terça-feira, 3 de outubro de 2017

RESENHA: RAÍZES DA CULTURA OCIDENTAL

RESENHA: RAÍZES DA CULTURA OCIDENTAL

Herman Dooyeweerd



Em seu livro, Herman Dooyeweerd distingue as quatro fundações de nossa civilização, declarando-as como incompatíveis entre si. Afirma que tais fundações são pontos fundamentais de partida sobre o qual se apoiam todas as visões de mundo que caracterizam nossos tempos.

A primeira dessas fundações é a pagã, grega e romana. Baseada no dualismo entre o elemento vital e natural e o elemento cultural e histórico, gerou uma visão de matéria e forma que foi mesclada à fé cristã pelo catolicismo romano. Segundo Dooyeweerd, essa síntese católica comprometeu a visão original de Cristo de integralidade da Criação, sua Queda e sua Redenção.

A segunda fundação é justamente o cristianismo, baseado não numa abstração ou numa divisão entre forma e matéria, mas na concretude do ser humano centrado em seu coração ou alma, dentro de um cosmos descrito em termos de Criação, Queda e Redenção, afetando todos os aspectos existenciais ligados ao homem.

A terceira fundação é a tentativa de síntese entre as duas anteriores, movida pela Igreja Católica Apostólica Romana. A quarta é o secularismo, que absolutiza um dos polos da fundação pagã.

Um conceito importante para compreender o pensamento de Dooyeweerd é, sem dúvida, o de soberania das esferas. Para compreender a criação de Deus, o homem não pode absolutizar um de seus aspectos ou esferas. Não se pode compreender a realidade somente pelo seu viés histórico ou lógico. Embora cada um desses aspectos possua uma série de leis internas e uma soberania própria, todas as perspectivas da realidade manifestam-se de forma concreta e interligada. Aquele que deseja compreender melhor a criação, deve se esforçar por adquirir uma ampla visão de todas as esferas e de suas ligações analógicas (que Dooyeweerd chama de antecipações e retrocipações).

Absolutizar uma das esferas, como a econômica (a economia dita os rumos da humanidade, ao gosto dos marxistas), por exemplo, ou a sentimental (tudo é sentimento e o ser humano age por prazer – hedonismo), é um tipo de idolatria que diminui a inteligência humana e sua capacidade de interagir como mundo de forma eficaz. Um nome mais conhecido de tal ato de empobrecimento intelectual é reducionismo.

Diversos autores reconhecem hoje o problema desse reducionismo e os riscos de se arrancar o ser humano do contato com a transcendência complexa e concreta. Um dos autores brasileiros que repete a crítica da absolutização de esferas da realidade, como o tempo e a matéria (o historicismo e o positivismo), é Olavo de Carvalho em sua obra magistral “O Jardim das Aflições”.

Embora seja lembrado por suas críticas ao protestantismo ao falar em ambientes virtuais públicos, Olavo reconhece em suas aulas de filosofia dedicadas a seus alunos a importância de Herman Dooyeweerd e Abraham Kuyper, mesmo ao discordar em alguns pontos como, por exemplo, a crítica que faz a Dooyeweerd em relação à capacidade da absorção dialética empreendida pela Igreja Católica ao lidar com a cultura pagã.

Para Dooyeweerd, há um antagonismo (chamado de antinomia) essencial entre as visões de mundo cristã, secular e pagã, e qualquer sincretismo pode minar irremediavelmente a potência da cosmovisão cristã, distorcendo a forma pela qual enxergamos a realidade. Olavo de Carvalho, por outro lado, entende a visão cristã como superior a todas as outras e capaz de absorvê-las e enriquecer-se dialeticamente, ao invés de degenerar-se. Mesmo em discordância em relação a alguns aspectos, Olavo de Carvalho deixa claro em suas aulas no Curso Online de Filosofia que estudantes sérios deverão passar por Kuyper e Dooyeweerd.

No contexto da soberania das esferas, uma esfera inferior da realidade é considerada aberta quando permite a progressão para a próxima. Um exemplo seria a abertura da esfera relacionada às relações sociais, direcionada para a formação econômica de uma sociedade, a esfera imediatamente superior. Quando uma dessas esferas inferiores se fecha, torna-se uma fonte de reducionismo da qual o homem dependerá para interpretar e viver a realidade. Uma compreensão introdutória das esferas pode ser absorvida com a leitura da obra de Kalsbeek - Contornos da Filosofia Cristã -, uma excelente introdução à filosofia de Herman Dooyeweerd.

A esfera pística, relacionada à fé, é considerada por Dooyeweerd como a mais alta esfera. É justamente a fé que se encontra no limiar entre o temporal e o atemporal, entre a imanência e a transcendência. A depender da fé verdadeira, a concepção de mundo será aberta ou fechada à transcendência.

No capítulo Fé e Cultura, Dooyeweerd demonstra como a fé se utiliza de todas as esferas anteriores e como as transcende, exemplificando sua teoria filosófica.

Um dos pontos de sua crítica à formulação católica romana da fé é direcionada ao pensamento escolástico quando este identifica a fé com

a crença no conteúdo doutrinário católico-romano, alegando que a fé era o dom sobrenatural da graça ao intelecto, por meio do qual o intelecto aceitava as verdades supranaturais da salvação. Assim, a função da fé se tornou extensão sobrenatural da função lógica encontrada na natureza humana. A fé consistia numa aceitação puramente intelectual, mas por meio de uma luz superior que transcendia os limites da razão natural. A compreensão da natureza única da função da fé dentro do aspecto limite da realidade temporal havia desaparecido completamente dessa concepção escolástica.

Embora haja vertentes mais místicas de aproximação da fé no catolicismo romano de forma geral, assim como o há no meio protestante e, especialmente, no meio ortodoxo, a Ênfase escolástica realmente identifica a fé, ou procura abordá-la, dentro da concepção discursiva lógico-racional.

Os católicos romanos costumam culpar ao protestantismo pela secularização de nossa civilização alegando a quebra do poder, da autoridade e da união da Igreja. Dooyeweerd enxergaria o poder, como aos poucos se manifestou na história, e sua concentração cultural e religiosa dentro da instituição eclesiástica por meio da autoridade e do discurso lógico, como um perigoso precedente de reducionismo da esfera pística e precursor do secularismo exacerbado de nossos dias.

Absorvendo as duas críticas, tanto a protestante quanto a católica romana, é possível distinguir colaborações ou participações de ambos os lados na derrocada da cristandade e na ascensão do secularismo. O protestantismo quebrou a autoridade imanente deixando um vácuo na esfera do poder por causa da desunião entre os membros da Igreja. O catolicismo romano reduziu a fé a elementos discursivos racionais e rompeu a soberania das esferas fechando a esfera superior da fé a elementos inferiores institucionalizados. São dois polos de ação que poderiam ser descritos como exageros de ambas as partes, ambos potencialmente complicados e repletos de possíveis ganhos e falhas.

Assim como fazem muitos críticos do protestantismo, Dooyeweerd também traça um dos nexos causais responsáveis pela secularização à obra de Guilherme de Ockham, que separou a natureza da fé cristã ou graça.  Ockham influenciou sobremaneira Lutero, que renegou a natureza e, por meio dela, a Lei, para enfatizar a graça sobrenatural. Se a Igreja Católica Romana negava a divisão entre natureza e graça, considerando aquela como uma via de acesso inferior a esta, Lutero renega completamente um dos lados dessa visão dualista de mundo, embora ainda se mantivesse em seu interior ao enunciar a existência dualista da realidade. A influência mediada por Lutero ainda se faz sentir, de acordo com Dooyeweerd, em vários teólogos modernos, como Karl Barth.

Na vertente secularista, a natureza se separa completamente da graça e, cada vez mais, adquire autonomia e absolutização na visão de mundo. O indivíduo é elevado à estatura de princípio da sociedade por uns e, por outros, a matéria quantificável pela ciência o faz, criando vertentes individualistas e liberais ou positivistas. Por outro lado, a ênfase em elementos formais e não materiais pode agir no ambiente secular por meio do historicismo, tão em voga nos estudos históricos contemporâneos.

A evolução do pensamento destituído do aspecto transcendente progride, posteriormente ao racionalismo liberal e ao positivismo, para o que se denomina romantismo, exaltando o aspecto comunitário, geográfico e racial ao invés do indivíduo. Compreendemos as consequências dessa guinada para a exaltação do comunitarismo, do sangue e da terra ao verificarmos os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial.

Foi justamente essa visão que organiza e classifica seres humanos em raças, classes ou grupos julgando a realidade por meio de generalizações abstratas e características pretensamente representativas, descrita por Max Weber de Tipo-Ideal, que fundamenta as atuais ciências sociais.

Herman Dooyeweerd aprofunda conceitos importantes para a compreensão de sua teoria da soberania das esferas e de como a visão cristã antagoniza as visões pagãs e seculares. Busca os pressupostos metafísicos que qualificam a visão reformada frente à busca pela síntese executada pela Igreja Católica Romana e descreve desenvolvimentos históricos e acadêmicos que podem nos ajudar a compreender a ascensão do secularismo e como o mundo das idéias contribuiu para o fenômeno antirreligioso que hoje se nota.


O livro Raízes da Cultura Ocidental é uma leitura interessante para compreender um pouco mais sobre um dos momentos que marcou mais profundamente nossa história: a Reforma Protestante. É óbvio que Católicos Romanos discordarão das observações de Dooyeweerd, assim como protestantes reformados provavelmente discordarão da síntese católica entre a visão pagã de mundo e a visão cristã, mas vejo a leitura dessa pequena reunião de artigos como um aporte necessário para enriquecer a discussão.

Hélio Angotti Neto
03 de outubro de 2017, Colatina - ES