ÓDIO IDEOLÓGICO CONTRA A MEDICINA
A DESCONSTRUÇÃO DE UMA ELITE INTERMEDIÁRIA
Há
um inequívoco ataque ideológico em curso contra a medicina. Não falo aqui da
crítica – bem exagerada, diga-se de passagem, porém bem-vinda - feita por Ivan
Illich contra uma tendência totalitária da intervenção médica na vida do
indivíduo.[1]
Falo de um movimento nem sempre bem ordenado, mas movido por princípios maquiavélicos
e revolucionários que atenta diretamente contra a profissão médica por meio da
desconstrução da identidade profissional e da difamação daqueles que se dedicam
à antiga arte hipocrática, visando sua submissão completa a um projeto
ideológico de manutenção da hegemonia política.
Descreverei
alguns exemplos ilustrativos desse ataque que ocorre há décadas, cada vez mais
agressivo.
O
ano era 2013, quando assisti à votação do Ato Médico, na qual seria analisada a
formulação que regulamenta o que a medicina faz ou deixa de fazer no Brasil.
A
época era de agitação. Médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, educadores
físicos e praticamente todos que iam às ruas naqueles momentos de levante
popular clamavam por melhores meios de saúde para a população brasileira.
No
calor das manifestações, um movimento que se iniciara dentro do curral ideológico
das esquerdas radicais do Brasil, capitaneado por grupos de estudantes do Movimento Passe Livre ao lado das
milícias dos black blocs[2],
subitamente era invadido por famílias inteiras com pautas conservadoras e
profissionais da saúde a pressionar o governo por melhores condições de serviço.
Observando
a completa perda de controle do movimento nas ruas, os radicais declararam em
alto e bom som que as manifestações estavam encerradas, mas as pessoas
continuaram indo às ruas, cada vez em números maiores.
Partidos
políticos tentaram assumir o leme das massas e, de forma surpreendente, foram
rechaçados, às vezes com ofensas. Era um genuíno levante popular. O pavio com a
elite política do Brasil estava curtíssimo.
Naquele
momento de grandes pressões contra um governo que já dava sinais da queda
vertiginosa em meio à corrupção sistêmica, foi orquestrada a votação do Ato
Médico e foi anunciado o Programa Mais
Médicos.
Durante
a votação do Ato Médico, militantes raivosos infiltrados em Conselhos das outras
profissões da saúde berravam que os médicos estavam querendo roubar a autonomia
alheia.
Políticos
demagogos e irresponsáveis, anunciavam descaradamente, na frente de milhares de
pessoas, que médicos inventavam doenças para faturar em cima da desgraça
alheia. Caía o Ato Médico conforme sua formulação original, recheado de vetos
presidenciais, e estava fraturada a união entre profissionais da saúde em busca
de melhores condições de trabalho. A antiquíssima técnica de dividir para
conquistar fora novamente aplicada com sucesso.
Revertendo
uma tendência de maior controle de qualidade dos médicos que tentavam o
ingresso no Brasil por meio do Revalida,
o governo dispara também a lei do Mais
Médicos, permitindo a entrada de milhares de cubanos mediante a evasão de
grandes fortunas para a ditadura genocida dos Castros e para a Organização
Pan-Americana de Saúde, intermediadora de todo o processo e responsável pela
logística, que faturou 5% de todos os bilhões de reais envolvidos.
O
governo dizia que médicos brasileiros estavam em falta e que não queriam ir
para o interior. É curioso que não tenham falado do fechamento de milhares de
leitos também no interior do Brasil e nas condições desumanas de trabalho
causadas pela má gerência de recursos humanos e materiais de um governo falido
e corrupto.
A
presidente Dilma, verdadeira tartaruga no poste, acusava o médico brasileiro de
tratar mal o povo, elogiando o humanitarismo dos médicos alugados da ditadura
dos Castros.
Todo
um discurso de demonização do profissional brasileiro foi disseminado pela
elite política e intelectual. Os médicos foram acusados de serem brutos,
racistas, imperitos e cruéis com a população, que necessitava da salvação
provida pelos estrangeiros.
Independente
das intenções declaradas, discretas ou secretas, o que se atingiu foi a quebra
da autoridade médica na sociedade brasileira. Isto é incontestável.
O
Conselho Federal de Medicina perdeu o monopólio da capacidade de indicar quem pode
exercer a medicina e quem não pode, dividindo tal atribuição com o Ministério
da Saúde, que passou a inserir estrangeiros por fora do método oficial de
revalidação de diplomas.
Não
entro aqui nos detalhes de toda a difamação que foi feita, algo que ocuparia um
grosso volume ainda a ser escrito por uma caridosa alma, quem sabe. Todavia, em
termos políticos, a mais influente e rica classe dos profissionais da saúde foi
quebrada. Teve sua autoridade política destruída. As palavras do atual Ministro
da Saúde, um engenheiro, repetidas em três ocasiões diferentes, deixam bem
claro o clima: “Vamos parar de fingir que pagamos os médicos e o médico parar
de fingir que trabalha”.[3]
Tal
processo de destruição da autoridade política será seguido, inevitavelmente,
pelo processo de destruição econômica e intelectual, transformando o médico em
servo dependente da bondade governamental em um ambiente de excesso de mão de
obra subempregada.
Por
fim, acuados, desautorizados, espremidos entre demandas cruéis e medidas sufocantes,
os médicos acabarão por perder a credibilidade moral, sendo cada vez mais alvos
da desconfiança de seus pacientes.
Quando
digo que há um ataque ideológico agressivo, não exagero de forma alguma.
Citarei alguns exemplos entre muitos que presenciei.
O INSISTENTE ÓDIO DOS MILITANTES
Uma
das facetas dessa campanha de ódio ostensivo contra a classe médica é a
intervenção que observo em certos eventos acadêmicos por determinados grupos de
professores e alunos que, executando uma interpretação totalizante e
reducionista daqueles que enxergam como inimigos, acusam o médico de ser um
opressor membro da elite.
Um
grupo barulhento e agressivo de militantes tenta impor à medicina um discurso
ideológico de ódio e intolerância. Tais críticos, embora acertem em parte
quando miramos nos piores exemplos de nossa classe, contribuem diretamente para
a hegemonia da velha elite política contra uma elite intermediária que poderia
pressionar aquela em favor dos mais frágeis elementos da sociedade.
Discutíamos
o programa de Mentoring em um
congresso de educação médica há cerca de um ano. O Mentoring é uma experiência interessante e enriquecedora na qual um
professor acompanha um grupo pequeno de alunos por toda a carreira acadêmica,
preparando-os para a profissão e para a vida, oferecendo conselhos e apoio na
caminhada. Tal experiência qualifica a educação e oferece óbvios ganhos para
todos os envolvidos. Os mais novos ganham a oportunidade de aprender com os
erros e acertos do mentor, mais experiente, e o mentor ganha ímpeto para
continuar sempre em busca de aperfeiçoamento e para rever suas posturas.
Um
dos objetivos do programa de Mentoring
é justamente permitir que haja o estabelecimento de uma relação de confiança
entre mestres e aprendizes, na qual um modelo profissional possa ser oferecido,
mostrando uma cara bem humana a um ideal de profissão tantas vezes distante dos
jovens estudantes de medicina que ingressam nas Escolas Médicas.
O
papel do modelo profissional é essencial à formação humanística do aluno e,
ouso dizer, até mesmo àquele que busca encarnar em sua vida tal modelo na
condição de professor. Contudo, tal modelo está sob ataque ideológico.
Eis
que nesse congresso de educação médica, no momento em que um dos palestrantes
afirma que o Mentoring é um excelente
momento humanístico para que o médico mais experiente saia de seu consultório e
compartilhe um pouco de sua experiência e de sua vida com os alunos,
oferecendo-se como amigo influente na caminhada, levanta-se uma professora que não
era médica para promover sua “revolução”.
Com
o dedo em riste, brada que esse era
justamente o problema. O jovem médico, segundo a furiosa militante que vociferava
exaltada, aprendia a reproduzir um modelo patriarcal, opressor, tecnicista,
capitalista, flexneriano e burguês de
médico, ou qualquer outra bobagem estúpida desse tipo.
Solenemente
ignorada, entre risos discretos e comentários aborrecidos dos participantes em
relação à falta de educação e de cordialidade demonstrada por ela, sentou-se
bufando enquanto a reunião continuou. O ódio, felizmente, não colou. Os
professores continuaram trocando informações sobre como promover o
amadurecimento de seus alunos.
As
críticas claramente foram percebidas por todos ali presentes como algo feito
por alguém que, provavelmente, nunca participara de uma sessão de Mentoring na vida. Mas assim é o mundo
abstrato da ideologia, um recorte muitas vezes odioso e odiento da realidade.
Em
outro momento, ainda no mesmo congresso, enquanto um jovem estudante de
medicina explicava as nobres iniciativas de estudo das Humanidades Médicas realizadas
em sua escola, uma dessas militantes enraivecidas também se levantou – será que
não era a mesma pessoa? - cobrando do aluno uma postura revolucionária e
questionadora, que não reproduzisse o modelo ocidental e alienado (novamente os
manjados adjetivos em série). O estudante explicou, com paciência e educação,
seus intentos. Todos os que estavam ali para debater e aprender continuaram
compartilhando experiências, o que não podia ser dito de quem fora lá para
destilar sua dose diária de ódio revolucionário.
A
maioria dos estudantes e professores é inteligente demais para cair nessa
conversa mole ou para acatar a destruição ideológica de sua profissão sem
repulsa; mas a pregação odienta não cessa, e a militância segue insistente e
furiosa, patrocinada por gordas verbas estatais e dirigidas pelos marotos
intelectuais orgânicos gramscianos.
Aos
poucos, médicos e estudantes caem na cilada de achar que a medicina pode ser o
que quiserem, que a medicina pode ser um joguete na mão de ideólogos exaltados
e raivosos que no fundo estão a pensar somente em suas revoluções, enquanto o
paciente sofre com sua doença.
Alguns
caem na cilada de achar que a medicina se reduz a mero instrumento de um
projeto político de tomada e controle de poder, projetando nos outros o que
anima o próprio coração repleto de maquiavelismo tosco.
Priorizar
agendas revolucionárias no lugar da verdadeira medicina acabará por destruí-la,
ferindo justamente o elemento mais frágil de toda a situação: o paciente que
tanto necessita de ajuda qualificada.
Aceitar o papel de inocente útil ideológico e
transformar a saúde humana em guerra ideológica equivale a assinar o atestado
de óbito da profissão médica enquanto se despreza o bem alheio. O que permite ao
médico promover o bem é a adesão à realidade do seu paciente, à realidade de
sua profissão e aos valores atemporais, vivendo acima dos rasos e mesmerizantes
conflitos ideológicos movidos por interesses alheios.
A
medicina não é compatível com qualquer ideologia. Ou exercemos a medicina para
valer e defendemos sua identidade contra esses ataques ideológicos, de forma
consistente e valorosa, pagando o mal como bem, ou nos submeteremos às pressões
da hora e sucumbiremos perante à horda do ódio. Temos que ser prudentes como a
serpente diante dos maus, e símplices como as pombas diante do que precisam de
ajuda.
Esses
militantes que compõem a despersonalizante e agressiva horda ideológica
comprovaram uma simples e assustadora verdade em todas as ocasiões nas quais
convenceram as massas e os médicos de seus intentos, subjugando a profissão a
ideologias toscas: abandonar o projeto hipocrático leva ao derramamento do
sangue inocente dos mais frágeis aos borbotões.
Elemento
essencial desse projeto hipocrático é servir aos valores tradicionais da
beneficência e ao paciente, sem ceder à despersonalizante tentação da servidão
ao Estado ou a ideologias excêntricas.
Quem
avisa amigo é!
Hélio
Angotti Neto
22
de agosto de 2017, Colatina, ES.
[1]
ILLICH, Ivan. A Expropriação da Saúde. Nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1975.
[2]
MORGENSTERN, Flávio. Por Trás da Máscara
- do Passe Livre Aos Black Blocs, As Manifestações Que Tomaram As Ruas do
Brasil. São Paulo: Editora Record, 2015.
[3]
CANCIAN, Natália & URIBE, Gustavo. Médico tem que parar de fingir que
trabalha, diz ministro da Saúde. Folha de
São Paulo. Internet, http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/07/1900934-medico-tem-que-parar-de-fingir-que-trabalha-diz-ministro-da-saude.shtml
; CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. CFM rebate declarações do Ministro da Saúde
contra médicos brasileiros. CFM –
Conselho Federal de Medicina. 15 de Março de 2017. Internet, https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26777:2017-03-15-19-21-57&catid=3