Estive em maio de 2019 em um evento realizado no Conselho Federal de Medicina, em Brasília. Lá tive a oportunidade de comentar acerca dos problemas de cobertura vacinal que o Brasil enfrenta e das possíveis medidas de educação que poderiam ser feitas para ajudar o cidadão brasileiro por meio do Sistema Único de Saúde.
Conversa vai, conversa vem, e eis que uma das pessoas que assistia a tudo da plateia fala a respeito da importância de educar da forma correta – ou ensinar, a depender de quem fala. Disse algo sobre a perversão do currículo.
Ao retrucar, comentei que realmente se via uma grande perversão do currículo, ou corrupção do mesmo. Como um aluno que chega ao sétimo período de seu curso mal consegue palpar um abdome enquanto ao mesmo tempo foi obrigado a aprender vulgaridades ideológicas de certo elemento mais radical do espectro político brasileiro?
Isso é, de fato, um desserviço à população brasileira, que não poderá ter seu abdome palpado com proficiência em um letal caso de apendicite, mas poderá escutar algumas corruptelas e generalizações burras sobre Karl Marx. Afinal, quantos desses jovens irritados e manipulados por esclerosados ideólogos da velha guarda leram de verdade o que escreveu Karl Marx? Aliás, quantos desses esclerosados e rubros marxistas que abundam Brasil afora leram, de fato, o volumoso Das Kapital?
O ciclo de palestras e debate caminhava para o encerramento, mas um colega se levantou da plateia e, por uma questão de ordem, questionou acerca de o que eu queria dizer exatamente com a expressão currículo corrompido. “Quem são os corruptos? Dê nome aos bois!”, disse ele, renomado bioeticista.
É engraçado como críticas a atos e fatos são imediatamente personalizadas em nosso meio, é quase um cacoete mental e discursivo. Se critico a ideologia marxista e leninista como genocida, logo entendem por aí que tenho uma rixa pessoal com o elemento que acha ser marxista, mesmo sem ter lido duas páginas do infame panfleto O Manifesto Comunista.
Não que o colega curioso tenha lido pouco de Marx. Acredito – ou pelo menos espero - que tenha lido o suficiente, como todos no Brasil e mundo afora fariam bem em ler. Também deveriam todos ler Mises e Hayek, mas aí já é sonhar alto demais. A regra geral é estarmos em um oceano de especialistas em todos os assuntos que nunca estudaram de fato.
Voltemos ao assunto principal. Expliquei o óbvio: “Não falei de corruptos, mas sim de corrupção curricular”. E aqui vale a pena reproduzir um pouco do que penso ser esse efêmero produto da ignomínia educacional chamado de currículo corrompido ou pervertido.
O currículo corrompido é aquele incapaz de dialogar com a realidade. Simples assim.
Primeiro é preciso deixar bem claro que não há como negar a existência de uma realidade. Dizer que somos incapazes de apreender a realidade é uma afirmação contraditória, pois, como alguém ousa negar a possibilidade de apreender a realidade enquanto ao mesmo tempo tem a pretensão de afirmar ser ela indisponível à nossa apreensão e, portanto, ousar afirmar uma de suas características reais? Não faz sentido.
E essa realidade, na qual vivemos, possui elementos ontológicos inegáveis e elementos de construção social.
Alguns elementos ontológicos básicos são:
1 – Pessoas são limitadas e sofrem, adoecem e morrem;
2 – Quando fragilizadas, com sofrimento e limitações, podem solicitar ajuda;
3 – Há aqueles que, expostos ao pedido de socorro do próximo que sofre, oferecem ajuda (eis os profissionais da saúde e, entre eles, o médico).
Sobre esse arcabouço ontológico inegável, é óbvio que muitas construções sociais podem ser feitas, mas há um limite.
Uma pessoa com melanoma maligno metastático avançado morrerá em breve. Seu velório será uma construção social, com toda a simbologia atrelada ao momento de dor e perda, mas a morte está lá, dolorosamente concreta, real. O cadáver não é, em si, uma construção, é um fato sobre o qual a cultura construirá por meio de seus signos.
Um currículo que não compreende sua destinação a intervir nessas realidades básicas descritas aqui, está desconectado da realidade.
Um aluno exposto a um currículo e que se encontra ao fim do curso incapaz de realizar uma manobra semiológica básica que diagnosticaria uma doença grave e prevalente, ou se encontra incapaz de realizar uma sutura simples em condições adequadas de antissepsia, é um aluno que sofreu a ação de um currículo corrompido. Pode ter aprendido muito Foucault, muito Karl Marx e até mesmo muito Zizek, Mészaros ou Dugin – o que duvido muito, considerando a pobreza mental de nossa intelectualidade esquerdista -, mas antes deveria ter aprendido semiologia, fisiopatologia clínica e farmacologia clínica. Faria bem em ter lido muito do Harrison, Novak, Nelson e Sabiston!
Quando observamos uma forte tendência à ideologização porca dos currículos, destinada a promover a formação de pequenos militantes portadores de bacharelado ao invés de eficazes interventores na saúde, seja individual, seja pública, temos um claro desvio de função curricular. Tal desvio leva à formação de um profissional fora do modelo estabelecido de médico, comprovadamente útil à sociedade e capaz de intervir em seus elementos ontológicos de forma eficaz conforme registros históricos milenares.
Quando o médico se torna agente político de um partido com ambições totalitárias – vide o passado recente do Brasil, clássico aplicador de um maroto leninismo mascarado com demagogia barata e moralismo burguês -, temos um currículo corrompido.
Antes de brincar de fabricar lacradores ideológicos radicais estupidificados, importa criar eficazes analistas da realidade de saúde do paciente, capazes de dialogar com o elemento ontológico e também com o elemento de construção social presentes na relação terapêutica com seu paciente.
Quanto aos elementos produtores e promotores de tais currículos corrompidos, resta saber se são corruptores ou corruptos, de fato. Na primeira opção, são perigosos manipuladores que intencionalmente distorcem a formação alheia, inventando um modelo de médico que só Deus sabe em que se tornará ao predominar na sociedade. Na segunda opção, caso sejam corruptos, foram aqueles que acreditaram na bondade de tal empreendimento de corrupção curricular e tornaram-se, eles mesmos, vítimas dessa deformação ideológica. Nenhuma das opções é lá muito lisonjeira.
Por fim, há que concordar que certas ideologias são menos compatíveis com a formação de um profissional destinado a salvar vidas e aliviar sofrimentos. Uma ideologia sangrenta e sociopática como a do comunismo, verdadeiro instrumento de massacre que dizimou vidas às centenas de milhões, não é capaz de criar um profissional médico adequado. A coerência cobrará seu preço intelectual e profissional cedo ou tarde. Contudo, o preço em vidas já é pago todos os dias há décadas e em extensa parte do mundo.