sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

CONFORME MINHA CAPACIDADE E DISCERNIMENTO - 16º PRINCÍPIO DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

Princípio XVI – Benefício Terapêutico e Excelência como princípios norteadores




XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

O médico necessita da liberdade para prescrever o melhor a seu paciente. Mas tal liberdade de prescrição está submetida às descobertas científicas que fundamentem as decisões terapêuticas.

Alguns críticos mais ácidos da ética médica tradicional, como o norte-americano Robert Veatch, enxergam no Juramento de Hipócrates uma licença para que o médico afirme que fará o que julgar necessário de forma autoritária e impulsiva quando dizem que: “conforme minha capacidade e discernimento, cumprirei este juramento e compromisso escrito.”[1]

Quando o restante da obra hipocrática é observado, qualquer leitor com um mínimo de dedicação perceberá todo o rigor que é exigido do médico, que deve entender a teoria clínica e as explicações de cada fenômeno apreendido da realidade do paciente. O médico, em nenhum momento da história, sentiu-se livre para tomar decisões irracionais ou impulsivas. E compreender, nesse trecho do Juramento, uma desculpa para atitudes inadequadas, ao invés de um compromisso com a excelência, não parece algo nem remotamente desculpável.

Afirmar isso não afasta a necessidade de ouvir o paciente e o que se espera em termos de trato e resultados da ação terapêutica. O que percebo é uma ênfase nos pontos de conflito e uma indisposição em reconhecer os inúmeros pontos de convergência entre os padrões hoje tidos como adequados e toda a tradição moral e ética da medicina.

Um exemplo de como a falta de um compasso moral pode tornar confusa a interpretação da tradição médica pode ser vista no seguinte trecho, que reproduz a problematização feita pelo professor Veatch em seu livro básico sobre Bioética:

O dr. Morton Westerman é um ginecologista que vem atuando na área há trinta anos. Ele vê, em um exame Papanicolau, um desenvolvimento de célula anormal, algo que tem visto há trinta anos. Nesses casos, sua regra é: quando estiver em dúvida, faça uma histerectomia. Recentemente, seus colegas de profissão fizeram estudos que revelam que não há documentação que prove que uma histerectomia cause algum bem nessas circuntâncias. Mas o dr. Westerman está nessa profissão há muito tempo, e seu instinto é o de que é melhor para essa mulher fazer uma histerectomia – é melhor prevenir do que remediar. O Juramento de Hipócrates nos diz que o médico deve fazer o bem para o paciente de acordo com sua capacidade de julgamento. Assim, o Juramento está dizendo ao dr. Westerman que, mesmo que seus colegas discordem de seu julgamento crítico e tenham diversos estudos empíricos e dados para dar suporte a sua posição, é seu dever moral fazer o que ele acha ser benéfico. Ele deverá seguir seu próprio julgamento ou o de seus colegas?[2]

O caso acima problematizado é um caso de erro médico por imperícia – ao executar um ato inadequado -, negligência – ao deixar de praticar atualização médica continuada, uma obrigação nos dias de hoje – e imprudência – ao atuar clinicamente sem o conhecimento necessário. Uma interpretação justa da tradição moral médica e, inclusive, da tradição hipocrática, precisa incluir a compreensão de que os bons médicos não fazem o que querem sem parâmetro algum, baseados em sua subjetividade impulsiva. Bons médicos devem aprender a teoria que move a medicina e fazer o melhor que há para ser feito de acordo com padrões técnicos de excelência. Em Regime I, o autor hipocrático informa:

II. Defendo que aquele que aspira tratar de forma adequada a dieta humana deve primeiro adquirir o conhecimento e o discernimento da natureza do homem em geral – conhecimento dos seus constituintes primários e discernimento dos componentes pelos quais tal homem é controlado. Pois se o médico for ignorante da constituição primária do homem, ele será incapaz de adquirir conhecimento dos efeitos do regime; e se o médico ignora os fatores que regem o corpo, ele não será capaz de administrar o tratamento adequado ao paciente. De tais coisas o médico deve saber, e promover a capacidade possuída individualmente por todas as comidas e bebidas de nosso regime, ambas as capacidades possuídas por natureza ou pela manipulação da arte humana.[3]

Que o médico atue no máximo de suas capacidades seguindo sua consciência, isto é, seu discernimento, é algo que só pode ser compreendido no contexto de uma profissão amparada pela beneficência e pela excelência. A criação de um dilema entre autonomia e beneficência, neste caso, parece ser uma vulgar distração de outros pontos importantes como a necessidade de conhecimento, a aprendizagem contínua e o uso das virtudes tradicionais na prática profissional.

Este princípio também só reforça o entendimento de que a medicina não pode ser relativista em termos morais. Há uma longa defesa de valores na civilização chamada “ocidental” que, uma vez enfraquecida, acabará por tornar a expressão “em benefício do paciente” em algo incompreensível ou completamente inócuo.

No campo de trabalho em que o médico atua, vários obstáculos se colocam entre a excelência no tratamento benéfico e a concretização disso na vida do paciente. No sistema público pessoas morrem na fila ou aguardam cirurgias por meses – ou anos – enquanto suas doenças ficam mais graves e sua qualidade de vida deteriora absurdamente. No sistema privado de planos de saúde, médicos são tolhidos cotidianamente por restrições no número de exames e descontos em seus ganhos ao ultrapassar cotas e índices “normais”.

Lembro-me de quando fui informado de que, se persistisse em solicitar exames de custo acima da média de minha especialidade (oftalmologia), eu teria um desconto no valor de minha consulta médica por meio do plano de saúde. O termo utilizado foi um eufemismo para desconto: “você deixará de receber uma consulta bonificada”. O que mais impressiona é que o colega da diretoria do “plano X” era oftalmologista, e teria tudo para compreender claramente que minha subespecialidade – órbita – exige exames de alto custo, como a ressonância nuclear magnética, que raramente são exigidos por outras áreas da oftalmologia. Respondi explicando o óbvio, mas sei que se a diretoria insistisse em tal conduta, poderia muito bem acionar o Conselho Regional de Medicina utilizando o princípio XVI.

Contudo, este princípio não afasta a possibilidade de que protocolos baseados em pesquisas de excelência sejam estabelecidos e fornecidos aos médicos. Mesmo assim, o médico pode contrariar um protocolo, desde que seja capaz de fornecer razões suficientes para tal. A imprevisibilidade inerente à condição humana é o que torna a medicina uma arte, e todo médico sensato sabe que, em cada consulta, por mais amparado que esteja na ciência de seu tempo e em protocolos excelentes, terá a oportunidade de conhecer algo inédito, assim como é inédita cada vida humana.

Quando se fala de regras ou protocolos gerais, é preciso lembrar de que: “quem cria a disposição estatutária não tem em mente todas as eventualidades possíveis e imagináveis”.[4]

O médico, a instituição na qual trabalha e toda a equipe profissional precisa compreender que nenhum protocolo é capaz de substituir a inteligência humana.




[1] JONES, W.H.S. (Tradutor). Op. cit.

[2] VEATCH, Robert. Bioética 3ª edição. São Paulo: Pearson, 2014, p. 54-55.

[3] Hippocrates, Heracleitus. Nature of Man. Regimen in Health. Humours. Aphorisms. Regimen 1-3. Dreams. Heracleitus: On the Universe. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical Library 150. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931, p. 226-227. II. Φημ δ δεν τν μλλοντα ρθς συγγρφειν περ διατης νθρωπνης πρτον μν παντς φσιν νθρπου γνναι κα διαγνναι· γνναι μν π τνων συνστηκεν ξ ρχς, διαγνναι δ π τνων μερν κεκρτηται· ετε γρ τν ξ ρχς σστασιν μ γνσεται, δνατος σται τ π᾿ κενων γινμενα γνναι· ετε μ γνσεται τ πικρατον ν τ σματι, οχ κανς σται τ συμφροντα προσενεγκεν τ νθρπ. τατα μν ον δε γινσκειν τν συγγρφοντα, μετ δ τατα στων κα ποτν πντων, οσι διαιτμεθα, δναμιν ντινα καστα χει κα τν κατ φσιν κα τν δι᾿ νγκην κα τχνην νθρωπνην.

[4] FRANÇA, Genival Veloso de. Op. cit., 2010, p. 32.