O DESPREZO DO MÉDICO PELA FILOSOFIA
Por que tantos médicos desprezam a filosofia?
Estava em uma aula daquelas de final de semestre, quando a maioria dos alunos aprovados já partira para suas casas. À frente restava apenas a prova de recuperação, na qual haveria matéria de todo o semestre, incluindo um conteúdo de minha responsabilidade sobre a história da filosofia moral e suas repercussões sobre a Ética Médica e sobre a Bioética.
Foi nesse momento que fui interpelado por uma aluna que, com muita sinceridade, disse que não via tanta importância em saber o nome e as ideias daqueles filósofos esquisitos de séculos atrás (ela não usou o termo esquisito, mas que muitos desses filósofos são esquisitos, são).
Minha resposta foi a de que era mortalmente importante. Também respondi que o desconhecimento de nossa classe profissional acerca do mundo das ideias era uma das causas de nossa alienação e da destruição dos nossos valores mais profundos, destruição esta testemunhada dia após dia. Eis a expressão que eu utilizara: “não fomos jogados na latrina da sociedade à toa”.
De fato, somos todos governados pelas ideias de filósofos há muito enterrados; a vida dos vivos é regida pelas ideias dos mortos. A inconsciência dessa realidade condena muitos a permanecerem na ignorância e na vida destituída de profundas reflexões, tão necessárias em tempos de crises, por mais dolorosas e assustadoras que sejam.
Contudo, a consciência dessa necessidade de mergulhar nos conhecimentos humanísticos não é tão imediata assim.
Muitos médicos e alunos de medicina desprezam completamente o esforço filosófico porque consideram-no inútil ou irrelevante. Médicos costumam questionar o que a filosofia teria a oferecer a um empreendimento tão pragmático quanto a arte de curar e aliviar.
Outros acusam a filosofia, ou pelo menos a sua forma acadêmica tal qual disseminada no Brasil e em diversos países, de ser uma forma de ideologização da medicina ou de outras profissões, ao tentar transformar tudo e todos em meros peões de um jogo político.
Ainda há os que acusam a filosofia de ser um empreendimento para ociosos, atraindo pessoas que não têm coisas melhores para fazer e ocupam a mente com tais nulidades.
Por fim, há aqueles detentores de maior cultura histórica e que acusarão a filosofia de ter parido grandes crimes, horrores e distorções, mesmo dentro de profissões específicas como a medicina.
Cada ponto apresentado não deixa de ter um pouco de razão, e pretendo discutir todos. Pois, de cada um, pode-se tirar algo de bom, belo, justo e verdadeiro a respeito do empreendimento filosófico que sustenta toda a busca pelas humanidades médicas e fundamenta a discussão contemporânea em Bioética e Ética Médica.
A filosofia é inútil?
Talvez devêssemos começar definindo o que é filosofia e o que não é, ou quem é filósofo e quem não é, como diria Olavo de Carvalho. Contudo, prefiro deixar a definição de filosofia para o final, abordando antes diversas acusações contra a filosofia que nos ajudarão a delimitá-la melhor.
A primeira acusação é, sem dúvida, a de inutilidade. Muitos diriam que a filosofia não cura conjuntivite viral, tampouco opera um apêndice inflamado. Estão certos neste sentido. A filosofia é um empreendimento inútil, sob certa perspectiva. Ademais, essa acusação nem é tão recente assim; é uma das mais antigas afirmações, pelo menos ao analisar um de seus ramos principais, a metafísica.
Com a filosofia eu não prego um quadro na parede, construo uma casa ou posiciono um dreno de tórax no paciente grave. Porém, é junto com a filosofia que surgem as impressões artísticas e as vivências que inspirarão as obras de beleza que serão gravadas em quadros pendurados nos lares ou museus, ou inspirarão as memórias gravadas em livros que definirão e inspirarão os rumos de toda uma civilização.
A filosofia é uma perspectiva de vida ou uma forma de enxergar o mundo, neste último sentido.
É de concepções filosóficas sobre o que é uma boa vida em sociedade que surgem estilos arquitetônicos que ditarão como construir prédios, casas e monumentos.
É de concepções filosóficas que surgirão as formas pelas quais enxergamos o ser humano e compreendemos fenômenos que denominaremos saúde, doença, morte, vida ou cura.
A filosofia é irrelevante?
Entre os estudantes de medicina, é muito comum ouvir o questionamento quanto à relevância dos estudos filosóficos. Qual a importância da filosofia diante da óbvia necessidade e importância de se estudar anatomia humana?
Já o profissional inserido no mercado de trabalho encontra-se ocupado demais em ganhar o pão de cada dia para perder tempo com essa tal de filosofia.
Para quase todas as pessoas há uma concepção de que filosofar é complicar o óbvio, criar problemas onde não há, tornar complexo o que é simples. Diriam que é um tipo de verniz intelectual: bonito, mas não relevante.
É claro que o verniz tem sua relevância! Assim como a filosofia.
Uma boa prática filosófica qualificará as demais práticas humanas. É com filosofia de boa qualidade que se participa com eficiência e consciência dos meios culturais e políticos da sociedade. É com boa filosofia que se evita a transformação das coisas simples em coisas loucas, muitas vezes impulsionadas pela ideologia porca, chamada por alguns pelo mesmo nome do amor à sabedoria, mas tão distante na prática.
Um pensamento tosco pode levar o médico a renegar a vocação de sua profissão e abraçar a cultura da morte, por exemplo. A ausência de formação filosófica pode levar qualquer um à alienação política e cultural que, com o tempo, destruirá sua prática profissional enquanto implode toda a ordem social a seu redor. Sem os melhores instrumentos reflexivos, o pensamento e a ação serão superficiais e ineficazes, cabendo ao indivíduo o papel de marionete nas mãos dos piores e dos incompetentes.
A filosofia é extremamente relevante, eu diria, para todas as pessoas em todas as situações.
A medicina é ideologizada pela filosofia?
A filosofia seria um instrumento ideológico? Muitos ressentem do uso daquilo que chamam de filosofia ao observarem a ideologização tosca da medicina, cada vez mais invadida pelos discursos de guerra de classes, ódio social e radicalismos políticos, ao mesmo tempo em que se ameaça de morte a cosmovisão hipocrática e cristã que fundamentou dois mil anos de boa prática médica.
Temem a medicina fascista e socializada. E com razão!
Médicos já juraram seguir acima de tudo a Revolução (como na União Soviética) ou o Reich (na Alemanha nazista) e os resultados trágicos devem ser lembrados para sempre.
Nesse temor, enxergam o empreendimento filosófico como um perigoso cavalo de Tróia. Porém, se tomarmos filosofia pelo seu sentido socrático, só poderemos evitar a destruição ideológica das profissões ligadas à saúde justamente por meio de uma filosofia adequada, hoje mais necessária do que nunca para combater os sofismas que ameaçam a inteligência humana e seu acesso à realidade.
A filosofia desenvolverá a capacidade de enxergar através da cortina de fumaça que nos cerca: jogos de palavras e toscas manipulações sedativas. Com a boa filosofia pode-se discernir com qualidade e competência o melhor caminho a seguir e os piores erros a evitar.
É uma filosofia política pujante que permitirá, por exemplo, ao médico e aos demais profissionais da saúde, realizarem seu verdadeiro potencial benéfico para a sociedade.
A filosofia é para aqueles que não têm o que fazer?
É verdade que é necessário um pouco de tempo ocioso para que haja filosofia. Quem não consegue tempo suficiente para uma rotina de estudos, meditação reflexiva, prática e expressão da filosofia não terá sucesso em filosofar.
Muitos usam isso como desculpa para não o fazer. Erram, pois, de regra, gastam enormes quantidades de tempo naquelas baboseiras que somente uma sociedade do espetáculo como a nossa consegue oferecer. Quer tempo para estudar? Desligue a televisão e busque informações somente em veículos confiáveis; é um bom começo. Restrinja o tempo nas redes sociais digitais. Leia. Medite. Escreva. E leia um pouco mais.
Pessoalmente, creio que a filosofia é justamente para aquelas pessoas extremamente ocupadas. Pessoas para as quais cada minuto é precioso e demanda o máximo de atenção, esforço e carinho pelo que se faz.
Os momentos de ócio dedicados ao pensamento elevado da filosofia devem ser entremeados pela ação prática e bem pensada no mundo, onde as lições obtidas na profunda reflexão solitária serão exercitadas e gerarão os frutos que comprovarão o acerto nos estudos e reforçarão o caráter do filósofo.
De regra, nosso problema não é falta de tempo ocioso. É como ocupamos nossa excessiva ociosidade contemporânea, é como hierarquizamos nossas atividades cotidianas.
A Filosofia é fonte de problemas.
Eis outra verdade parcial. Há filosofias capazes de destruir a vida humana ou um empreendimento profissional como a medicina.
Já falei um pouco do potencial destrutivo da filosofia ruim ao tratar de ideologia, mas algumas observações ainda cabem.
Uma boa medicina, analisada por meio de uma filosofia adequada, demandará uma cosmovisão bem específica, o que tem sido um dos principais objetivos dos diversos textos sobre a filosofia da medicina que tenho produzido: o esclarecimento da cosmovisão hipocrática e cristã da medicina para que o imaginário profissional seja reconstruído das cinzas que restaram do desmanche civilizacional contemporâneo de nossa cultura.
A medicina precisa de uma boa filosofia para sobreviver. Temos sempre a tendência de hipervalorizar nossos problemas contemporâneos, mas creio que o último século foi realmente o mais perigoso para a cosmovisão médica hipocrática e cristã, no qual visões perigosas atacaram de forma mais pertinaz e de diferentes perspectivas.
Hoje há filosofias comunitaristas, socialistas, egoístas, liberais e transumanistas contra a velha e mal falada visão hipocrática. Cada forma de ver o mundo oferece diferentes perspectivas sobre quem é o ser humano e, consequentemente, sobre qual é o papel da medicina. Nesse oceano de impropérios que nos cerca, uma boa filosofia é essencial para manter o leme rumo ao caminho certo. A filosofia pode ser a fonte de problemas ou a ferramenta ideal para os combater.
O contato com a realidade
Boa parte da filosofia moderna nega ao homem a capacidade de conhecer a realidade como ela é. O indivíduo teria acesso, segundo dita o mainstream da filosofa moderna, somente às suas impressões subjetivas. Por mais elegante que seja anunciar esse ceticismo gnosiológico nos tempos atuais, deve ficar claro que afirmar a incapacidade humana de conhecer a verdade é uma forma grosseira e simplória de pensamento. Também deve ficar claro que esse ceticismo subjetivista é incompatível com a boa medicina.
Imagine um médico que realmente fosse cético e subjetivista nesse sentido filosófico moderno ao estilo de Kant. Agora imagine esse médico auscultando uma bulha cardíaca. Ele estaria percebendo uma sensação própria que não quer realmente dizer que escuta essa bulha cardíaca em si. É um tipo de fenômeno que misteriosamente e inexplicavelmente está ligado a outra subjetividade – a do paciente – e que gera compreensões subjetivas capazes de gerar ações que auxiliarão o paciente. Ou pelo menos o médico em sua subjetividade acha que o diagnóstico de suas próprias sensações alcançou e beneficiou o paciente por meio de sabe-se lá qual providência que aprioristicamente alinhou as sensações subjetivas interpessoais.
É muito solipsismo e muita volta inútil para evitar cair na tão mal falada tese do realismo ingênuo (uma forma de espantalho, no fim das contas).
Mas como explicar nossa experiência de forma coerente com nosso conhecimento e nossa prática? Como fugir desse idealismo desvairado e completamente incoerente com a boa e cotidiana prática da medicina?
Defendo que podemos sim ter contato com a realidade e, inclusive, podemos tecer afirmações verdadeiras sobre a realidade em que vivemos. Um médico que realmente defenda postulados ceticistas exagerados ou niilistas não está filosoficamente capacitado para exercer uma boa prática profissional. Todavia, a qual cosmovisão um bom médico deveria aderir?
Afirmo que não há como negar o realismo, não há como fugir de fato da realidade e de nossa capacidade de conhecê-la. Qualquer negação plena dessa realidade ou de nossa capacidade é pura contradição pomposa, é pura pose pseudointelectual. Sobre nossa capacidade irrecusável de apreender a realidade e enunciar símbolos verbais ou escritos acerca dela escreverei ao tratar da Filosofia Concreta, dos Valores, da Ética e da antropologia metafisicamente, ontologicamente e epistemologicamente necessária.[1]
Todavia, antes de prosseguir, é hora de oferecer uma definição para a filosofia, que copio de meu professor, o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho: Filosofia é a busca pela unidade da consciência na unidade do conhecimento e da unidade do conhecimento na unidade de consciência. Acima de tudo, Filosofia é um método de vida e de contemplação amorosa da realidade, uma forma de se colocar na existência dotado de uma consciência desperta, imerso na inteligência do Logos. É realmente buscar a grande coerência da vida, a razão que anima a realidade e, consequentemente, nos anima. Uma vida destituída de verdadeira filosofia – não confunda com erudição filosófica - é uma vida que se animalizou e que se reduziu, que aceitou a condição de uma existência parcial e se negou a tocar na esfera do sentido transcendente.
A resposta definitiva para o questionamento sobre ser a filosofia irrelevante para a medicina é um estrondoso e necessário não. A filosofia de má qualidade pode até ser deletéria para a medicina, mas irrelevante? Jamais. Já a boa filosofia, por outro lado, não somente é relevante, mas essencial para que não se perca o coração do que se reconhece como boa medicina há mais de dois mil anos, nos mais diversificados contextos da sociedade humana.
[1]O artigo sobre o uso da Filosofia Concreta de Mário Ferreira dos Santos contra o ceticismo gnosiológico moderno e contemporâneo é fruto de uma apresentação do II Seminário Capixaba de Filosofia (SECAFI), que ocorrerá em Vitória, no Espírito Santo, no dia 21 de julho de 2018, e que será publicado em breve.