domingo, 12 de julho de 2015

Hipócrates e a Relação Médico-Paciente nos Aforismas - Parte 2


O primeiro aforismo provavelmente é conhecido por muitos.

I. βος βραχς, δ τχνη μακρ, δ καιρς ξς, δ περα σφαλερ, δ κρσις χαλεπ. δε δ ο μνον ωυτν παρχειν τ δοντα ποιοντα, λλ κα τν νοσοντα κα τος παρεντας κα τ ξωθεν.[1]

I. A vida é breve, a Arte é grande, o tempo é fugaz, a experiência é enganosa e a decisão é difícil. O médico deve estar pronto não somente para executar seu dever ele mesmo, mas também para assegurar a cooperação do paciente, dos familiares e dos de fora.

A vida é breve para abarcar uma arte de tamanha complexidade como a medicina. Se hoje isto é uma verdade, em tempos de tecnologia globalizada e informação virtualmente infinita ao alcance imediato de todos no mundo inteiro além de milhares de publicações que tornam impossível qualquer tentativa de conhecer todo o panorama científico mundial, talvez alguém imagine que à época dos antigos médicos gregos tal formulação seja um pouco exagerada, certo?

Errado. Antes de toda inovação moderna, a Medicina já era inabarcável, assim como o é toda a experiência humana concreta.

O antigo médico sabia que todo seu conhecimento derivava da observação de dados particulares interpretados à luz de determinada teoria com limitado poder de generalização. Cada novo caso traz consigo uma surpresa, uma situação nova, detentora de segredos e desafios próprios.

É da essência da própria ciência a generalização dos dados passados e a indução frente a novas situações, nunca se livrando totalmente de certo grau de incerteza, mesmo que mínimo.

Voltando aos tempos atuais, o aforismo permanece verdadeiro. Não há vida longa o suficiente que baste para aprender tudo sobre o ser humano, sua saúde, seus sofrimentos, suas alegrias, sua vida e sua morte. 

Nas escolas de medicina já nem se tem a pretensão de ensinar o “estado da arte” em questões médicas, mas sim, deseja-se ensinar a capacidade de ser autodidata em meio ao oceano de conhecimentos, técnicas e inovações. É o tão repetido “aprender a aprender”, que virou um slogan muito ouvido, porém nem sempre compreendido em toda sua amplitude.

E enquanto a arte médica é longa e a vida é breve, o tempo corre rápido. Nos quadros agudos de urgência ou emergência qualquer minuto pode fazer toda a diferença.

Não bastasse tudo isso, a experiência pode ser enganosa. Os quadros clínicos se confundem. Sinais e sintomas semelhantes podem ser indício de diferentes doenças. A reflexão acerca dos diagnósticos diferenciais é uma das mais complexas em Medicina, e talvez a mais crucial.

Algumas doenças só poderão ser descobertas e corretamente tratadas após o decorrer de preciosos dias – ou meses! – e ludibriam até mesmo o mais experiente dos médicos.

E tudo isso culmina com aquela que muitas vezes é uma difícil decisão. Com base na experiência dá-se o diagnóstico. Com base no diagnóstico prescreve-se um plano terapêutico. Com base no plano terapêutico e no diagnóstico, espera-se um determinado prognóstico, uma evolução no quadro clínico do paciente. Riscos e benefícios são pesados numa balança na qual o ponteiro marca o quanto se pode ajudar efetivamente o paciente.

E se o risco for alto demais? E se um erro puder levar à morte ou a graves disfunções? E se algo inesperado acontecer? Não existe exame infalível ou tampouco tratamento infalível, e não existe situação absolutamente previsível em todos os seus detalhes.


A Medicina é uma arte complexa, realmente, e o primeiro aforisma creditado a Hipócrates espelha essa maravilhosa e assustadora profissão.

Permanece vivo o conselho hipocrático: A arte é longa, a vida é breve...




[1] Hippocrates, Heracleitus. Nature of Man. Regimen in Health. Humours. Aphorisms. Regimen 1-3. Dreams. Heracleitus: On the Universe. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical Library 150. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931, p. 98-99.