O cenário científico na medicina e na indústria farmacêutica está tão catastrófico em termos morais e metodológicos que tem elicitado alguns comentários nada elogiosos. John Ioannidis, um dos grandes epidemiologistas da atualidade, publicou um artigo cujo título é: “Por que a maior parte dos achados de pesquisa são falsos.”[1]
John Ioannidis
Horton, editor científico de um dos grandes periódicos, afirma que a ciência médica contemporânea está “caminhando rumo às trevas”, “afligida por estudos com amostraas pequenas (baixo poder estatístico), pequenos efeitos, análises exploratórias inválidas e conflitos de interesse flagrantes, junto com uma obsessão pela busca de tendências da moda de importância questionável.”[2]
Jacob Stegenga
Jacob Stegenga, professor do Departamento de História e da Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge que se dedica ao estudo da medicina, aborda a ideia do niilismo médico em sua obra Medical Nihilism[3], que compõe uma interessante trilogia não intencional sobre falcatruas da ciência médica junto com as obras de Peter Gøtzsche e Jon Jureidini e Leemon McHenry.
Segundo Stegenga, ao longo da história observa-se três tendências que marcam o niilismo médico: o fato de muitas doenças não terem tratamento, a inefetividade de muitos tratamentos médicos e a influência corruptora do dinheiro na medicina.
Niilismo Médico, de Stegenga
Stegenga mostra como, por causa do interesse da indústria e de médicos e pesquisadores corrompidos, a metodologia científica na saúde é sutilmente deturpada para comprovar o improvável. Nem mesmo o padrão máximo de qualidade das evidências científicas, que são as meta-análises, escapa do olhar aguçado de Stegenga, que denuncia elementos de subjetividade incontornáveis na execução desses estudos e, portanto, sujeitos a segundas intenções e conflitos de interesse.
O autor também aborda como distorções podem ocorrer ao medir efetividade de um medicamento, verificar riscos à segurança do paciente e publicar artigos manipulados e enviesados.
Não há método científico que sobreviva ao fenômeno demasiadamente humano da corrupção, e quando essa corrupção atinge a saúde e a ciência, obtém-se a terrível mistura de autoridade científica e medo do adoecimento, gerando um enorme poder coercitivo.
A ênfase nos desvios da pesquisa científica em saúde pode ser vista por muitos como um traço pessimista, que nega os grandes avanços e benefícios da medicina ao longo dos séculos e, principalmente, nos últimos dois séculos com o avanço da ciência e da técnica. Nenhum desses autores já citados assume uma postura pessimista de fato, pois todos reconhecem a evolução da medicina. Contudo, não se pode negar que o realismo necessário para lidar com o sofrimento alheio e com a realidade dos fatos requer uma visão bem atenta para os crimes da indústria farmacêutica, dos médicos e demais profissionais da saúde que venderam suas almas no altar da ganância e da crueldade.
A percepção das falhas do ser humano e de como elas podem destruir a vocação médica nos acompanha desde os primórdios.
Não é por acaso que um dos apóstolos do próprio Cristo lamenta profundamente o estado da humanidade ao exclamar que
“Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está em seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos.”[4]
E mesmo séculos antes de Cristo, os médicos hipocráticos já se preocupavam com a ganância demasiada que poderia destruir o caráter humanístico da profissão médica, como se pode deduzir da leitura de um dos trechos da obra Preceitos:
“(...) se começar por tratar dos honorários você dará a impressão a quem está sofrendo de que, se não houver acordo, irá embora e o abandonará, ou que o negligenciará e não oferecerá algo para a situação presente. Não é preciso, portanto, cuidar da fixação dos honorários, pois consideramos sem utilidade tal preocupação para quem está atormentado, principalmente no caso de doença aguda. Ela não estimula o bom médico a buscar o que é vantajoso: adquiri mais reputação. É melhor, portanto, censurar quem está salvo do que extorquir dinheiro dos que estão em perigo de morte.”[5]
É curioso como até os dias de hoje, é boa prática médica o atendimento emergencial imediato, independente do estado financeiro do paciente.
Além da crítica à ganância e à corrupção maldosa de muitos homens, não era rara a crítica da distorção da profissão médica em específico, como se observa na obra Libre de Contemplació de Raimundo Lúlio, no século XIII:
“Vemos que os médicos do corpo, Senhor, andam bem vestidos e bem montados em cavalos, e juntam riquezas e tesouros graças aos grandes enganos que causam a seus doentes, os quais enganam de todas as maneiras, pois se gabam de conhecer a doença que não conhecem. Além disso, eles prolongam, Senhor, as doenças nos doentes, para que tenham mais ganhos. E eles dão aos doentes, Senhor, xaropes, letovaris e outras coisas, para que tenham parte do lucro do que fazem os especialistas nas coisas que vendem aos doentes.”[6]
Portanto, não há que se falar em um pessimismo com o nosso tempo, mas sim, de um realismo responsável e prudente com o caráter do ser humano que, de posse de instrumentos científicos e técnicos de grande impacto, pode causar enormes danos à vida caso se entregue à corrupção e à destruição de sua consciência. Uma indústria farmacêutica corrompida foi somente o instrumento que tornou possível a manifestação da maldade que já habitava o coração apodrecido de muitos falsos médicos, pois quem trabalha contra a vida humana, jamais poderá ser realmente chamado de médico por alguém em sã consciência.
Diante desse realismo responsável, cabe ao estudante e ao profissional da área da saúde se preparar para de fato analisar a ciência de forma crítica, e jamais ler a literatura preparada por laboratórios do riquíssimo mercado farmacêutico com olhos ingênuos e com a mente despreparada.
O livro de Jacob Stegenga é uma dessas obras capazes de tirar escamas de nossos olhos e nos fazer a vida como ela é, por meio de uma saudável suspeição científica e filosófica.
PREPARANDO O TERRENO
Como se preparar para enfrentar um ambiente tão enganoso e repleto de conflitos de interesse?
Do ponto de vista intelectual eu sugiro a leitura e o estudo de livros que podem ser considerados introdutórios, metodológicos, filosóficos e, por fim, críticos.
Os livros introdutórios têm o objetivo de apresentar ao leitor os conceitos mais básicos da Medicina Baseada em Evidências e, normalmente, são abordados no nível de graduação.
Epidemiologia Clínica do Fletcher, que está em sua sexta edição, pode ser considerado o livro básico para graduações em saúde, oferecendo ao leitor um arcabouço básico de conhecimentos e conceitos. Seus capítulos são centrados em questões clínicas como Diagnóstico, Prevenção, Tratamento e Prognóstico, além de assuntos ligados à reflexão sobre Causalidade, Resumo de Evidências e Gestão da Informação. Nos capítulos, os diversos estudos possíveis na saúde são abordados junto aos conceitos que os amparam.
Delineando a Pesquisa Clínica do Hulley, estrutura-se sobre o desenho de estudo propriamente dito, com capítulos sobre coorte, ensaios clínicos randomizados e testes (Diagnóstico) entre outros, além de uma seção inicial sobre instrumentos básicos e uma terceira seção sobre implementação dos estudos incluindo questões éticas, financiamento etc.
Como Ler Artigos Científicos de Trisha Greenhalg é um aintrodução ao assunto voltado para a leitura e compreensão dos artigos, oferecendo também alguns conceitos básicos.
Além da leitura desses livros básicos, algumas ações podem ajudar a consolidar os conhecimentos e fundamentá-los para voos mais altos.
Fazer um curso básico de bioestatística, focado nos conceitos essenciais, sem a necessidade de realizar cálculos avançados, mas abordando os cálculos que permitem a compreensão da lógica por trás dos números, é um excelente começo. Hoje, com tantas opções na internet e em diversas pós-graduações, não será difícil encontrar conteúdo.
Todavia, talvez o ponto mais importante seja participar regularmente de um clube de revista para discussão a fundo e crítica de artigos científicos. Precisa colocar a “mão na massa” e praticar a crítica, colocando em ação todas as ferramentas e conceitos estudados ao lado de pesquisadores e médicos mais experientes e, acima de tudo, não comprometidos com algum esquema de corrupção científica, o que talvez seja um dos elementos mais difíceis de determinar no começo da caminhada de estudos.
Oportunidades de fazê-lo surgirão ao longo da trajetória de estudos em escolas médicas, cursos de Mestrado e Doutorado e Programas de Residência Médica com bons professores e preceptores.
Se esses passos iniciais forem bem executados, o próximo passo poderá ser dado com relativa facilidade: continuar aprofundando os estudos e as práticas ao longo do tempo ao buscar leituras sobre metodologia, filosofia da medicina e crítica científica, que se complementarão formando um amplo cenário intelectual e enriquecendo o imaginário.
Os livros metodológicos têm o objetivo de aprofundar os conhecimentos obtidos nos livros e nas práticas mais básicas. Devem ser estudados em paralelo com os livros filosóficos e de crítica, ao longo de alguns anos. Alguns dos muitos livros metodológicos incluem: The Cochrane Handbook for Systematic Reviews; Evidence-Based Healthcare and Public Health, do Muir Gray; Diretrizes para Utilização da Literatura Médica, do Journal of the American Medical Association; Introdução à Pesquisa Qualitativa, do Fink e Compreendendo a Pesquisa Clínica, de Lopes e Harrington. Outras leituras importantes incluem artigos diversos sobre Medicina Baseada em Evidências publicados em séries nos periódicos científicos mais renomados (embora não livres de certos conflitos de interesse), como um artigo relativamente recente abordando o uso de estudos observacionais em revisões sistemáticas na falta de evidências adequadas obtidas por meio de Ensaios Clínicos Randomizados.
Os livros filosóficos têm o objetivo de fundamentar a aplicação prática das evidências e enriquecer o panorama ético da profissão, indispensável para que o esforço científico não vire um pesadelo imoral de venda de evidências enviesadas. Alguns dos livros têm o objetivo de causar uma reflexão séria sobre o que é realmente a ciência, e até onde ela chega, e claramente desfazem certas expectativas religiosas mal direcionadas para a ciência. Alguns que eu indico incluem: A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn; A Lógica da Pesquisa Científica, de Karl Popper; Contra o Método, de Paul Feyerabend; Filosofia das Ciências, de Pascal Nouvel; O que é Ciência, Afinal?, de Allan Chalmers; O Princípio Responsabilidade, de Hans Jonas; Diagnosis: Interpreting the Shadows, de Pat Croskerry; Care & Cure, de Jacob Stegenga e as obras de Edmund Pellegrino: Para o Bem do Paciente, The Virtues of Medical Practice, The Christian Virtues in Medical Practice e The Philosophy of Medicine Reborn.
Por fim, as obras de crítica científica, cultural e metodológica aguçam a capacidade analítica e tiram algumas escamas dos olhos. Algumas sugestões incluem: Medicamentos Mortais e Crime Organizado, de Peter Gøtzsche; The Illusion of Evidence-Based Medicine, de Jon Jureidini e Leemon McHenry; Anatomia de uma Epidemia, de Robert Whitaker; Medical Nihilism, de Jacob Stegenga; Common Mistakes in Meta-Analysis and How to Avoid Them, de Borenstein; e Falso Positivo, de Theodore Dalrymple.
Pessoalmente, comecei a escrever livros em algumas áreas após vários anos estudando Filosofia e Bioética, além de Medicina Baseada em Evidências e Medicina. O que provocou a necessidade de começar a escrever e publicar foi um artigo de 2012 sobre o que os autores chamaram de “Abortamento Pós-Nascimento”, que nada mais é do que assassinato infantil com palavras elegantes. Era de uma sutileza e de um horror tão grandes que eu me senti compelido a responder. Foi o meu primeiro livro: A Morte da Medicina, que tem uma ênfase de crítica cultural. Outros livros de crítica cultural que publiquei incluem Ética & COVID: Ciência, Bioética e Liberdade em Tempos de Pandemia; Disbioética Volume I: Reflexões sobre uma estranha ética; Disbioética Volume II: Novas Reflexões sobre uma estranha ética; e Disbioética Volume III: O Extermínio do Amanhã.
Mas é preciso ir além do trabalho negativo da crítica. Outra vertente do que publiquei trata justamente do resgate cultural, e inclui os livros A Tradição da Medicina e A Arte Médica: De Hipócrates a Cristo.
Por fim, escrevi um livro que apresenta minha perspectiva inicial sobre Bioética e Filosofia da Medicina, Bioética: Vida, Valor e Verdade.
Se o ambiente editorial está repleto de erros, o mínimo que temos que fazer é apontar o que ainda guarda certa qualidade e tentarmos todos fazer a nossa parte, mudando esse cenário.
Deixo o convite para que leiam, compreendam melhor a ciência médica e apliquem o conhecimento na prática, pois, se adquirimos o conhecimento na solidão do estudo, é no convívio e na batalha que enfrentaremos no mundo que nosso caráter é forjado. E Deus sabe que, diante da derrocada que se observa, precisamos de muitas pessoas com um caráter forte como poucas vezes se viu em nosso país.
[1] John J. Ioannidis. Why most published research findings are false. PLoS Med, 2005; 2(8): e124.
[2] R. Horton. Offline: what is medicine’s 5 sigma? The Lancet. 2015; 385: 1380.
[3] Jacob Stegenga. Medical Nihilism. Oxford: Oxford University Press, 2020.
[4] Romanos 3.9-18.
[5] Wilson A. Ribeiro Jr. Preceitos. In: Henrique F. Cairus; Wilson A. Ribeiro Jr. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, p. 212.
[6] Ramon Llull. Libre de Contemplació. In: Obres Essencials II. Barcelona: Editorial Selecta: 1960, p. 347.