a culpa de seu povo, o alemão. 
Por meio de palestras proferidas em 1946, logo após o terror do nazismo e dos campos de concentração, Jaspers abordava um tema que feria profundamente o povo alemão. O mundo ouvia falar dos crimes impossíveis cometidos pelo nazismo, ouvia falar do Julgamento de Nuremberg e discutia como pagar a dívida moral alemã, como compensar os crimes de um passado terrível. 
É certo que um dos vencedores da Grande Guerra (que coisa pequena, chamar uma guerra como a que foi travada de grande) massacrou ainda mais; porém os vencedores têm a chance de reescrever a história. O julgamento dos comunistas chega tarde, mas os fatos não mudaram, e cada coisa vem a seu tempo. Agora é tempo de escrever sobre a culpa alemã e a culpa brasileira. Daqui a pouco volto na culpa comunista, entrelaçada com nosso problema atual; recuso-me a cair na amnésia histórica, como foi denunciada por Alain Besançon em sua Infelicidade do Século.[1]
Também no Brasil o radicalismo político e cultural desperta militantes raivosos que matam e espancam à luz do dia, quebrando sua devida cota de vidros e - quem sabe? - cristais. A Sturmabteilungde Hitler, os jovens violentos da revolução cultural de Mao Dze Dong e os bolcheviques, nem tão jovens assim, também quebraram sua cota de vidros, cristais, costelas e crânios. Jaspers avisou em sua breve obra sobre a culpa que:
Em todo lugar, pessoas têm características parecidas. Em todo lugar existem minorias violentas, criminosas, vitalmente ativas, que à primeira oportunidade tomam o poder e procedem de modo brutal.[2]
O Brasil carrega a maldição de ter uma parcela pequena, porém organizada, fanática e violenta, de militantes nascidos do fogo da teologia da libertação com a fúria messiânica do populismo tupiniquim marxistóide. Matam, picham, espancam, quebram, queimam, depredam, roubam e oprimem de fato enquanto gritam seu estatuto de eternas e pobres vítimas do sistema; sistema este que ocuparam por tanto tempo e que aprenderam a manobrar tão bem.
Agora é a hora - antes tarde do que nunca - de avaliar nossa culpa. Como chegamos aqui. 
É hora de avaliar como pagaremos por nossa culpa, como nos arrependeremos e como renasceremos. Se tal renascimento será para trevas profundas, no fundo do abismo o qual margeamos com passos cambaleantes de bêbado, ou se será renascimento para o verde gramado do lado de fora da sombra, só Deus sabe. Todavia, independente da claridade por onde caminhamos, teremos uma parcela personalíssima de responsabilidade e culpa a prestar contas, cedo ou tarde.
LEIA A PARTE 2

[1]No livro Infelicidade do Século, Besançon critica o excesso de atenção que o nazismo ganhou enquanto o comunismo passou incólume pelo julgamento moral que se seguiu à Segunda Guerra Mundial.
[2]JASPERS, Karl. A questão da culpa. A Alemanha e o nazismo. São Paulo: Editora todavia, 2018, p. 91.