domingo, 2 de julho de 2017

O DEVER DE MATAR

O DEVER DE MATAR

O pesadelo do ser humano submisso à tecnocracia utilitarista




A cada dia a Cultura da Morte penetra mais fundo na Medicina, fazendo com que a antiga arte traia sua vocação hipocrática e cristã. Uma das ferramentas da Cultura da Morte é a Disbioética, uma forma deturpada de estudar e disseminar práticas imorais que infecta e envenena a discussão acadêmica espalhando-se como um vírus letal nas mentes da elite universitária. E duas das grandes bandeiras da Disbioética são a Eutanásia e o Suicídio Assistido.

Subjacente a essas práticas mórbidas estão diversas idéias inegavelmente tenebrosas.

Uma dessas idéias, apontada por Jeffrey Bishop, médico e filósofo da Saint Louis University, é a de que o foco na qualidade de vida desviou perigosamente o foco anterior da medicina em conservar a vida humana, permitindo hoje a instrumentalização da morte e a ação totalitária do médico sobre a vida do paciente.[1]

Numa linguagem muito semelhante àquela utilizada por médicos nazistas do começo do século XX que encarnaram a epítome da medicina desumanizada e submissa a um Estado assassino, fala-se hoje novamente em morte digna, vida indigna e interrupção misericordiosa da vida para expressar o anseio em encerrar brevemente a existência ou até mesmo evitar o parto daqueles humanos indesejados.

Muitos defendem a possibilidade de matar pacientes, cometer suicídio com a ajuda de médicos e até mesmo matar o próprio filho como direitos dos pacientes, ousando chamá-los inclusive de Direitos Humanos, numa linguagem realmente torpe.

É óbvio, ou deveria ser, que um direito de alguém exige um dever de outro. Se eu tenho direito a algo, alguém tem a obrigação de executar um ato que concretize meu direito. Daí a conclusão inevitável de que a atual grande discussão em Bioética é justamente a limitação da objeção de consciência e a possível escravidão moral e espiritual da classe médica, que será obrigada a matar.

Quando o assassinato for legalizado, a sociedade provavelmente cairá em uma progressiva dessensibilização moral, como já acontece com a Holanda. Após a legalização e a formalização do suicídio assistido, o perfil da casuística de mortes está mudando radicalmente. 

Relativamente são exterminados menos pacientes com câncer e mais pacientes com distúrbios psiquiátricos, uma indicação eticamente muito mais controversa para a permissão do suicídio assistido. Hoje também já se observam as clínicas da morte, que entregam o produto letal de forma rápida e sem empecilhos desconfortáveis, denotando alta eficácia em matar a custos reduzidos, sem muitas perguntas.[2] O próximo passo é a liberação da eutanásia para pessoas saudáveis acima de 75 anos.[3] Ser velho voltou a ser uma boa razão para ser morto, como já fora defendido por iluminados utilitaristas do passado recente, que defendiam medidas muito “humanas” como a câmara de gás para pessoas que não fossem capazes de se adequar à sociedade, incluindo idosos sem capacidade laboral.[4]

Relatos como o reproduzido a seguir denotam o quanto tudo está fugindo do controle:

Durante o acampamento de verão de minha paróquia no interior de Quebec, três anciões receberam o diagnóstico de câncer no hospital local, um estabelecimento interiorano a uma hora de viagem de carro do centro urbano de Ottawa e ainda mais distante da super-secular Montreal. Porém, após a informação do diagnóstico, a primeira questão perguntada para cada uma dessas pessoas foi 'você quer fazer eutanásia?' É isso o que o sistema canadense de eutanásia alcançou em apenas poucos meses: colocou a eutanásia no topo das opções do cardápio proposto para pessoas gravemente doentes.[5]

Como os novos médicos serão ensinados nesse contexto de vulgarização da morte? Serão eles instruídos a oferecer a eutanásia como qualquer outra opção ou até mesmo como a primeira opção? Serão eles pressionados para corte de gastos monetários e emocionais com a eliminação dos "casos difíceis"? Respeitarão aqueles médicos que ousarem alegar objeção de consciência?

Se, para o paciente, toda essa conversa pode soar assustadora, para o médico que honra a vida humana e a protege isso pode significar o fim de sua carreira ou a corrupção definitiva de sua vocação, pois agora o risco é que sejam realmente forçados a matar.

Num regresso aos tempos pré-hipocráticos, é o médico quem novamente irá administrar venenos, abandonando seu ancestral juramento sagrado de proteção da vida humana, equiparando-se novamente aos mortais feiticeiros e assassinos da antiguidade, desprezando a profissão que por tantos séculos angariou a admiração e o respeito de tantos povos.[6]

E todo esse descalabro assumiu recentemente uma face ainda mais assustadora, embora em nada imprevisível, como se vê no caso do bebê Charlie Gard, do Reino Unido. Nesse macabro caso, os pais do bebê, que sofre de uma doença rara e quase sempre letal - a Síndrome de Depleção Mitocondrial -, precisam implorar pela oportunidade de removerem seu filho do hospital estatal inglês e levá-lo a um médico particular de outro país para tentar um tratamento alternativo e caríssimo.[7]


Não é o caso de gastar o dinheiro do contribuinte inglês num tratamento milionário para salvar, talvez, uma única vida. Os médicos, a serviço do Estado e não do paciente, proibiram a remoção do bebê do hospital e decretaram que o melhor a ser feito era deixar que morresse sem tentar o caro tratamento em outro país.

Podemos ter, nesse caso do pequeno Charlie e sua família desautorizada pelo Estado a tentar salvá-lo, um vislumbre de nosso sombrio presente e nosso nada promissor futuro. A vida do bebê não está mais sob a tutela de seus pais que o amam profundamente, está nas mãos da tecnocracia estatal que julgou não valer a pena lutar por sua vida, tão insignificante como a vida de qualquer incapacitado é para os cálculos utilitaristas dos burocratas que enxergam números e não pessoas.[8]

Fomos avisados há décadas sobre esse mal que emergia na alma da medicina e da sociedade contemporânea, mas permanecemos surdos ao ressurgimento da Cultura da Morte.[9] O ser humano tornou-se um objeto de cálculos utilitaristas, um frio produto cujo preço deve ser avaliado para, no fim, ser considerado digno ou não de viver.[10]

Talvez a pergunta que todos devamos fazer seja a seguinte: desde quando viramos objetos de uma tecnocracia impessoal que decide o quanto vale nossa vida ou qual a sua “qualidade”?

Você quer um Estado que decida que está na hora de você morrer? Para mim, um dos piores pesadelos distópicos possíveis é viver numa sociedade em que a elite tecnocrática de um Estado tirano encontrou meios formais para livrar-se daqueles os quais julga inúteis.

Até quando você será útil?

Hélio Angotti Neto
Colatina, 02 de julho de 2017.




[1] BISHOP, Jeffrey. The Anticipatory Corpse. Medicine, Power, and the Care of the Dying. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2011.
[2] KOOPMAN, Jacob J. E.  ‘Developments in the Practice of Physician-Assisted Death Since Its Legalization in the Netherlands’. Dignitas 23, no. 2, Summer 2016, p. 9-14. Internet, https://cbhd.org/content/developments-practice-physician-assisted-death-its-legalization-netherlands
[3] FREIRE, Emma Elliott. Netherlands Considers Euthanasia For Healthy People, Doctors Say Things Are ‘Getting Out Of Hand’. The proposed 'Completed Life Bill' would allow any person over age 75 to receive euthanasia. Even if they are perfectly healthy. The Federalist. Internet, http://thefederalist.com/2017/06/30/netherlands-considers-euthanasia-healthy/?utm_source=The+Federalist+List&utm_campaign=e8d13aa942-RSS_The_Federalist_Daily_Updates_w_Transom&utm_medium=email&utm_term=0_cfcb868ceb-e8d13aa942-52858105
[4] "The notion that persons should be safe from extermination as long as they do not commit willful murder, or levy war against the Crown, or kidnap, or throw vitriol, is not only to limit social responsibility unnecessarily, and to privilege the large range of intolerable misconduct that lies outside them, but to divert attention from the essential justification for extermination, which is always incorrigible social incompatibility and nothing else." Fonte: SHAW, George Bernard. Plays Political: The Apple Cart, On the Rocks, Geneva. Penguin Classics: 1990.
"We should find ourselves committed to killing a great many people whom we now leave living, and to leave living a great many people whom we at present kill. We should have to get rid of all ideas about capital punishment … A part of eugenic politics would finally land us in an extensive use of the lethal chamber. A great many people would have to be put out of existence simply because it wastes other people's time to look after them." Fonte: SHAW, George Bernard. Lecture to the Eugenics Education Society. The Daily Express, 4 de março, 1910.
"The moment we face it frankly we are driven to the conclusion that the community has a right to put a price on the right to live in it … If people are fit to live, let them live under decent human conditions. If they are not fit to live, kill them in a decent human way. Is it any wonder that some of us are driven to prescribe the lethal chamber as the solution for the hard cases which are at present made the excuse for dragging all the other cases down to their level, and the only solution that will create a sense of full social responsibility in modern populations?" Fonte: SHAW, George Bernard. Prefaces. London: Constable and Company, 1934, p. 296.
[5] GRANT, Edward R. Cracks in the wall: confronting the legalization of physician-assisted suicide and euthanasia. DIGNITAS, 2016, Volume 23(3), p.1, 4-6.
[6] ANGOTTI NETO, Hélio. A tradição da medicina. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2016.
[7] HAWKEN, Abe. Terminally ill baby Charlie Gard's parents 'utterly distraught' after losing final appeal in European court - meaning their son's life support WILL be switched off. Mail Online. Internet, http://www.dailymail.co.uk/news/article-4644268/Charlie-Gard-s-parents-lose-final-appeal.html#ixzz4ljCBPbrP 
[8] WALSH, Matt. Tradução e adaptação: Equipe do site Christo Nihil Praeponere. Bebê é sentenciado à morte por Tribunal Europeu dos “Direitos Humanos”. Descubra o que está por trás da sentença de morte do pequeno Charlie Gard, o bebê cuja vida e família foram simplesmente “atropeladas” pela decisão irrecorrível de um tribunal. Internet, https://padrepauloricardo.org/blog/bebe-e-sentenciado-a-morte-por-tribunal-europeu-dos-direitos-humanos
[9] Em obra a ser traduzida em breve pela Editora Monergismo: KOOP, C. Everett; SCHAEFFER, Francis A. Whatever Happened to the Human Race? Wheaton, Illinois: Crossway, 1983.
[10] WEIKART, Richard. The Death of Humanity and the Case for Life. New Jersey, Regnery Faith, 2016.