sexta-feira, 2 de junho de 2023

NIILISMO MÉDICO

 O cenário científico na medicina e na indústria farmacêutica está tão catastrófico em termos morais e metodológicos que tem elicitado alguns comentários nada elogiosos. John Ioannidis, um dos grandes epidemiologistas da atualidade, publicou um artigo cujo título é: “Por que a maior parte dos achados de pesquisa são falsos.”[1]

John Ioannidis

 

Horton, editor científico de um dos grandes periódicos, afirma que a ciência médica contemporânea está “caminhando rumo às trevas”, “afligida por estudos com amostraas pequenas (baixo poder estatístico), pequenos efeitos, análises exploratórias inválidas e conflitos de interesse flagrantes, junto com uma obsessão pela busca de tendências da moda de importância questionável.”[2]

 

Jacob Stegenga

Jacob Stegenga, professor do Departamento de História e da Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge que se dedica ao estudo da medicina, aborda a ideia do niilismo médico em sua obra Medical Nihilism[3], que compõe uma interessante trilogia não intencional sobre falcatruas da ciência médica junto com as obras de Peter Gøtzsche e Jon Jureidini e Leemon McHenry.

Segundo Stegenga, ao longo da história observa-se três tendências que marcam o niilismo médico: o fato de muitas doenças não terem tratamento, a inefetividade de muitos tratamentos médicos e a influência corruptora do dinheiro na medicina.

 

Niilismo Médico, de Stegenga

 

Stegenga mostra como, por causa do interesse da indústria e de médicos e pesquisadores corrompidos, a metodologia científica na saúde é sutilmente deturpada para comprovar o improvável. Nem mesmo o padrão máximo de qualidade das evidências científicas, que são as meta-análises, escapa do olhar aguçado de Stegenga, que denuncia elementos de subjetividade incontornáveis na execução desses estudos e, portanto, sujeitos a segundas intenções e conflitos de interesse.

O autor também aborda como distorções podem ocorrer ao medir efetividade de um medicamento, verificar riscos à segurança do paciente e publicar artigos manipulados e enviesados.

Não há método científico que sobreviva ao fenômeno demasiadamente humano da corrupção, e quando essa corrupção atinge a saúde e a ciência, obtém-se a terrível mistura de autoridade científica e medo do adoecimento, gerando um enorme poder coercitivo.

A ênfase nos desvios da pesquisa científica em saúde pode ser vista por muitos como um traço pessimista, que nega os grandes avanços e benefícios da medicina ao longo dos séculos e, principalmente, nos últimos dois séculos com o avanço da ciência e da técnica. Nenhum desses autores já citados assume uma postura pessimista de fato, pois todos reconhecem a evolução da medicina.  Contudo, não se pode negar que o realismo necessário para lidar com o sofrimento alheio e com a realidade dos fatos requer uma visão bem atenta para os crimes da indústria farmacêutica, dos médicos e demais profissionais da saúde que venderam suas almas no altar da ganância e da crueldade.

A percepção das falhas do ser humano e de como elas podem destruir a vocação médica nos acompanha desde os primórdios.

Não é por acaso que um dos apóstolos do próprio Cristo lamenta profundamente o estado da humanidade ao exclamar que 

“Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está em seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos.”[4]

E mesmo séculos antes de Cristo, os médicos hipocráticos já se preocupavam com a ganância demasiada que poderia destruir o caráter humanístico da profissão médica, como se pode deduzir da leitura de um dos trechos da obra Preceitos:

“(...) se começar por tratar dos honorários você dará a impressão a quem está sofrendo de que, se não houver acordo, irá embora e o abandonará, ou que o negligenciará e não oferecerá algo para a situação presente. Não é preciso, portanto, cuidar da fixação dos honorários, pois consideramos sem utilidade tal preocupação para quem está atormentado, principalmente no caso de doença aguda. Ela não estimula o bom médico a buscar o que é vantajoso: adquiri mais reputação. É melhor, portanto, censurar quem está salvo do que extorquir dinheiro dos que estão em perigo de morte.”[5]

É curioso como até os dias de hoje, é boa prática médica o atendimento emergencial imediato, independente do estado financeiro do paciente.

Além da crítica à ganância e à corrupção maldosa de muitos homens, não era rara a crítica da distorção da profissão médica em específico, como se observa na obra Libre de Contemplació de Raimundo Lúlio, no século XIII:

“Vemos que os médicos do corpo, Senhor, andam bem vestidos e bem montados em cavalos, e juntam riquezas e tesouros graças aos grandes enganos que causam a seus doentes, os quais enganam de todas as maneiras, pois se gabam de conhecer a doença que não conhecem. Além disso, eles prolongam, Senhor, as doenças nos doentes, para que tenham mais ganhos. E eles dão aos doentes, Senhor, xaropes, letovaris e outras coisas, para que tenham parte do lucro do que fazem os especialistas nas coisas que vendem aos doentes.”[6]

Portanto, não há que se falar em um pessimismo com o nosso tempo, mas sim, de um realismo responsável e prudente com o caráter do ser humano que, de posse de instrumentos científicos e técnicos de grande impacto, pode causar enormes danos à vida caso se entregue à corrupção e à destruição de sua consciência. Uma indústria farmacêutica corrompida foi somente o instrumento que tornou possível a manifestação da maldade que já habitava o coração apodrecido de muitos falsos médicos, pois quem trabalha contra a vida humana, jamais poderá ser realmente chamado de médico por alguém em sã consciência.

Diante desse realismo responsável, cabe ao estudante e ao profissional da área da saúde se preparar para de fato analisar a ciência de forma crítica, e jamais ler a literatura preparada por laboratórios do riquíssimo mercado farmacêutico com olhos ingênuos e com a mente despreparada.

O livro de Jacob Stegenga é uma dessas obras capazes de tirar escamas de nossos olhos e nos fazer a vida como ela é, por meio de uma saudável suspeição científica e filosófica.

 

PREPARANDO O TERRENO

Como se preparar para enfrentar um ambiente tão enganoso e repleto de conflitos de interesse?

Do ponto de vista intelectual eu sugiro a leitura e o estudo de livros que podem ser considerados introdutórios, metodológicos, filosóficos e, por fim, críticos.

Os livros introdutórios têm o objetivo de apresentar ao leitor os conceitos mais básicos da Medicina Baseada em Evidências e, normalmente, são abordados no nível de graduação.

Epidemiologia Clínica do Fletcher, que está em sua sexta edição, pode ser considerado o livro básico para graduações em saúde, oferecendo ao leitor um arcabouço básico de conhecimentos e conceitos. Seus capítulos são centrados em questões clínicas como Diagnóstico, Prevenção, Tratamento e Prognóstico, além de assuntos ligados à reflexão sobre Causalidade, Resumo de Evidências e Gestão da Informação. Nos capítulos, os diversos estudos possíveis na saúde são abordados junto aos conceitos que os amparam.

Delineando a Pesquisa Clínica do Hulley, estrutura-se sobre o desenho de estudo propriamente dito, com capítulos sobre coorte, ensaios clínicos randomizados e testes (Diagnóstico) entre outros, além de uma seção inicial sobre instrumentos básicos e uma terceira seção sobre implementação dos estudos incluindo questões éticas, financiamento etc.

Como Ler Artigos Científicos de Trisha Greenhalg é um aintrodução ao assunto voltado para a leitura e compreensão dos artigos, oferecendo também alguns conceitos básicos.

Além da leitura desses livros básicos, algumas ações podem ajudar a consolidar os conhecimentos e fundamentá-los para voos mais altos.

Fazer um curso básico de bioestatística, focado nos conceitos essenciais, sem a necessidade de realizar cálculos avançados, mas abordando os cálculos que permitem a compreensão da lógica por trás dos números, é um excelente começo. Hoje, com tantas opções na internet e em diversas pós-graduações, não será difícil encontrar conteúdo.

Todavia, talvez o ponto mais importante seja participar regularmente de um clube de revista para discussão a fundo e crítica de artigos científicos. Precisa colocar a “mão na massa” e praticar a crítica, colocando em ação todas as ferramentas e conceitos estudados ao lado de pesquisadores e médicos mais experientes e, acima de tudo, não comprometidos com algum esquema de corrupção científica, o que talvez seja um dos elementos mais difíceis de determinar no começo da caminhada de estudos.

Oportunidades de fazê-lo surgirão ao longo da trajetória de estudos em escolas médicas, cursos de Mestrado e Doutorado e Programas de Residência Médica com bons professores e preceptores. 

Se esses passos iniciais forem bem executados, o próximo passo poderá ser dado com relativa facilidade: continuar aprofundando os estudos e as práticas ao longo do tempo ao buscar leituras sobre metodologia, filosofia da medicina e crítica científica, que se complementarão formando um amplo cenário intelectual e enriquecendo o imaginário.

Os livros metodológicos têm o objetivo de aprofundar os conhecimentos obtidos nos livros e nas práticas mais básicas. Devem ser estudados em paralelo com os livros filosóficos e de crítica, ao longo de alguns anos. Alguns dos muitos livros metodológicos incluem: The Cochrane Handbook for Systematic Reviews; Evidence-Based Healthcare and Public Health, do Muir Gray; Diretrizes para Utilização da Literatura Médica, do Journal of the American Medical Association; Introdução à Pesquisa Qualitativa, do Fink e Compreendendo a Pesquisa Clínica, de Lopes e Harrington. Outras leituras importantes incluem artigos diversos sobre Medicina Baseada em Evidências publicados em séries nos periódicos científicos mais renomados (embora não livres de certos conflitos de interesse), como um artigo relativamente recente abordando o uso de estudos observacionais em revisões sistemáticas na falta de evidências adequadas obtidas por meio de Ensaios Clínicos Randomizados.

Os livros filosóficos têm o objetivo de fundamentar a aplicação prática das evidências e enriquecer o panorama ético da profissão, indispensável para que o esforço científico não vire um pesadelo imoral de venda de evidências enviesadas. Alguns dos livros têm o objetivo de causar uma reflexão séria sobre o que é realmente a ciência, e até onde ela chega, e claramente desfazem certas expectativas religiosas mal direcionadas para a ciência. Alguns que eu indico incluem: A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn; A Lógica da Pesquisa Científica, de Karl Popper; Contra o Método, de Paul Feyerabend; Filosofia das Ciências, de Pascal Nouvel; O que é Ciência, Afinal?, de Allan Chalmers; O Princípio Responsabilidade, de Hans Jonas; Diagnosis: Interpreting the Shadows, de Pat Croskerry; Care & Cure, de Jacob Stegenga e as obras de Edmund Pellegrino: Para o Bem do Paciente, The Virtues of Medical Practice, The Christian Virtues in Medical Practice e The Philosophy of Medicine Reborn.

Por fim, as obras de crítica científica, cultural e metodológica aguçam a capacidade analítica e tiram algumas escamas dos olhos. Algumas sugestões incluem: Medicamentos Mortais e Crime Organizado, de Peter Gøtzsche; The Illusion of Evidence-Based Medicine, de Jon Jureidini e Leemon McHenry; Anatomia de uma Epidemia, de Robert Whitaker; Medical Nihilism, de Jacob Stegenga; Common Mistakes in Meta-Analysis and How to Avoid Them, de Borenstein; e Falso Positivo, de Theodore Dalrymple.

Pessoalmente, comecei a escrever livros em algumas áreas após vários anos estudando Filosofia e Bioética, além de Medicina Baseada em Evidências e Medicina. O que provocou a necessidade de começar a escrever e publicar foi um artigo de 2012 sobre o que os autores chamaram de “Abortamento Pós-Nascimento”, que nada mais é do que assassinato infantil com palavras elegantes. Era de uma sutileza e de um horror tão grandes que eu me senti compelido a responder. Foi o meu primeiro livro: A Morte da Medicina, que tem uma ênfase de crítica cultural. Outros livros de crítica cultural que publiquei incluem Ética & COVID: Ciência, Bioética e Liberdade em Tempos de Pandemia; Disbioética Volume I: Reflexões sobre uma estranha ética; Disbioética Volume II: Novas Reflexões sobre uma estranha ética; e Disbioética Volume III: O Extermínio do Amanhã.

Mas é preciso ir além do trabalho negativo da crítica. Outra vertente do que publiquei trata justamente do resgate cultural, e inclui os livros A Tradição da Medicina e A Arte Médica: De Hipócrates a Cristo.

Por fim, escrevi um livro que apresenta minha perspectiva inicial sobre Bioética e Filosofia da Medicina, Bioética: Vida, Valor e Verdade.

Se o ambiente editorial está repleto de erros, o mínimo que temos que fazer é apontar o que ainda guarda certa qualidade e tentarmos todos fazer a nossa parte, mudando esse cenário.

Deixo o convite para que leiam, compreendam melhor a ciência médica e apliquem o conhecimento na prática, pois, se adquirimos o conhecimento na solidão do estudo, é no convívio e na batalha que enfrentaremos no mundo que nosso caráter é forjado. E Deus sabe que, diante da derrocada que se observa, precisamos de muitas pessoas com um caráter forte como poucas vezes se viu em nosso país.

 




[1] John J. Ioannidis. Why most published research findings are false. PLoS Med, 2005; 2(8): e124.

[2] R. Horton. Offline: what is medicine’s 5 sigma? The Lancet. 2015; 385: 1380.

[3] Jacob Stegenga. Medical Nihilism. Oxford: Oxford University Press, 2020.

[4] Romanos 3.9-18.

[5] Wilson A. Ribeiro Jr. Preceitos. In: Henrique F. Cairus; Wilson A. Ribeiro Jr. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, p. 212.

[6] Ramon Llull. Libre de Contemplació. In: Obres Essencials II. Barcelona: Editorial Selecta: 1960, p. 347.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O crime perdura porque compensa

Como é que em tempos de ciência avançada – ou pelo menos assim os pesquisadores que gastam suas vidas pesquisando e recebendo polpudas verbas gostam de anunciar e pensar, sempre colocando-se como protagonistas desse mesmo tempo iluminado – tantas falcatruas e distorções podem prosperar?

Temos informação, temos comunicação, temos métodos estatísticos, temos teorias e temos tecnologias fantásticas! O ideal de controle da natureza pela ciência moderna parece cada dia mais real e mais concreto, difundido e efetivo.

O que nem todos realmente percebem – ou se percebem, calam-se pelo receio de atrair descrença, pois a realidade é grotesca e esdrúxula demais – é que o mesmo poder da técnica e da ciência que controla a natureza também controla o ser humano, diretamente por meios coercivos ou indiretamente por meio da influência ideológica e econômica.

Os avançados instrumentos da técnica e da ciência são exatamente isso que propõem ser: instrumentos. Um instrumento altamente efetivo em mãos cruéis será altamente efetivo em causar o mal, e os maus jamais receiam em aumentar o próprio poder e se impor descaradamente sobre o próximo.

As técnicas utilizadas para mentir utilizando estatísticas e metodologias científicas na saúde são refinadas e muito bem elaboradas. Exigem intelectos e preparo avançados. Ouso dizer que a maioria dos médicos não está preparada para analisar criticamente e profundamente um artigo científico, mas que a totalidade ou quase totalidade daqueles médicos que trabalha para a indústria farmacêutica é extremamente bem preparada.

E como alerta o próprio Cristo, se nossos olhos forem trevas, que grandes trevas serão. O preparo científico e técnico utilizado para ocultar, mentir e distorcer gera um produto quase que impermeável à crítica da maioria dos médicos, por mais bem-intencionados que sejam.

O livro de Peter Gøtzsche traz uma série de denúncias e bastidores do jogo tantas vezes imundo da indústria farmacêutica, mas não é o único. Na verdade, há todo um mercado literário muito técnico e específico que explora as falcatruas da ciência. Um livro mais recente que enriquece a leitura de Gøtzsche foi escrito por Jon Jureidini e Leemon McHenry, e se chama “A Ilusão da Medicina Baseada em Evidências: expondo a crise de credibilidade na pesquisa clínica”. 

Jureidini é médico professor universitário de psiquiatria e pediatria na Austrália e trabalha com pesquisa. McHenry é um filósofo americano. Juntos eles ousam remexer no monstro sagrado da medicina contemporânea: a medicina baseada em evidências.

Prof. Dr. Jon Jureidini

Somos lembrados de fatos perturbadores. Medicamentos são lançados no mercado ainda com muitas dúvidas e, no fim das contas, todos nos tornamos cobaias de fase IV da pesquisa clínica, onde é feita a vigilância farmacêutica pós-comercialização. Não são tão raros os exemplos de medicamentos aprovados e vendidos aos milhões que geraram mortes e deformidades e tiveram que ser removidos do mercado ou ter suas indicações clínicas completamente revistas.

As próprias narrativas da sociedade são compradas e manipuladas, pois representantes de pacientes são muito bem pagos para explicar o sofrimento dos pacientes, pressionando justamente a prescrição deste ou daquele medicamento “milagroso”, e médicos especialistas tratados como referências de determinados assuntos – ou doenças – introduzem novos tratamentos em eventos patrocinados pela indústria que reúnem milhares de médicos ávidos por notícias; são os famosos Keynote Speakers da indústria.

Surfando na crista de uma onda de credibilidade conquistada por grandes descobertas que revolucionaram a saúde mundial, como o antibiótico, a imunização, os transplantes auxiliados pelo uso de imunossupressores e as cirurgias minimamente invasivas, hoje a indústria tem pleno sucesso em lucrar, mas muitas vezes falha completamente em gerar valor para a humanidade.[1]

Assim como ocorre no livro de Gøtzsche, Jureidini e McHenry trazem diversos exemplos de medicamentos que geraram grandes multas, mas lucros estrondosos. Paroxetina, por exemplo, da Glaxo Smith Kline já levou a uma multa de 3 bilhões de dólares por falhar em demonstrar eficácia e gerar sérias dúvidas acerca da segurança de seu uso, mas foi bem vendida graças em parte a um artigo encomendado pela própria indústria e escrito por um ghostwriter, um escritor fantasma especializado em redigir artigos científicos de forma agradável aos interesses da farmacêutica. É claro que o artigo é oficialmente assinado por um daqueles médicos especialistas famosos que dá palestras em congressos e recebe uma enormidade de incentivos, leia-se dinheiro, por sua “consultoria”.[2]

Técnicas semelhantes, incluindo uso de redatores fantasmas, dados distorcidos, interpretações estatísticas errôneas, ocultação de dados incluindo efeitos adversos graves e mortes e seleção indevida de desfechos clínicos, foram utilizadas em outras situações, segundo os autores, incluindo medicamentos como citalopram e escitalopram para depressão em adolescentes, rofecoxib para controle da dor em pacientes com artrite, gabapentina para condições psiquiátricas e dor, fenfluramina e fentermina para perder peso, estrogênio e progesterona para combater o envelhecimento, rosiglitazona para diabete não insulino-dependente e oxicodona para controle da dor.

Gøtzsche também exibe uma série de exemplos, que denomina de Hall da Vergonha das grandes empresas farmacêuticas. O problema não consiste nas pesadas multas pagas, mas sim, no fato de que o lucro supera em muito a penalidade. Logo, o crime compensa!

A Pfizer, por exemplo, pagou 2,3 bilhões de dólares em 2009 por fazer propaganda enganosa a respeito do antibiótico Zyvox, entre outras coisas. A Novartis pagou 423 milhões de dólares em 2010, por pagar propina para que médicos prescrevessem seus medicamentos. A Sanofi-Aventis pagou mais de 95 milhões de dólares para encerrar acusação de fraude em 2009. A Glaxo-Smith-Kline pagou 3 bilhões de dólares em 2011 por ocultar dados de segurança e pagar propinas a médicos. A AstraZeneca pagou 520 milhões de dólares e, 2010 para encerrar um caso de fraude por comercialização ilegal. A Johnson & Johnson foi multada em 1,1 bilhão de dólares em 2012. Por ocultar riscos de seu medicamento risperidona. A Merck pagou 670 milhões de dólares por fraude contra o Medicaid em 2007, incluindo propinas a médicos. Eli Lily pagou 1,4 bilhão de dólares em 2009 e Abbott pagou 1,5 bilhão de dólares em 2012. Os métodos criminosos são repetitivos, embora elaborados e muito organizados, e revelam que:

“O crime corporativo é comum e que os delitos são implacavelmente executados, com gritante desrespeito pelas mortes e outros danos sérios causados por eles. (...) o crime corporativo mata as pessoas e também envolve roubos expressivos do dinheiro dos contribuintes.”[3]

Os autores Jureidini e McHenry ressaltam o perigo em se permitir o controle dos dados de pesquisa e sua propriedade pelos grandes laboratórios, interessados diretamente no lucro gerado pelas pesquisas que permitem vender medicamentos após seus registros em agências reguladoras. Essa posse dos dados leva a situações em que os médicos pesquisadores devem se calar sobre os resultados que a indústria não deseja que sejam conhecidos. Chega-se a uma situação na qual o médico precisa decidir se honrará o pacto hipocrático de beneficiar o paciente e protegê-lo do mal, ou se honrará o pacto comercial com a indústria e se calará, permitindo muitas vezes por omissão a morte e o sofrimento de incontáveis pacientes.

Uma das soluções possíveis apontadas por Jureidini e McHenry é investir na pesquisa "independente" realizada pelas universidades, como se pudessem servir de controle comparativo para o trabalho realizado pela indústria farmacêutica.

Infelizmente, a Academia está longe de ser um poço de pureza, e foi cooptada há tempos por uma chuva de recursos da indústria farmacêutica, submetendo-se aos mesmos interesses tantas vezes obscuros daqueles que querem lucrar com a doença, prometendo a saúde e vendendo ilusões.

O poder de destruição do imbecil coletivo na saúde dentro das instituições universitárias é largamente subestimado.

Até mesmo prestigiadas revistas científicas, editadas por autoridades acadêmicas internacionalmente respeitadas, pisam na jaca dos conflitos de interesses.

Empresas fazem singelas ligações para os editores de revistas científicas dando aquele aviso camarada de que comprarão reimpressões do artigo enviado caso o mesmo seja publicado.[4]

Deixar de publicar os artigos da indústria, carinhosamente preparados com tanto esmero pelos escritores fantasmas e assinados por autoridades acadêmicas que vendem seus nomes como grifes famosas no topo dos trabalhos, pode gerar enorme impacto financeiro para uma revista. O Brittish Medical Journal, por exemplo, que é reconhecido como um “osso duro de roer” pela indústria[5], após dedicar uma edição inteira aos conflitos de interesse retratando em sua capa vários médicos vestidos como porcos gulosos em um banquete ao lado de representantes da indústria farmacêutica vestidos como lagartos, recebeu a ameaça de perder 75 mil libras em anúncios. Talvez essa fama “ruim” do Brittish Medical Journal ainda perdure, pois recentemente publicou um extenso comentário intitulado “O declínio da ciência no FDA se tornou incontrolável”, de autoria do Professor de Medicina David Ross, da George Washington University School of Medicine and Health Sciences.[6] Não é por acaso que esse periódico tenha apenas quatro por cento de sua renda derivada de reimpressões, enquanto outras revistas como o The Lancet cheguem a impressionantes 41% de toda a sua renda derivada de gulosas compras da indústria farmacêutica de seus próprios artigos publicados.[7] Afinal de contas, é sempre legal desovar um artigo impresso no consultório de um médico desavisado que nada ou pouco sabe de crítica científica.

Além de lucros multimilionários para revistas acadêmicas e seus editores, a publicação de um artigo especialmente desenhado e encomendado pela indústria farmacêutica ainda rende uma chuva de citações, aumentando o impacto da revista acadêmica e, portanto, inflacionando seu prestígio e retroalimentando a imagem de autoridade daqueles autores que emprestam seus nomes para figurar entre os pesquisadores de um laboratório.

A própria indústria arregimenta uma caterva de escritores fantasmas que se dedicam a publicar trabalhos em revistas secundárias citando profusamente os artigos publicados pela mesma indústria nos grandes periódicos.[8] Gotzsche cita um estudo de 2012 que revela dados interessantes: “o custo mediano e o maior das encomendas de reimpressão para o The Lancet era de 287.353 e de 1.551.794 libras, respectivamente.”[9] Até mesmo um dos editores da The Lancet, Richard Horton, reconheceu, talvez naquele momento de sinceridade que só pode ser inspirado por um arroubo quase suicida de consciência, que “os periódicos evoluíram para operações de lavagem de informação para a indústria farmacêutica.”[10]

Tudo isso culmina em um esquema bilionário no qual incontáveis médicos perfazem as fileiras de guerra da indústria farmacêutica, aceitando desde pequenos agrados – pois muitos se vendem por muito pouco, incluindo canetas elegantes, passagens para congresso e envelopinhos com poucos milhares de dólares – até polpudas verbas de consultoria. São editores de revistas, agentes de agências reguladoras, professores catedráticos, escritores fantasmas e prescritores vendidos que alimentam o ciclo extremamente lucrativo da Bigpharmaum verdadeiro sistema que tem seus próprios headhunters em constante vigilância sobre novos talentos promissores até mesmo dentro de cursos de graduação.

Se, apesar das multas multibilionárias pagas pela indústria, essas práticas perduram de forma sistemática, só há uma resposta plausível: o crime compensa. Só não compensa para a vida daqueles pacientes e suas famílias que ao invés de adquirirem um medicamento realmente efetivo, nada mais conseguiram do que uma amarga ilusão gloriosamente coberta pela nuvem de fumaça em que se transformou a Medicina Baseada em Evidências a serviço de interesses escusos.



[1] Jon Jureidini; Leemon B. McHenry. The Illusion of Evidence-Based Medicine: exposing the crisis of credibility in clinical research. South Australia: Wakefield Press, 2020, p. 13.

[2] Ibid., p. 14.

[3] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., 2016, p. 21-40.

[4] Richard Smith. The Trouble with Medical Journals. London: Royal Society of Medicine, 2006.

[5] Kamran Abbasi. Editor’s choice: a tough nut to crack. Brittish Medical Journal. 2005; 330: 7485.

[6] David B. Ross. The decline of Science at the FDA has become unmanageable. Brittish Medical Journal 2023; 381: p. 1061.

[7] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., p. 65.

[8] Ibid., p. 63.

[9] Handel AE; Patel SV; Pakpoor J; et al. Hight reprint orders in medical journals and pharmaceutical industry funding: case-control study. Brittish Medical Journal. 2012; 344: e4212.

[10] Richard Horton. The dawn of McScience. New York Rev Books. 2004; 51: p. 7-9.




terça-feira, 23 de maio de 2023

MEDICINA À VENDA, MORTE À VISTA

 Há livros que nos abrem os olhos para a dura realidade. Um desses livros, sem dúvida nenhuma, pertence a Peter Gøtzsche, médico pesquisador e ex-diretor de um dos centros da Cochrane, uma organização que se dedica a analisar de forma crítica as evidências científicas que movem o mundo da medicina.

O livro se chama “Medicamentos Mortais e Crime Organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica” e é de leitura obrigatória.


Em palavras diretas, sinceras e, às vezes, irônicas – pois como não utilizar um pouco de ironia diante de uma realidade tão amarga como aquela produzida pela gigantesca e trilionária indústria farmacêutica –, o autor expõe fatos de extrema gravidade e, obviamente, de quase total desconhecimento do público e até mesmo de médicos, eu diria.


Nem todos entendem que aquilo que para uns é uma busca pela sobrevivência e pela saúde, para outros nada mais é do que um lucrativo mercado a ser explorado, não importa a que custo moral.

Gøtzsche alerta, logo no início da obra:

Quando pesquisas importantes demonstram que um produto é perigoso, diversos estudos abaixo do padrão são produzidos dizendo o contrário, o que confunde o público pois – como jornalistas dirão a você – “os pesquisadores discordam.” Essa indústria da dúvida é muito eficaz ao distrair as pessoas para ignorarem os danos; a indústria ganha tempo enquanto as pessoas continuam a morrer.[1]

Vidas nada mais são do que empecilhos no caminho do lucro exorbitante dessa indústria, que superou em muito a margem de lucro existente no mercado de forma geral.[2] Pessoas, incluindo médicos, burocratas e técnicos de agências reguladoras, jornalistas, políticos e até mesmo cidadãos em associações de pacientes portadores de determinadas doenças, são comprados sistematicamente, com o intuito de mover esse mercado extremamente poderoso.

De forma muito dura, Gøtzsche sentencia que “a principal razão pela qual ingerimos tantos medicamentos é que as empresas farmacêuticas não vendem medicamentos: elas vendem mentiras sobre medicamentos.”[3]

Durante a pandemia, não foi diferente, eu diria. Foi até mesmo pior, pois o medo abriu brechas perigosíssimas e suplantou a racionalidade e a moral de incontáveis pessoas no mundo inteiro, e a mercantilização da medicina, inevitavelmente ligada à despersonalização e perda da dignidade humana, avançou a largos passos.

Medicamentos caros foram empurrados de todas as formas possíveis, enquanto medicamentos baratos que poderiam ter sido reposicionados e melhor pesquisados foram combatidos com uma fúria assanhada que eu jamais presenciara.

Gøtzsche teve a coragem de “abrir o bico” e falar o que muitos queriam que jamais fosse falado e outros não gostariam nunca de ter ouvido, pois junto com a denúncia gravíssima dos fatos, que falam por si mesmos, imediatamente vem à consciência a acusação grave contra aqueles que abriram mão de seu caráter e de sua personalidade para se tornarem objetos imorais de uma máquina de corrupção, morte e engano. Como todo aquele que ousa falar de moral com moralidade, Gøtzsche ameaça, desagrada e se expõe ao opróbio dos medíocres e vendidos.

Contudo, cabe a nós reconhecer uma antiga verdade, já enunciada por Goethe: “O talento molda-se na solidão; o caráter na convivência.” Se é na leitura e na Academia que forjamos o nosso saber, é no ringue da realidade, lidando com ameaças reais e com a perseguição promovida pelos mercadores da morte, que forjaremos nossa personalidade e mostraremos ao mundo e, principalmente, a nós mesmos e a Deus, a que viemos.

Ler os fatos horrorosos descritos por Gøtzsche, compreendê-los e voltar a olhar a realidade da saúde, da pesquisa e da medicina após esse mergulho nas trevas, é tarefa para os mais corajosos.



[1] Peter C. Gøtzsche. Medicamentos Mortais e Crime Organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Porto Alegre: Bookman, 2016, p. 2.

[2] Angell M. The Truth about the Drug Companies: how they deceive us and what to do about it. New York: Random House, 2004.

[3] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., 2016, p. 2.



sábado, 9 de janeiro de 2021

O Médico na Gestão

Muitas vezes me perguntam se cabe ao médico atuar na gestão privada ou pública. Recentemente fui convidado a pronunciar-me sobre essa possibilidade em um congresso da Associação dos Estudantes de Medicina do Espírito Santo e considerei pertinente escrever algo sobre isso que complementasse minha participação no evento.



Em minha época de graduando e residente, normalmente não víamos os gestores com bons olhos. Há um preconceito básico contra os médicos que se “desviam” do caminho da medicina para realizar atividades ligadas à gestão. Hoje, ocupando um cargo de Secretário Nacional no Ministério da Saúde, depois de passar pela residência na Universidade de São Paulo, onde também passei pelo Doutorado, e depois de atuar como médico na assistência tanto no âmbito público quanto no privado e como Coordenador de Curso de Medicina (o que já é um cargo de gestão em educação), posso dizer que adquiri uma visão um pouco mais madura a respeito dessa questão. Não há como negar que a dedicação de duas décadas aos estudos das Humanidades Médicas também foi crucial para a formulação de uma visão mais complexa.

O primeiro aspecto a ressaltar é que o médico tem um compromisso ético de agir como tal em qualquer âmbito no qual os conhecimentos médicos sejam utilizados. O que inclui sua atuação na assistência, na docência, na pesquisa ou na gestão. E, desde a antiguidade, o médico tem sim o papel de atuar na esfera pública, cuidando da saúde no âmbito político, sendo ouvido por autoridades responsáveis pelas grandes decisões ou tomando também parte nas grandes decisões.

Um exemplo histórico, retirado da obra de Platão, é a constatação de que atenienses se reuniam para deliberar sobre questões de saúde pública e recorriam à sabedoria profissional dos médicos.

ΣΩ. λλ᾿ ἐάν τε πνης ἐάν τε πλοσιος   παραινν, οδν διοσει θηναοις, ταν περ τν ν τ πλει βουλεωνται, πς ν γιανοιεν, λλ ζητοσιν ατρν εναι τν σμβουλον.

soc. Se seu mentor é rico ou pobre nenhuma diferença faz para os atenienses quando deliberam acerca da saúde dos cidadãos. Tudo o que eles exigem de seu conselheiro é que ele seja um médico.[1]

O médico permanece atrelado às exigências profissionais mesmo quando atua publicamente e isso não é, portanto, nenhuma novidade.

Aliás, o fato de ser um doutor – ou um douto, em linguagem mais antiga – por acumular uma grande amplitude de conhecimentos, dá ao médico grande autoridade frente ao público, e com essa autoridade, uma enorme responsabilidade.

Tal responsabilidade não deve ser negligenciada, e o médico precisa buscar o conhecimento e a técnica adequada para lidar com as grandes questões que afetam sua comunidade e sua civilização. Daí a importância da Filosofia e das Humanidades Médicas, que incluem as Artes Liberais: Gramática, Retórica e Lógica. 

Nas palavras de Sir Roger Scruton:

(...) as pessoas vão obter educação somente se elas a desejarem por seu próprio fim, mas conseguirão bem mais do que isso. Elas vão adquirir a habilidade de se comunicar, de persuadir, de atrair e de dominar. 

Em qualquer arranjo social, tais capacidades serão vantagens, mas a educação nunca pode ser buscada somente como meio para elas, mesmo se são sua consequência natural.[2]

Essa detenção de conhecimentos, técnicas, moral profissional e elevada capacidade de impacto social facilitam o caminho para postos de liderança. Negligenciada essa vocação de liderança e essa responsabilidade, o que se segue é a possibilidade de ser utilizado como massa de manobra para interesses diversos que não aqueles ligados à saúde ou ao estatuto moral da profissão.

Um médico que negligencia esse chamado à responsabilidade da vida pública e que se recusa a adquirir o preparo humanístico adequado é como um daqueles prisioneiros acorrentados no fundo da caverna descrita por Platão em seu Livro VII de A República. Só que no caso do médico que não imergiu nos estudos humanísticos, o prisioneiro continua sentado e virado para o fundo da caverna, mesmo que alguém se ofereça para lhe soltar as correntes. 

A pior escravidão é, de fato, aquela que surge pela falta de desejo da liberdade ou do apego doentio a uma condição sub-humana.

E o contexto recente da medicina no Brasil desvela claramente as consequências trágicas do abandono do legado cultural e moral de grande parte da classe profissional. Há uma perda difusa de credibilidade, perda da união profissional, várias tentativas de rotulação odiosa por parte de certas autoridades, desvalorização do trabalho médico, perda de liderança em postos de atendimento ou gestão, ausência de formação humanística de qualidade nas escolas e ausência de formação política adequada.

Diante desse cenário preocupante, o que se deve fazer?

Confio pouco em soluções maravilhosas, panaceias que resolverão o problema de todos, e duvido que impor um currículo básico seja suficiente. Aliás, no ambiente altamente ideologizado e medíocre em termos culturais cultivado por alguns que almejam ensinar Humanidades Médicas – ou fazer proselitismo político barato, em grande parte dos casos –, ouso afirmar que certas iniciativas serão até mesmo deletérias, servindo apenas para treinar militância acéfala ou causar ojeriza pelos estudos das humanidades. 

Contudo, um caminho mais ou menos seguro é estudar de forma interessada e autônoma a ciência política, a estratégia e as humanidades em geral, absorvendo o legado cultural milenar de nossa civilização, isto é, buscando o que muito apropriadamente é chamado de Alta Cultura. Com base nesse estudo sério e profundo, pode-se traçar planos de ação no âmbito da política e da gestão, compreendendo como a gestão pública e a gestão privada impactam a vida em sociedade como um todo. E todo esse estudo de nada valerá se não ocorrer um esforço contínuo de aprimoramento do caráter. Somente assim um profissional médico estará apto realmente a ocupar um cargo público: sendo uma boa pessoa e um bom médico.

Se o conhecimento é consolidado na solidão e no silêncio, o caráter, por outro lado, é forjado no calor da batalha. Não é à toa que se aprende tanto no internato e na residência médica, quando se está imerso na dura e crua realidade assistencial.

O médico tem uma oportunidade preciosíssima de se tornar um bom gestor, pois vivencia realidades múltiplas que lhe dão acesso a experiências cruciais na formação humanística e profissional. Desde a assistência em unidades básicas de saúde em bairros e em alas hospitalares até estar presente na formulação de grandes políticas de saúde pública, o médico tem a oportunidade de adquirir uma perspectiva realmente ampla sem se esquecer do cotidiano e do específico.

Resumindo o que chamo de ciclo virtuoso da ação pública, o que se tem é a aquisição ampliada de conhecimento e experiência de vida que leva ao aumento da responsabilidade. O aumento da responsabilidade, quando assumido com nobreza, gera a confiança em meio à sociedade. Essa confiança gera autoridade e deferência por parte do público. A autoridade inevitavelmente gera maior impacto social por parte do profissional, que adquire grande capacidade de influenciar os rumos da sociedade. E, por fim, esse impacto gera maior necessidade de conhecimento para qualificar os próprios atos e decisões, o que reinicia o ciclo de aumento de responsabilidade.

E o que seria esse estudo das humanidades capaz de ajudar na construção de um bom gestor médico? Como realizar esse estudo, indo além dos conteúdos específicos de administração? Essa é a proposta do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina, abordada em outros escritos diversos.[3]

Utilizado de forma adequada, o papel de gestor pode salvar incontáveis vidas, auxiliar nas necessidades de famílias e de todo um país e promover constante aperfeiçoamento da profissão na busca pela excelência. Eis um dos mais complexos papéis que o profissional médico pode almejar e também um daqueles de maior impacto na sociedade. 

O reconhecimento dessa possível missão deve ser devidamente tratado desde a graduação para que se evite uma geração de profissionais destituídos das competências da liderança e da nobre vocação de atuar com o bem público e individual em mente.

 

Hélio Angotti Neto

Brasília, 09 de janeiro de 2021.

 



[1] PLATO. Charmides. Alcibiades I and II. Hipparchus. The Lovers. Theages. Minos. Epinomis. Loeb Classical Library 201. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1927, p. 110-11.

[2] SCRUTON, Sir Roger. O que é Conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015.

[3] ANGOTTI NETO, Hélio. A Tradição da Medicina. Brasília: Academia Monergista, 2012; ANGOTTI NETO, Hélio. Bioética: Vida, Valor e Verdade. Brasília: Editora Monergismo, 2019.

domingo, 6 de dezembro de 2020

Reflexão Pessoal de Natal - 2020

 REFLEXÃO DE NATAL – 2020

 


O ano de 2020 encerra com um cenário que eu jamais poderia imaginar. Em meio à crise mundial causada pelo novo coronavírus, estou justamente no Ministério da Saúde, dividindo o peso com uma grande equipe em busca de aliviar a dor e buscar soluções para todo o mal trazido pela doença. Nunca imaginei um desafio assim, mas agradeço antes de tudo a Deus por ter a chance de empenhar meus esforços para ajudar.

Contudo, a reflexão que agora gostaria de compartilhar não é sobre os grandes exemplos e tragédias dessa enorme crise, mas uma outra tragédia que acomete tantas famílias, muitas vezes em silêncio e muitas vezes ignorada. Tragédia que possui um profundo sentido existencial, que nos coloca em uma situação da qual não se escapa, tampouco se previne. A tragédia é um nome dramático para o que alguns chamam de destino, outros de providência, e Salomão tão bem explica como a vida debaixo do sol enquanto Jó lamenta e clama diante do próprio Deus seu sofrimento, sua tragédia pessoal.

Essa tragédia é o fato inescapável de que todos somos limitados, todos temos falhas e precisamos da compaixão alheia. E esse fato torna-se ainda mais agudo quando me deparo com a situação daqueles que possuem doenças raras ou doenças graves ainda sem tratamento, que lhes causam importantes deficiências e tornam impossível a completa adaptação em sociedade.

O lugar de trabalho no qual me encontro também trata justamente desse assunto: pessoas com doenças raras.

E falar de doenças raras é falar do sofrimento, da dependência, da esperança misturada ao desespero, da pressa e, acima de tudo, da compaixão e do amor. 

Há muitas formas de doenças raras, acometendo diferentes órgãos, diferentes funções, mas todas elas carregam uma lição de sóbria alegria e muita dor.

Há aqueles que nascem e, em meio ao choro de sua família, partem após poucos ou até mesmo nenhum suspiro. Há aqueles que vivem vidas longas, repletas de sacrifícios por sua parte e por parte de seus familiares. Cada pessoa com uma dessas condições, assim como cada pessoa existente, é única e é especial, com certeza, mas essas que possuem doenças raras ou deficiências muito graves por diversas vezes nos mostram uma experiência concentrada, que clama aos céus.

Em meio a todo o sofrimento e ao medo causado pela doença epidêmica que o mundo enfrenta em 2020, as tragédias pessoais por outras razões não pararam. Incontáveis histórias que somente a mente de Deus pode compreender, em suas mais plenas cargas existenciais, ocorrem todos os dias.

Não seria justo ignorar essas vidas, tampouco o seria ignorar outros fatos, além do sofrimento e das necessidades, que acompanham essas existências carregadas de tragédias e lições.

Uma dessas lições que presenciei foi como famílias encontram uma força que não é deste mundo para seguir em frente, para lutar, para sonhar e para cuidar. Presenciei situações de desespero que trazem à tona forças que mal sabíamos existir e que sustentam a caminhada mesmo nos mais difíceis momentos. Fé, carinho e sentimento de missão alimentados por um Amor que transcende tudo o que somos e sabemos.

Cada pessoa com uma doença rara ou com uma grave deficiência é uma oportunidade única de manifestar esse Amor, de caminhar com um propósito nobre, de superar suas próprias condições e viver o impossível, de abarcar no peito alegrias e tristezas quase infinitas que não caberiam de outra forma. “Nossos raros”, como são chamadas muitas vezes as pessoas com doenças graves e raras, tantas vezes crianças e bebês, simplesmente não cabem em nosso coração, mas podem evocar algo muito maior e melhor do que nós somos.

E cada um desses pequenos ou grandes que convive com uma grave doença abre nossos olhos para uma situação também trágica em nossas vidas: todos nós somos tão pequenos e tão indefesos diante do destino à frente, diante de nossas finitudes! Todos, em maior ou menor grau, dependemos tanto do próximo! Quem somos nós para julgarmos o valor da vida ou ousarmos afirmar que somos independentes? Nossas vidas são como um sopro, uma sombra que passa, nas palavras do salmista.

É no Natal que em especial nos lembramos da vinda e da vida do Único que não é imperfeito e que nada nos deve. Lembramo-nos com especial atenção d’Ele que em nada dependeu de nós, d’Ele que por nós se sacrificou por puro Amor, inesgotável, perfeito e divino. 

Todos nós carregamos nosso trágico destino à frente, repletos de falhas, imperfeições, deficiências. Em certa medida, todos possuímos uma doença grave que cedo ou tarde cobra o seu preço, seu sofrimento, sua dor. Contudo, temos quem cuide de nós pela eternidade. Alguém que se mostrou, que nasceu como nós nascemos e que optou por sacrificar-se por nós.

Neste Natal, lembro de que cada pessoa com uma grave doença, cada um com uma grande necessidade de suporte, também é uma oportunidade existencial única que graciosamente nos permite cuidar do próximo e exprimir um reflexo daquele Amor infinito que se derramou sobre todos nós, do qual somos todos devedores. Cada uma dessas vidas raras é uma oportunidade para compreendermos um pouco mais do mistério da vida e para amarmos o próximo como Cristo nos ama apesar de nossas fraquezas.

E que nós possamos nos lembrar com gratidão de que o bem feito a um desses “pequeninos” não será esquecido, pelo contrário, ecoará aos céus por toda a eternidade, pois neles também sofre e ama nosso Criador.

Um Feliz Natal e que Deus nos proteja e nos capacite a cuidar daqueles que mais precisam de nosso amor, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

 

Hélio Angotti Neto, Brasília, 06 de dezembro de 2020.

domingo, 26 de abril de 2020

EM TEMPOS DE BIOPOLÍTICA, GLOBALISMO E GEOPOLÍTICA

EM TEMPOS DE BIOPOLÍTICA, GLOBALISMO E GEOPOLÍTICA

A recente pandemia, conforme a Organização Mundial de Saúde decretou em 2020 por causa do Coronavírus, realmente trouxe fatos importantes que devem ser analisados e que impactarão sobre nossa realidade de forma significativa.
Pela primeira vez na história da humanidade, bilhões de pessoas acompanharam em tempo real o alastramento da doença, caso a caso. Todos fomos expostos a uma enorme carga de informação e especulações com enormes potenciais tanto positivos quanto negativos. 
Do lado positivo, sem dúvida, a possibilidade de acompanhar curvas epidêmicas e compará-las em todo o mundo, enriquecendo em muito a ciência epidemiológica. Do lado negativo, a enorme ansiedade que isso gera e todo o impacto social e econômico decorrente.
Quanto ao alastramento da doença, foi auxiliado pela intensa globalização, que abriu fronteiras e mercados por todos os lados, aprofundando laços de interdependência entre os países e o deslocamento de grandes massas humanas em pouquíssimo tempo.
Essa interdependência e essa fluidez de fronteiras geraram situações interessantes no contexto da pandemia. Uma delas é, por exemplo, a concentração da produção global de máscaras cirúrgicas na China, justamente onde se iniciou a pandemia.
Mundo afora, há diversos oligopólios globais, gerando especializações centradas em algumas nações. Na hipótese de fechamento de fronteiras, há um sério risco de desabastecimento do mercado interno de diversas nações dependentes. Para um mundo globalizado, eis que foi desenvolvida uma solução globalista.
Isso gera uma preocupação em relação à plena abertura dos mercados e uma nova tendência ao protecionismo, que pode ser interessante no caso de bens essenciais à subsistência e à segurança de todo um povo.
A dependência de uma nação, em termos estratégicos, da produção de outra nação significa algo muito claro: submissão, seja ao governo que produz o bem para exportação, seja ao grupo que lidera a produção, que pode apresentar caráter não governamental. De ambas as formas, há uma série de possíveis fragilidades, ainda mais em tempos de conflito e desconfiança, como aqueles presenciados durante a pandemia da Doença do Coronavírus (COVID-19).
Não se pode desprezar os ganhos da globalização. Informação rápida, facilidade na aquisição de mercadorias antes indisponíveis, flexibilização das fronteiras e aumento do sentimento cosmopolita por todo o globo. Mas há que se diferenciar duas situações.
A globalização propriamente dita do globalismo.
O globalismo é uma forma de administrar a realidade globalizada em termos políticos, econômicos e culturais. Sua grande ênfase é o poder concentrado em entidades supranacionais, é como controlar o próximo por cima de suas fronteiras. Há um elemento de substituição de uma elite governante de caráter nacional, muitas vezes alocada pelo próprio povo de uma nação, por uma elite tecnocrática que rompe questões como nacionalidade e patriotismo. 
Essa elite internacional atua em diversos países e funciona como um poderoso elemento geopolítico que não pode ser ignorado. 
Um exemplo seria o de um pequeno país no qual se instala um enorme complexo produtor pertencente a um dos membros dessa elite internacional. Uma vez dependente do comércio internacional, este pequeno país pode praticamente ser colocado em profunda recessão econômica e grave crise política caso tal complexo seja removido ou fechado.
A resposta dada à pandemia nesse delicado contexto de globalização permeada de globalismo, com seus mercados abertos em nível internacional, gerou uma consciência aguda acerca das limitações do modelo de caráter internacionalista.
Novamente muitos questionam as vantagens e desvantagens do nacionalismo, diferenciando a postura cautelosa e protetora da cultura e dos interesses nacionais – o nacionalismo propriamente dito – daquela postura agressiva de conquista e imposição cultural, denominada de imperialismo por autores como Yoram Hazony, autor da obra As Virtudes do Nacionalismo.
As repercussões desse grande tubo de ensaio em que se tornou a pandemia serão percebidas no campo das Relações Internacionais, da Economia, da Saúde, da Política e do Direito só para começar. As repercussões culturais ainda são incalculáveis.
Vivemos, na verdade, um cenário parcialmente previsto pelo Filósofo Olavo de Carvalho no início do século XXI, que recomendara ao então presidente do Brasil, Itamar Franco, a realização de um Congresso Mundial sobre o Nacionalismo. A sugestão então ignorada agora se faz urgente, como também é urgente a redefinição dos mercados e das fronteiras diante das atuais mutações políticas, científicas, econômicas e culturais.