segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

NA CONTRAMÃO DA BIOÉTICA CONTEMPORÂNEA


Em um daqueles grupos de aplicativos de smartphone sobre Cuidados Paliativos com 580 membros, Luciana Dadalto, uma advogada estudiosa da bioética, lança a seguinte sentença sobre mim logo após um médico compartilhar um texto que eu escrevera há alguns meses sobre a normativa do Conselho Federal de Medicina que regulamenta o direito de recusa terapêutica do paciente e o de objeção de consciência do médico:
"Na contramão da bioética contemporânea. O Hélio é bioeticista hipocrático, que fundamenta todas as suas opiniões no paternalismo, além de ter um forte viés religioso."

Como ela referiu-se a mim em público, cabe uma breve exposição do que eu mesmo sei sobre minha pessoa e sobre minha obra no campo da bioética, aproveitando a pérola que foi essa concisa e concentrada sequência de pseudoargumentação erística que foi lançada.

Ponto 1 – Na contramão da bioética contemporânea
É preciso deixar bem claro, logo aqui no início, que não há “uma” bioética contemporânea. Há diversas linhagens, diversas metodologias e diversos entendimentos de cada linhagem e metodologia empregada. Há bioéticas secularistas e há bioéticas religiosas, só para se ter um exemplo.
Já tive a oportunidade de traçar raízes filosóficas de diversas linhagens contemporâneas da bioética em alguns de meus escritos. No caso das bioéticas de caráter cristão (há várias dentro desse grupo) há raízes que vão além do próprio Cristianismo e regridem aos tempos pitagóricos, segundo alguns historiadores como Ludwig Edelstein, que afirma ser justamente nos pitagóricos que os médicos hipocráticos, precursores dos médicos cristãos, foram fincar suas origens ideológicas.
No caso da bioética utilitarista, há raízes hedonistas de linhagem epicurista, raízes materialistas de origem em Demócrito e raízes evolucionistas de origem em Lucrécio, só para citar algumas fontes. Dessas fontes antiquíssimas também deriva o ideário que forneceu solo para o crescimento do Transumanismo, importante ramo da bioética que vê com otimismo a tecnologia e a capacidade de o ser humano transcender a si mesmo.
Há ligações por toda parte, raízes profundas que carreiam as mesmas ideias de sempre, travestidas de novas máscaras sob novas tecnologias, antigos anseios e crenças da humanidade que reemergem em diferentes momentos da história.
Eu não sei exatamente de qual bioética contemporânea Luciana Dadalto afirma que eu estou na contramão. O que posso afirmar é que estou contra elementos bioéticos que propalam a eutanásia, o suicídio assistido e o aborto, com certeza. Se essa é a essência do que Luciana afirma ser contemporâneo, podem dizer sim que estou na contramão. Ainda sou daqueles que considera ser papel de um executor ou torturador o de matar alguém, e não de um médico.
Agora, se bioética contemporânea for outra coisa, já fica difícil responder.
Aliás, eis um dos aspectos marcantes do hipocratismo na bioética: a defesa da vida humana. Sobre o tão mal falado paternalismo hipocrático, falo adiante.
Por fim, dizer que estou contra a bioética contemporânea equivaleria a lançar mão de um argumentum ad populum, no qual é considerado errado ou desacreditado quem avança contra o consenso ou a opinião “popular” do momento. Quantidade de apoiadores não é critério de verdade, de beleza, de justiça ou de utilidade, haja visto o que aconteceu com Sócrates e Cristo, a eleição de Hitler como Chanceler na Alemanha do século passado ou o apoio acadêmico às ideias assassinas do comunismo. Dizer que minha opinião está na contramão de seja lá o que for a “bioética contemporânea” é criar uma falsa oposição por meio de um pseudoargumento que nem ad populum pode chegar a ser, no fim das contas, já que a base de comparação do que seja popular está indefinida.

Ponto 2 – Bioeticista hipocrático
Se hipocrático remeter ao respeito pela vida humana e à dedicação em protegê-la, ficaria muito honrado em ser sim um médico hipocrático. Quanto ao termo bioeticista, depende de quem interpreta.
Explico. Sou médico com especialização em oftalmologia e sou Doutor em Ciências. Estudo Filosofia e Bioética há cerca de vinte anos. No sentido socrático, ouso sim afirmar que sou um filósofo. No sentido acadêmico, não sou filósofo e tampouco sou bioeticista.
Todavia, se bioeticista é quem age, medita e escreve sobre Humanidades Médicas e Bioética, poderiam dizer sim por aí que o sou. Minha reflexão deriva de duas décadas de convívio com médicos, pacientes e suas famílias. Vivo a relação médico-paciente e dela retiro as experiências concretas e reais que me ajudam a enraizar minha reflexão filosófica na realidade.
Se alguém desejasse perguntar a mim como gostaria de ser denominado, não hesitaria: sou um médico cristão e hipocrático. Eu vivo a ética médica a cada momento em que acolho um paciente e em que sou convidado a participar de uma nova vida.
O único problema na terminologia adotada para me rotular é justamente o grande espantalho hipocrático que criaram por aí. Do que Luciana acredita que hipocrático seja, não tenho ideia, mas do que vejo por aí na Academia noto uma quase que completa ignorância dos originais hipocráticos. Sobre as falsas acusações que pesam contra o hipocratismo na saúde já escrevi em diversos artigos e em diversos livros (série Disbioética, A Morte da Medicina, A Tradição da Medicina, Arte Médica e Bioética: Vida, Valor e Verdade) e recomendo ao leitor que, caso tenha interesse, procure lá para saber com detalhes o que penso.
Quase tudo o que li sobre Hipócrates no ambiente editorial da bioética foi escrito por pessoas que aparentemente nunca leram os principais textos hipocráticos em sua integralidade, ou que deixaram de fazer a contextualização adequada com outras obras do mesmo período ou com trechos da mesma obra. É uma forma de analfabetismo funcional que repete fórmulas falsas e desgastadas e repassa uma velha mentira adiante, criada em sua origem por alguém burro, preguiçoso ou de má-fé.
Portanto, quando alguém que se diz bioeticista fala algo de Hipócrates, recomendo muita cautela. Na dúvida, leia os originais e tire suas próprias conclusões. Eu li e posso dizer que a ética presente nos textos hipocráticos não possui um paternalismo forte e, pelo contrário, respeita aspectos éticos e morais ainda vigentes e ainda considerados excelentes.
Considerando o contexto no qual se usa a expressão “bioeticista hipocrático”, sugere-se a aplicação de um rótulo odioso, além do tradicional e injusto espantalho que ronda o nome de Hipócrates no meio acadêmico da bioética.

Ponto 3 – Fundamenta todas as suas opiniões no paternalismo
Sobre onde fundamento minhas opiniões, sugiro novamente o acesso a minha obra escrita. Deixo bem clara a minha fundamentação na visão que Edmund Pellegrino tem do Bem do Paciente e também utilizo aportes filosóficos diversos, além dos cristãos. Está tudo lá.
Neste ponto discordo do juízo emitido sobre minha pessoa. O paternalismo não é uma virtude, um valor ou um princípio no qual alguém possa basear sua conduta ética em saúde, é uma forma pragmática de classificar uma ação em relação à autonomia do paciente e em relação à capacidade decisória deste e de seu médico. Luciana faria bem em meditar sobre minha obra se quiser afirmar de forma tão grandiosa que eu fundamento todas as minhas opiniões no paternalismo. Se leu, receio não ter ela compreendido o que escrevi, e acho sinceramente que sou melhor juiz acerca de minhas próprias opiniões e seus fundamentos do que ela.
De forma análoga, dizer que fundamento todas as minhas opiniões no paternalismo é algo tão estúpido quanto alguém afirmar da Luciana que ela fundamenta todas as opiniões dela com base no lucro e no mercado das ações movidas contra médicos. Isso poderia ser classificado como uma forma extremamente deturpada de ampliação indevida, isto é, tomar o todo por uma pequena parte que, além de tudo, foi distorcida e mal utilizada. No fim, é um fenômeno que julga o todo concreto da realidade por meio de abstrações falsas ou incompletas, algo típico da burrice modernista que tanto critiquei em minha breve história da ética no livro Bioética: Vida, Valor e Verdade.

Ponto 4 – Ter forte viés religioso
Sim, tenho viés cristão. Outros terão um viés ateu, outros islâmico, budista, Hare Krishna ou agnóstico. Uns mais coerentes, outros menos. Da perspectiva filosófica, todos temos uma religião, algo que nos liga a um sentido, mesmo que tal sentido seja a afirmação de que o sentido mesmo não existe, como ocorre no niilismo. É impossível não subscrever uma cosmovisão, uma forma de religião que pauta nossa perspectiva de mundo, de compreensão da realidade.
A visão secularista utilitarista da bioética é tão religiosa neste sentido quanto a visão ortodoxa, a católica ou a de alguns dos ramos do protestantismo cristão.
A questão não é ter forte viés religioso ou não, a questão é ser coerente e admitir que todos possuem uma série de pressupostos implícitos. Grande parte do esforço dialético e lógico da reflexão filosófica moral é justamente escavar tais pressupostos e trazê-los à tona para a melhor compreensão do que se afirma.
Logo, tenho um viés religioso, como todos têm, mesmo que não o admitam.
A conduta que considero idiota no sentido técnico (pesquise a etimologia de idiotes e compreenda as suas implicações) é a de que se tem uma visão imparcial, isto é, não comprometida com uma visão de mundo específica, enquanto se julga a perspectiva alheia como um pobre e prejudicado recorte da realidade. Diante da realidade, todas as nossas visões são abstrações mais ou menos completas, mais ou menos verdadeiras.
Se Luciana afirmou que tenho viés religioso como constatação simples, ela está certíssima. Se houve tentativa de menosprezar minha perspectiva ao rotular minha posição como religiosa, desqualificando minha opinião no grupo de discussão, lamento muito por ela e pelo preconceito burro que tal uso da expressão replica.
Reafirmo que tenho sim um viés religioso, pois busco continuamente me religar ao sentido da realidade. Só gostaria que o viés fosse realmente forte, pois sou muito menos forte em termos de convicção religiosa do que gostaria de ser, e a caminhada adiante em busca de virtude ainda é longa, para não dizer infinita.
O possível uso do rótulo “religioso” para desqualificar minha opinião equivaleria ao manjadíssimo argumentum ad hominem, no qual se tenta destruir um argumento com base nas características pessoais de quem o lançou.
Luciana Dadalto fez uma proeza, nisto acredito que todos poderíamos concordar. Ela foi capaz de condensar vários estratagemas erísticos nas poucas linhas de um aplicativo de mensagens. Para quem quiser saber mais sobre erística, recomendo a obra de Schopenhauer: Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, um verdadeiro manual da trapaça discursiva por meio da manipulação psicológica. Não afirmaria que tal proeza seja fruto, porém, do uso de uma inteligência prodigiosa, pois quase toda a Academia brasileira recorre a esses recursos maliciosos de forma quase automática.
Infelizmente, isso é um típico exemplo do que é expressiva parte da Academia brasileira: uma cacofonia de insultos cínicos e golpes maliciosos de linguagem ao invés de argumentação sólida e evidências reais. E, infelizmente, não estou nem um pouco surpreso com a referência dispensada à minha pessoa, tampouco esperava algo melhor do que isso.

30 de dezembro de 2019

domingo, 22 de dezembro de 2019

Evidência como Intuição da Realidade e a Medicina

O Intuicionismo Realista como Pressuposto Epistemológico da Medicina

Na aula de número 499 do Curso Online de Filosofia do Professor Olavo de Carvalho, gravada em 20 de dezembro de 2019, o tema foi a diferença de interpretação do termo evidência e de como isso prejudicou nossa civilização e nossa inteligência. Tema este profundamente conectado ao caráter realista intuicionista da filosofia de Olavo de Carvalho, e um dos mais recorrentes em suas exposições,   iniciadas em maio de 2009.
Olavo de Carvalho. Em sua aula 499 do Curso Online de Filosofia abordou as diferentes interpretações da palavra evidência e como isso pode afetar a inteligência.
Evidência é um termo hoje utilizado em sua concepção anglo-americana, isto é, denota um indício a ser trabalhado em termos lógicos ou uma probabilidade obtida por análises estatísticas, caso se olhe no campo da medicina. Nada poderia ser mais diferente do que sua origem antiga na língua portuguesa.
Contudo, em nossa tradicional língua portuguesa, evidência é justamente aquele elemento objetivo da realidade que é apreendido de forma intuitiva, isto é, de forma imediata, diretamente da realidade e, portanto, constitui conhecimento inquestionável que precisa ser formulado em termos discursivos para sua correta transmissão. Para seu significado mais antigo, o fato de ser evidência não requer provas adicionais. A própria evidência é a prova fundamental que embasa todo e qualquer encadeamento lógico.
Quando meditamos acerca do significado de evidência conforme sua interpretação anglo-americana, é possível compreendermos de que estão a falar de indícios obtidos por meio da apreensão subjetiva e, portanto, é necessária a confirmação de tal evidência por meios lógicos e científicos. Isso caracteriza uma completa inversão da realidade e do uso tradicional da palavra evidência.
Na medicina, a evidência direta, intuída da realidade, como o reconhecimento de uma dor ocular como uma dor ocular na realidade, é o fundamento de qualquer ato diagnóstico, terapêutico ou prognóstico. Dessas evidências intuídas da realidade, pode-se passar à análise estatística, alcançando as probabilidades e prevendo as melhores decisões. Seria a união entre evidência baseada em medicina (EBM) e medicina baseada em evidências (MBE).
Essa descrença em nossa capacidade de intuir a realidade não somente destrói a coerência do ato profissional da medicina como também é reflexo de uma verdadeira idiotice promovida pela filosofia moderna e seu ceticismo irracionalista exagerado que até hoje nos rende tenebrosos frutos. Não se atormente com o uso da palavra “idiotice”, pois o faço de forma técnica no sentido de fechar-se em si mesmo, sem a possibilidade de compreender a realidade e o próximo mergulhado nela, distinto de si mesmo.
Olavo de Carvalho, em sua aula 499, lembra o famoso lema da fenomenologia husserliana: “Voltemos às coisas mesmas”. Essa é a proposta de uma filosofia intuicionista e realista, a única coerente no fim das contas, ainda mais quando se medita a partir da experiência cotidiana da medicina.
Essa apreensão ou intuição da realidade dá-se por meio do que os escolásticos denominavam Senso Comum, não no sentido de conhecimento das convenções, como hoje se expressa, mas no sentido de se possuir um sentido especial capaz de unificar as impressões da realidade obtidas por meio dos sentidos e compreender tais impressões como unidade imersa no real. É a visão que Xavier Zubiri resgata ao anunciar essa apreensão da realidade como elemento distintivo entre os homens e os animais não humanos.
Daí se depreende uma grande constatação: tudo o que é evidente só é perceptível para a consciência humana individual, por meio desse Senso Comum capaz de recuperar o Logos da realidade (sua inteligibilidade). É no ser humano que a percepção da unidade das coisas se dá. É na consciência do médico, durante uma consulta, que se apreende a unidade de tudo aquilo que faz o paciente sofrer e buscar ajuda. É na consciência do médico que a queixa do paciente se integra à sua história de vida e uma coerência maior é buscada.
Quando uma mesma coisa é apreendida por diversas pessoas e um relato é obtido acerca do que viram, o que se pode extrair em termos de discurso é uma abstração lógica capaz de reunir pontos em comum e consensos, mas que permanece longe da concretude inexplicável obtida pela rica apreensão imediata.
Isso nos leva a um paradoxo interessante e, por muitas vezes, perigoso. Só o indivíduo pode ter certeza absoluta de algo que presenciou. Logo, do ponto de vista objetivo, a apreensão individual é, tecnicamente, a mais fidedigna. Por outro lado, da perspectiva psicológica, maior a confiança que se presta a um relato quanto maior o número de pessoas que afirmam o mesmo. Isso gera uma situação recorrente na qual a verdade isolada pode sofrer diante de um falso consenso da maioria. Uma tensão inescapável, de certa forma, e que sempre se fará presente em nossa realidade.
A sede do conhecimento, portanto, reside na consciência do indivíduo. E só o indivíduo, em sua solidão, tem acesso à verdade absoluta.
A educação deveria ser justamente a transmissão da capacidade de acreditar na percepção individual, e não a desconfiança sistemática gerada pela falta de fé na possibilidade de se intuir a realidade e a verdade.
Em uma sociedade como a nossa, na qual toda a construção da inteligência arrisca se fundamentar na concepção de que toda a inteligência é frágil e incapaz de apreender a verdade, caminha-se para o colapso social gerado pela completa inépcia. Em palavras mais divertidas, poder-se-ia dizer que ninguém duvida da objetividade de uma nota de cem reais e sai por aí rasgando dinheiro ou gastando o que não se tem na conta bancária – pelo menos as pessoas mentalmente sãs não ousam fazê-lo. A partir do momento em que alguém realmente acreditar nessa falta de objetividade da realidade e viver de forma coerente com essa louca crença, estaremos em apuros.
Colocar a prova lógica acima da evidência imediata quando estas se contradizem assume um dos mais terríveis legados da cultura anglo-americana, que não passam de uma herança dos pensamentos cartesiano e kantiano. É o encerramento da consciência e da absorção da inteligibilidade da realidade.
Disto tudo, se depreende a necessidade de manter o ensino da medicina profundamente conectado na interação entre médico e paciente, fixado na conjeture das experiências humanas qualificadas por meio da ciência. Tal interação humana pode ser potencializada por uma adequada formação humanística de qualidade ou por uma educação de verdade.
Como afirma o francês Luc Ferry:
A educação é: cristão, judeu e grego. A educação é em primeiro lugar o amor, como querem os cristãos. Se uma criança não foi amada, ela terá muito menos capacidade, muito menos resiliência, a resiliência sendo a capacidade de se reestruturar frente aos incidentes da vida. Mas é preciso também transmitir a lei, que é o elemento judaico, a lei mosaica. É preciso ser capaz de dizer não a uma criança, e de dizer sim. Mas de tal modo que o seu sim seja sim e o seu não seja não. Não negociar com as crianças como se faz com um sindicato. E em terceiro lugar é preciso transmitir saber, as grandes obras. é o elemento grego, são os gregos que inventam os grandes gêneros literários para nós no Ocidente: a literatura, a filosofia, a cosmologia, a poesia, são os gregos que inventam isso. Assim, cristão, judeu e grego; o amor, a lei, as obras.[1]
Na medicina, a educação também é Cristo, Moisés e Sócrates. O amor – Cristo – se faz presente na caridosa compaixão que conecta o médico e o paciente, na capacidade de se comunicar de forma real. A lei – Moisés – se faz presente nos ditames éticos que norteiam ações terapêuticas. A ciência e a técnica – Sócrates e, de quebra, seu aprendiz Platão e Aristóteles – nos dão análises explicativas que permitem a melhor decisão com base nos padrões observáveis da natureza. Eis uma boa educação médica: valor, norma e ciência. E nada disso é possível se negarmos a nossa inerente capacidade de tocar a realidade e, dessa forma, a vida do próximo que vem nos solicitar socorro.


[1] FERRY, Luc. A revolução Transumanista. Barueri, SP: Manole, 2016, p. XXII-XXIII.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

RECUSA TERAPÊUTICA E OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

Foi publicada em 16 de setembro de 2019, na Seção I do Diário Oficial da União, uma resolução do Conselho Federal de Medicina dedicada a estabelecer normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência pelos médicos na relação médico-paciente.

Essas duas situações tocam profundamente nos princípios que regem a ética profissional ligada à saúde e, em especial, à ética médica, portadora de um antigo legado de valorização da vida humana em um contexto de excelência e beneficência.

A parte inicial da resolução trata da fundamentação legal do dispositivo, rememorando importantes conceitos como o da dignidade humana, a necessidade de consentimento do paciente salvo em casos de risco iminente de morte ou incapacidade decisória, as normativas éticas já estabelecidas para a medicina, o uso de diretivas antecipadas de vontade (dispostas na Resolução CFM 1.995/2012) e o papel de normatização e fiscalização do Conselho Federal de Medicina.

Embora o mau uso da expressão dignidade humana tenha sido motivo para que alguns bioeticistas se posicionassem contra tal noção, sua importância cultural e ética é inquestionável. Seja em sua forma religiosa, ligada à percepção da imagem de Deus no homem, seja em sua forma filosófica kantiana, elaborada em tempos mais recentes, que considera cada ser humano um fim em si mesmo, a noção de que cada vida humana possui dignidade é central para o esforço terapêutico da medicina e para um cuidado realmente humanizado com a pessoa. Na história da ética médica, segundo alguns historiadores como Ludwig Edelstein, tal conceito foi herdado dos pitagóricos pelos hipocráticos, que enxergavam em cada vida humana uma fagulha de divindade merecedora de respeito e proteção, assim como enxergavam em sua própria vida uma forma de sacerdócio, um comprometimento total do ser com os ideais mais elevados.

Ignorar a dignidade de cada ser humano e o papel sacerdotal do profissional é abrir portas para grandes erros do passado e do presente, como já foi feito por ideologias sangrentas como o comunismo e o nazismo, ou como ocorre quando algum ser humano é submetido a pesquisas antiéticas ou acontece a mercantilização vulgar da medicina.

É pela dignidade da vida humana que o médico compreende ser seu dever salvar alguém do risco iminente de morte, mesmo quando não autorizado expressamente a fazê-lo. É pela dignidade da vida humana que o médico busca reduzir ao máximo o impacto negativo da doença ou de sua própria terapia, seguindo o princípio da não-maleficência, o antigo primum non nocere

É por causa da dignidade de cada vida humana que, desde tempos hipocráticos, há um dever em tratar de forma respeitosa homens e mulheres, de todas as classes sociais, sem abusar da autoridade implícita da profissão. É por causa da dignidade humana que nobres médicos de regra ainda se colocam contra os horrores da eugenia e a favor da proteção dos membros mais frágeis e vulneráveis de nossa sociedade.

Com base no bem maior do paciente, é necessário considerar sua integridade e respeitar sua autonomia para decidir. Isso se reflete logo no primeiro artigo da resolução, que coloca a recusa terapêutica como direito do paciente a ser respeitado pelo médico. Mas tal decisão deve ser informada, um dos princípios essenciais da prática médica, para que o paciente realmente possa decidir com base na realidade de sua situação e com noções realmente adequadas sobre sua saúde.

O fato de informar o paciente requer sua lucidez aliada a um statusde capacidade decisória. Se o paciente for adulto, estiver lúcido e orientado no tempo e no espaço, e compreender o que está acontecendo consigo, ele estará em condições de decidir contra o tratamento, mesmo que isso o prejudique de alguma forma. Isso não impede que o médico lhe ofereça uma alternativa, ou um tratamento paliativo, como informa o segundo artigo da resolução. 

A ressalva, apontada no artigo 3º, ocorre quando o paciente não se encontra em um estado adequado para o exercício de sua autonomia. Entra aí o conceito de Escala Móvel, no qual doenças graves com risco à vida requerem maior grau de lucidez e autonomia por parte do paciente para que seja considerada efetiva a sua recusa terapêutica.

Caso o paciente seja menor de idade ou não apresente condições mentais de decidir, o médico deverá acionar as autoridades competentes, como a Polícia, o Conselho Tutelar ou o Ministério Público.

Entra em jogo também o princípio da Justiça, que visa ao bem comum, e o princípio amplo de beneficência, que visa o bem de terceiros ou, pelo menos, o impedimento de que algum mal seja feito a outrem. No caso de doença transmissível, risco à saúde de terceiros ou risco de contaminação que possa impactar a população, o médico deverá tomar as medidas necessárias para salvaguardar os demais além de seu paciente, tomando as devidas medidas necessárias para promover seu bem, mesmo que contra sua vontade ou, ao menos, proteger de alguma forma os demais.

O segundo parágrafo do quinto artigo aborda em especial o caso das gestantes, no qual é dever do médico e da mãe proteger o feto. Se uma decisão de recusa terapêutica da mãe prejudicar o feto, ocorre o que na resolução se denomina abuso de autoridade, devendo o médico intervir para promover o bem de ambos.

Caso a recusa terapêutica seja consumada, considerando que isso não deixa de ser uma quebra do princípio de beneficência terapêutica – ou biomédica – em prol de uma concentração moral no princípio de autonomia, o médico deve tomar as devidas providências para se resguardar profissionalmente. O fato deve ser anotado e assinado pelo paciente no prontuário e, caso haja risco de morte, contar com duas testemunhas, conforme dita o artigo 12. Quando não for possível um registro escrito por parte do paciente, recursos de áudio e vídeo podem ser utilizados desde que anexados digitalmente ao prontuário.

Embora o artigo 13 deixe claro que não tipifica infração ética de qualquer natureza o acolhimento da recusa terapêutica pelo médico, desde que tudo seja feito conforme essa resolução, é claro que há situações em que o próprio paciente ou seus familiares resolvem processar na esfera cível ou penal o médico, mediante a percepção de que este errou de alguma forma. É um risco inerente à profissão médica e não há como garantir que isso não ocorra.

Como o profissional médico de regra possui um forte apego à proteção de seus pacientes e, em nossa sociedade, ainda costuma valorizar a vida humana ao preservar parte do legado hipocrático, não é difícil de imaginar situações nas quais o profissional se recuse a aceitar a decisão do paciente não se tratar adequadamente. Eis a necessidade do dispositivo de objeção de consciência para o profissional.

Em casos de risco iminente de morte, é claro que o médico está eticamente autorizado – aliás, obrigado – a intervir com o intuito de salvar o paciente. Contudo, quando não houver risco imediato e grave, a resolução protege o direito de o paciente negar o tratamento proposto. Caso o médico discorde frontalmente da recusa terapêutica de seu paciente, deverá registrar sua posição no prontuário e comunicar o fato ao Diretor Técnico do local de seu trabalho ou ao Conselho Regional de Medicina, caso o atendimento tenha ocorrido em seu consultório particular.

A objeção de consciência do médico culminará em sua remoção do caso. O paciente deverá ser acompanhado por outro médico que concorde com a recusa terapêutica e faça as devidas adaptações no tratamento dispensado. Em uma situação na qual outro médico não esteja disponível e haja risco de agravo à saúde do paciente, o médico que alegou objeção de consciência deverá prestar auxílio pelo tempo necessário.

Em toda essa resolução, ficam muito claras algumas das virtudes e princípios exercidos pelo médico desde os tempos pré-cristãos.

A possibilidade de recusa remete ao respeito e à lealdade dedicados ao paciente, que é o centro da relação terapêutica. Porém, lealdade não é uma subserviência arbitrária, pois, assim como o paciente, o médico também é uma criatura moral, ele é herdeiro de um código ético específico, de uma longa tradição hipocrática de beneficência mediada por diversos princípios e virtudes morais apreendidas de grandes modelos profissionais que marcaram as eras.

Cada ser humano merece exercer sua autonomia com dignidade, desde que não oblitere a liberdade alheia ou cause o mal a terceiros. Também não se deve dispor de bens inegociáveis como a vida e a liberdade. Tanto a vida quanto a liberdade são meios essenciais para a existência digna. Esse equilíbrio de respeito à autonomia, proteção à vida e dedicação profissional por meio do comprometimento pessoal em busca de excelência em prol do paciente é perceptível nessa resolução, transcrita integralmente ao fim deste artigo.

Também não é novidade nenhuma o fato de que pessoas se negam ao tratamento. Há relatos históricos que demonstram recusa terapêutica desde tempos antigos, mesmo nos escritos hipocráticos, como descrevi em meu livro Arte Médica, no qual abordo as características profissionais que perpassam as eras e discuto o mito do forte paternalismo hipocrático.

Ao reconhecer a autonomia tanto do paciente quanto do médico, respeitando o direito de objeção de consciência e mantendo a proteção à vida humana em todas as suas manifestações como ponto inegociável da profissão médica, essa resolução se insere na nobre tradição da medicina e promove uma necessária atualização de tais situações clínicas, presentes há séculos na prática médica.

Hélio Angotti Neto
18 de setembro de 2019
Brasília, DF - Brasil






RESOLUÇÃO CFM Nº 2.232/2019
Publicada no D.O.U. de 16 de setembro de 2019, Seção I, p. 113-4

Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.

O CONSELHO FEDERAL  DE MEDICINA,  no  uso das  atribuições  conferidas pela  Lei nº3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº11.000, de 15 de dezembro de 2004,  e regulamentada  pelo  Decreto nº44.045,  de  19 de  julho  de  1958,  e pela  Lei nº12.842, de 10 de julho de 2013,

CONSIDERANDO que a  Constituição  Federal (CF)  elegeu  a dignidade  da  pessoa humana como umdos fundamentos da República;

CONSIDERANDO o Código Penal (Decreto-Lei nº2.848, de 7 de dezembro de 1940), em especial o  inciso  I  do  § 3º  do  art. 146,  que  exclui a  tipicidade  da conduta  nos  casos de intervenção  médica  sem o  consentimento  do paciente,  se justificada  por iminente  perigo de morte;

CONSIDERANDO o disposto  no  Código Civil  (Lei  nº10.406, de  10  de janeiro  de  2012) em relação à capacidade civil, à autonomia do paciente e ao abuso de direito;

CONSIDERANDO o Estatuto  da Criança  e  do Adolescente  (Lei  nº8.069, de  13  de julho de 1990);

CONSIDERANDO que a Lei  nº10.216,  de 6  de  abril de  2001,  assegura direitos  e proteção  a pessoas  com  transtorno mental  e  autoriza sua  internação  e tratamento involuntários ou compulsórios;

CONSIDERANDO o normatizado pelo Código de Ética Médica em relação aos direitos e deveres dos médicos e a autonomia dos pacientes;

CONSIDERANDO a Resolução  CFM nº1.995/2012,  que  dispõe sobre  as  diretivas antecipadas de vontade;

CONSIDERANDO que os  Conselhos  de Medicina  são,  ao mesmo  tempo,  julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo a eles zelar e trabalhar, com todos os meios a seu  alcance,  pelo perfeito  desempenho  ético da  medicina,  pelo prestígio  e  pelo bom conceito da profissão e dos que a exercem legalmente; e

CONSIDERANDO o decidido na sessão plenária de 17 de julho de 2019,

RESOLVE:

Art. 1ºA  recusa  terapêutica é,  nos  termos da  legislação  vigente e  na  forma desta Resolução,  um  direito do  paciente  a ser  respeitado  pelo médico,  desde  que esse  o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão.

Art.  2º É  assegurado ao  paciente maior de  idade, capaz,  lúcido,  orientado e  consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente. 

Parágrafo único. O médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível.

Art.  3º Em  situações  de risco  relevante  à saúde,  o  médico não  deve  aceitar a  recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades  mentais, independentemente  de  estarem representados  ou  assistidos por terceiros.

Art.  4º Em  caso de  discordância  insuperável entre  o  médico e  o  representante legal, assistente  legal  ou familiares  do  paciente menor  ou  incapaz quanto  à  terapêutica proposta,  o médico  deve  comunicar o  fato  às autoridades  competentes  (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente.

Art. 5º A recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico quando caracterizar abuso de direito.

§ 1º Caracteriza abuso de direito:

I –A recusa terapêutica que coloque em risco a saúde de terceiros.

II –A recusa  terapêutica  ao tratamento  de  doença transmissível  ou  de qualquer  outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação.

§ 2º A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio  mãe/feto, podendo  o  ato de  vontade  da mãe  caracterizar  abuso de  direito  dela em relação ao feto.

Art.   6º O   médico   assistente  em   estabelecimento   de  saúde,   ao   rejeitar  a   recusa terapêutica  do paciente,  na  forma prevista  nos  artigos 3º  e  4º desta  Resolução,  deverá registrar  o fato  no  prontuário e  comunicá-lo  ao diretor  técnico  para que  este  tome as providências  necessárias  perante as  autoridades  competentes, visando  assegurar  o tratamento proposto.

Art. 7ºÉ  direito  do médico  a  objeção de  consciência  diante da  recusa  terapêutica do paciente.

Art. 8ºObjeção de consciência é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica  do paciente,  não  realizando atos médicos  que,  embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.

Art.  9º A  interrupção  da relação  do  médico com  o  paciente por  objeção  de consciência impõe  ao  médico o  dever  de comunicar  o  fato ao  diretor  técnico do  estabelecimento  de saúde, visando  garantir  a continuidade  da  assistência por  outro  médico, dentro  de  suas competências.

Parágrafo  único. Em   caso  de   assistência   prestada  em   consultório, fora   de estabelecimento de saúde, o médico deve registrar no prontuário a interrupção da relação com o paciente por objeção de consciência, dando ciência a ele, por escrito, e podendo, a seu critério, comunicar o fato ao Conselho Regional de Medicina.

Art.  10. Na  ausência  de outro  médico, em  casos de  urgência  e emergência  e  quando a recusa terapêutica trouxer danos previsíveis à saúde do paciente, a relação com ele não pode ser interrompida por objeção de consciência, devendo o médico adotar o tratamento indicado, independentemente da recusa terapêutica do paciente.

Art.  11. Em  situações  de urgência  e  emergência que  caracterizarem  iminente perigo  de morte,  o médico  deve  adotar todas  as  medidas necessárias  e  reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica.

Art.  12. A  recusa terapêutica  regulamentada  nesta Resolução  deve  ser prestada, preferencialmente, por escrito e perante duas testemunhas quando a falta do tratamento recusado expuser o paciente a perigo de morte.

Parágrafo único. São admitidos outros meios de registro da recusa terapêutica quando o paciente  não puder  prestá-la  por escrito,  desde  que o  meio  empregado, incluindo tecnologia  com  áudio e  vídeo,  permita sua  preservação  e inserção  no  respectivo prontuário.

Art.   13. Não   tipifica   infração  ética de   qualquer   natureza,  inclusive   omissiva,   o acolhimento,  pelo médico,  da  recusa terapêutica  prestada  na forma  prevista  nesta Resolução.

Art.  14. Revoga-se a Resolução  CFM  nº1.021/1980, publicada  no  D.O.U. de  22  de outubro de 1980, seção I, parte II.

Art. 15. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, DF, 17 de julho de 2019.

CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA
Presidente

HENRIQUE BATISTA E SILVA
Secretário-geral

domingo, 14 de julho de 2019

A CORRUPÇÃO DO CURRÍCULO MÉDICO

Estive em maio de 2019 em um evento realizado no Conselho Federal de Medicina, em Brasília. Lá tive a oportunidade de comentar acerca dos problemas de cobertura vacinal que o Brasil enfrenta e das possíveis medidas de educação que poderiam ser feitas para ajudar o cidadão brasileiro por meio do Sistema Único de Saúde.

Conversa vai, conversa vem, e eis que uma das pessoas que assistia a tudo da plateia fala a respeito da importância de educar da forma correta – ou ensinar, a depender de quem fala. Disse algo sobre a perversão do currículo.

Ao retrucar, comentei que realmente se via uma grande perversão do currículo, ou corrupção do mesmo. Como um aluno que chega ao sétimo período de seu curso mal consegue palpar um abdome enquanto ao mesmo tempo foi obrigado a aprender vulgaridades ideológicas de certo elemento mais radical do espectro político brasileiro?

Isso é, de fato, um desserviço à população brasileira, que não poderá ter seu abdome palpado com proficiência em um letal caso de apendicite, mas poderá escutar algumas corruptelas e generalizações burras sobre Karl Marx. Afinal, quantos desses jovens irritados e manipulados por esclerosados ideólogos da velha guarda leram de verdade o que escreveu Karl Marx? Aliás, quantos desses esclerosados e rubros marxistas que abundam Brasil afora leram, de fato, o volumoso Das Kapital?

O ciclo de palestras e debate caminhava para o encerramento, mas um colega se levantou da plateia e, por uma questão de ordem, questionou acerca de o que eu queria dizer exatamente com a expressão currículo corrompido. “Quem são os corruptos? Dê nome aos bois!”, disse ele, renomado bioeticista.

É engraçado como críticas a atos e fatos são imediatamente personalizadas em nosso meio, é quase um cacoete mental e discursivo. Se critico a ideologia marxista e leninista como genocida, logo entendem por aí que tenho uma rixa pessoal com o elemento que acha ser marxista, mesmo sem ter lido duas páginas do infame panfleto O Manifesto Comunista.

Não que o colega curioso tenha lido pouco de Marx. Acredito – ou pelo menos espero - que tenha lido o suficiente, como todos no Brasil e mundo afora fariam bem em ler. Também deveriam todos ler Mises e Hayek, mas aí já é sonhar alto demais. A regra geral é estarmos em um oceano de especialistas em todos os assuntos que nunca estudaram de fato.

Voltemos ao assunto principal. Expliquei o óbvio: “Não falei de corruptos, mas sim de corrupção curricular”. E aqui vale a pena reproduzir um pouco do que penso ser esse efêmero produto da ignomínia educacional chamado de currículo corrompido ou pervertido.

O currículo corrompido é aquele incapaz de dialogar com a realidade. Simples assim.

Primeiro é preciso deixar bem claro que não há como negar a existência de uma realidade. Dizer que somos incapazes de apreender a realidade é uma afirmação contraditória, pois, como alguém ousa negar a possibilidade de apreender a realidade enquanto ao mesmo tempo tem a pretensão de afirmar ser ela indisponível à nossa apreensão e, portanto, ousar afirmar uma de suas características reais? Não faz sentido.

E essa realidade, na qual vivemos, possui elementos ontológicos inegáveis e elementos de construção social.

Alguns elementos ontológicos básicos são:

1 – Pessoas são limitadas e sofrem, adoecem e morrem;

2 – Quando fragilizadas, com sofrimento e limitações, podem solicitar ajuda;

3 – Há aqueles que, expostos ao pedido de socorro do próximo que sofre, oferecem ajuda (eis os profissionais da saúde e, entre eles, o médico).

Sobre esse arcabouço ontológico inegável, é óbvio que muitas construções sociais podem ser feitas, mas há um limite. 

Uma pessoa com melanoma maligno metastático avançado morrerá em breve. Seu velório será uma construção social, com toda a simbologia atrelada ao momento de dor e perda, mas a morte está lá, dolorosamente concreta, real. O cadáver não é, em si, uma construção, é um fato sobre o qual a cultura construirá por meio de seus signos.

Um currículo que não compreende sua destinação a intervir nessas realidades básicas descritas aqui, está desconectado da realidade.

Um aluno exposto a um currículo e que se encontra ao fim do curso incapaz de realizar uma manobra semiológica básica que diagnosticaria uma doença grave e prevalente, ou se encontra incapaz de realizar uma sutura simples em condições adequadas de antissepsia, é um aluno que sofreu a ação de um currículo corrompido. Pode ter aprendido muito Foucault, muito Karl Marx e até mesmo muito Zizek, Mészaros ou Dugin – o que duvido muito, considerando a pobreza mental de nossa intelectualidade esquerdista -, mas antes deveria ter aprendido semiologia, fisiopatologia clínica e farmacologia clínica. Faria bem em ter lido muito do Harrison, Novak, Nelson e Sabiston!

Quando observamos uma forte tendência à ideologização porca dos currículos, destinada a promover a formação de pequenos militantes portadores de bacharelado ao invés de eficazes interventores na saúde, seja individual, seja pública, temos um claro desvio de função curricular. Tal desvio leva à formação de um profissional fora do modelo estabelecido de médico, comprovadamente útil à sociedade e capaz de intervir em seus elementos ontológicos de forma eficaz conforme registros históricos milenares.

Quando o médico se torna agente político de um partido com ambições totalitárias – vide o passado recente do Brasil, clássico aplicador de um maroto leninismo mascarado com demagogia barata e moralismo burguês -, temos um currículo corrompido.

Antes de brincar de fabricar lacradores ideológicos radicais estupidificados, importa criar eficazes analistas da realidade de saúde do paciente, capazes de dialogar com o elemento ontológico e também com o elemento de construção social presentes na relação terapêutica com seu paciente.

Quanto aos elementos produtores e promotores de tais currículos corrompidos, resta saber se são corruptores ou corruptos, de fato. Na primeira opção, são perigosos manipuladores que intencionalmente distorcem a formação alheia, inventando um modelo de médico que só Deus sabe em que se tornará ao predominar na sociedade. Na segunda opção, caso sejam corruptos, foram aqueles que acreditaram na bondade de tal empreendimento de corrupção curricular e tornaram-se, eles mesmos, vítimas dessa deformação ideológica. Nenhuma das opções é lá muito lisonjeira.

Por fim, há que concordar que certas ideologias são menos compatíveis com a formação de um profissional destinado a salvar vidas e aliviar sofrimentos. Uma ideologia sangrenta e sociopática como a do comunismo, verdadeiro instrumento de massacre que dizimou vidas às centenas de milhões, não é capaz de criar um profissional médico adequado. A coerência cobrará seu preço intelectual e profissional cedo ou tarde. Contudo, o preço em vidas já é pago todos os dias há décadas e em extensa parte do mundo.

sábado, 25 de maio de 2019

NOMINALISMO, LUGAR DE FALA E BURRICE ABORTISTA

O IRRACIONALISMO ABORTISTA

Escutei uma sentença no mínimo curiosa, se não irracional. Em um evento médico dedicado a discutir a legalização do abortamento voluntário, doravante chamado de aborto, um colega obstetra lançou uma censura nos seguintes termos: “Quem é você para opinar? Eu mexo com isso todos os dias! Eu sei o que acontece.”

Sim, sou um simples oftalmologista que estuda humanidades médicas, filosofia da medicina e bioética há meros dezessete anos. Relativamente pouco tempo, porém, muito mais do que a maioria costuma estudar, há de convir.

Essa censura despertou em mim a reflexão de como a modernidade se afundou na burrice irracionalista de um nominalismo inconsequente. Antes que o leitor julgue que isso não passou de um estranho rótulo para confundir sua mente, ousarei explicar.

Para certo nominalismo inconsequente, fruto de uma puerilização da filosofia moderna, não existe realidade inteligível e classificável por meio de propriedades universais apreensíveis objetivamente pelo ser humano. Isso quer dizer que tudo o que vemos não passa de mera projeção subjetiva de nossas mentes, que inventam conceitos e classificam experiências por mera conveniência. Experiências estas incapazes de serem classificadas como reais de forma racional.

Hoje, esse subjetivismo nominalista, exacerbado ao ponto de ameaçar nos trancar em uma solitária cela mental, ao lado de vulgares determinismos sociais, permitiu a pessoas despreparadas que desclassificassem qualquer esforço racional de universalidade do conhecimento.

Ao invés de aplicar a boa e velha lógica aristotélica, opta-se por relativizar tudo, em um ambiente no qual a única certeza absoluta é a certeza de que tudo é relativo, menos essa louca e insustentável certeza.

Se sou oftalmologista, como poderia opinar acerca de uma questão como a do aborto? Estou para sempre preso em minhas circunstâncias, incapaz de lançar meu intelecto e meu ser rumo à empática e racional experiência de generalização. 

Para saber sobre aborto, não basta conhecer as experiências de vida comunicadas oralmente ou de forma escrita e ter estudado uma década ou mais sobre o assunto. É preciso ser ginecologista e obstetra, compreende?

Mas vou brincar um pouco mais com esses ridículos pressupostos condicionantes da razão humana. Quem é o colega do sexo masculino para falar do aborto? Ele não pode parir! Esta é outra pseudoargumentação, utilizada por muitas abortistas e aborteiras contra médicos do sexo masculino que ousam dar opinião sobre aborto. E, logo, em cada comunicação, vem aquela manjada história de que esse ou aquele é ou não é o meu ou o seu lugar de fala... Que canseira.

Mas quem é a médica obstetra para opinar se nunca tiver abortado ou tido filhos? Esta seria a próxima pergunta.

Mas vamos supor que a médica tenha tido filhos e tenha abortado. Quem é ela para opinar acerca da situação que não é a dela? Não foi ela quem viveu o que sua paciente vive.

Aliás, quem é a mulher que quer abortar para ousar conversar com qualquer outro ser que não ela mesma? Como ela pode sequer se dirigir a uma médica ou médico, ou a qualquer pessoa, aliás, já que a experiência dela é uma coisa, e a do outro ser é outra?

Se vocês acompanharam esta breve sequência imaginária, já perceberam que qualquer tentativa nominalista de desclassificar ou desconstruir a racionalidade do discurso acabará num esforço insano e autocontraditório que deixará a humanidade em completo estado de incomunicabilidade. Seremos todos balbuciantes partículas irracionais imersos em uma grande e louca miragem.

E não vou nem falar dos oncologistas e sua pretensão de cuidar de pessoas com câncer ou dos paliativistas. Se começarmos a cobrar lugares de falacomo tem ocorrido em certas discussões, teremos uma séria ameaça de extinção de toda uma classe profissional.

Dizer que o irracionalismo subjetivista de um exagero inconsequente do nominalismo é inaceitável e contraditório não quer dizer que eu esteja abolindo a importância da experiência subjetiva ou das circunstâncias. Como disse Ortega y Gasset, nós somos produto de uma concreta mistura entre nosso ser e nossas circunstâncias.

Analisamos a realidade de dentro dela, o que em nada desqualifica o fato de que olhamos para a realidade com todas as certezas e enganos que ela nos oferece. Logo, se algum abortista vier com essa conversa mole de lugar de fala e outros estúpidos argumenta ad igorantiam argumenta ad hominem, cabe a resposta do famoso filósofo brasileiro Olavo de Carvalho: cala a boca, burro!