O QUE É FORMAR UM MÉDICO INTEGRALMENTE?
ENTREVISTA CEDIDA AO NÚCLEO ACADÊMICO DO SINDICATO DOS MÉDICOS DO RIO GRANDE DO SUL
Entrevistador: O senhor
defende que os médicos precisam buscar uma formação humanista, além da técnica
e científica. O que exatamente o senhor deseja propor com esta abordagem?
A reconquista dos instrumentos intelectuais e para a formação do caráter
que foram abandonados pela concepção pedagógica presente. O médico precisa do
aporte científico e dos instrumentos de aprendizagem ativa e medicina baseada
em evidências para atualizar-se, mas precisa também da formação humanística
antiga que o capacitará a agir em sociedade, compreender a realidade e pensar
de forma aguçada e verdadeiramente crítica. Não há atalhos neste quesito,
formação humanística não é bom mocismo, é captar e integrar em seu ser o
conhecimento acumulado de mais de dois mil anos de história e pensamento.
Entrevistador: Por que
é importante integrar o lado humanista na formação do médico?
Por que a ciência não esgota e jamais esgotará o ser humano. Cada
paciente é uma vida única e oferece um desafio inédito. Há coisas em nossas
práticas que são gerais, porém, sem a riqueza moral e intelectual adequadas,
falharemos em aplicar os conhecimentos científicos à realidade concreta ou em
obter sucesso no tratamento. Do que adianta passar o tratamento certo se o
paciente não confia em você? De que adianta saber medicina baseada em
evidências se te falta o conhecimento literário e hermenêutico de interpretação
dialética dos textos para enxergar nas entrelinhas o que não está escrito? O médico
que reduz seu conhecimento à medicina compreendida como empreendimento
científico somente também negligencia seu papel de agente de influência na
sociedade, e serve cegamente a interesses alheios que muitas vezes priorizam
qualquer outra coisa, menos a saúde do paciente.
Entrevistador: O senhor
fala em médico integral? O que é este conceito?
É o médico que une o melhor da ciência, da técnica, da virtude e das
humanidades. É um profissional que seja capaz de realizar um procedimento de
qualidade, com a indicação adequada, na hora certa e com o estabelecimento de
uma relação médico-paciente sólida sustentada na confiança do paciente e na
honra e excelência do médico.
Entrevistador: Por que
é preciso pensar a Medicina em um contexto maior do que normalmente se pensa
nas escolas?
Por que lidar com o ser humano é uma das tarefas mais complexas que se
pode executar. Lidar com a vida, a morte, a doença e a saúde são atividades que
abrangem os cumes e os vales mais sombrios da experiência humana. Lidamos dia a
dia com os anseios mais profundos e os maiores tormentos da humanidade e
perdemos a capacidade de formar pessoas integralmente. Se não há formação de
caráter e formação cultural adequadas, teremos médicos superficiais e
desarticulados, incapazes de lidar com as complexas situações de seus pacientes
e incapazes de agir eficazmente em sociedade para promover a tão desejada saúde
integral, utopia muito mencionada, porém pouco pensada de fato.
Uma das coisas que mais me preocupa em termos de educação médica em
humanidades é a vulgarização do termo e a utilização dessa busca por uma
formação integral para inserir nos currículos a mais vulgar manipulação
ideológica, censurando o legado cultural verdadeiro de nossa civilização e
oferecendo as mais vis e baixas formulações pseudointelectuais no lugar do
conteúdo de verdade. Felizmente, os alunos de medicina costumam ser
inteligentes demais para cair nessa cilada. O problema é que muitos acreditam
que humanidades se resumem à vulgaridade ideológica e se concentram somente no
aspecto científico da medicina, suprimindo a possibilidade de buscar uma
verdadeira formação humanística. Mesmo que discordem, engolem a mentira que foi
contada e acreditam que as humanidades nada mais são do que loucura e
enganação.
Entrevistador: Qual é o
papel do médico na sociedade?
O médico é o guardião da saúde humana e da vida de seu paciente. É o
ombro amigo que consola quem está prestes a partir e aqueles que estão prestes
a perder um parente amado e que ficarão para trás, enlutados. O médico é aquele
que observa a sociedade com olhos atentos e mente penetrante, apto a
diagnosticar problemas individuais e coletivos e propor uma terapia ao
contemplar o prognóstico. O médico é aquele compromissado com a beneficência de
seu paciente mediante o uso da prudência, da inteligência e de todas as suas
virtudes. O médico é aquele que busca a excelência em sua arte em prol de seu
paciente. Nosso papel é o de guardião dos mais frágeis entre nós, é responder
ao pedido de socorro.
Entrevistador: Como o
senhor vê as políticas públicas para a saúde?
Muito boas no papel, péssimas na prática. Leis e dinheiro não mudam uma
população, o bandido sempre encontra a ocasião. Precisamos de mudanças na
cultura, no caráter e na inteligência. O Brasil está entre os países mais
violentos, mais corruptos e mais burros do mundo! Esses são problemas de
"saúde" gravíssimos, e precisamos realmente repensar nosso pais. Como
um país desse tamanho e com essa riqueza, repleto de gente trabalhadora e
esforçada, pode estar entre os últimos colocados nos testes de conhecimento a
nível internacional? Como um país de gente que era tão pacífica pode ter se
transformado em um campeão de assassinatos? Creio que políticas públicas são
necessárias e, em geral, são bem formuladas. Mas não temos uma elite com o
caráter e a vontade para realmente fazer acontecer um Brasil de verdade. Temos
espoliadores que buscam nutrir-se do sistema mesmo que para isto tenham que
destruir seu hospedeiro.
Entrevistador: O senhor
vê um movimento para diminuir o prestígio da categoria médica?
Médicos bons e médicos ruins sempre existiram, desde os tempos
hipocráticos, ao longo da Idade Média e ainda hoje. Mas é a primeira vez que se
observa um governo sistematicamente infiltrar-se em conselhos profissionais,
montar propagandas claramente ofensivas contra toda uma classe profissional e
utilizar o discurso de guerra de classes e ódio para a premeditada destruição
daquilo que consideram uma elite concorrente. O fato de que tudo tenha vindo à
tona no momento em que médicos ao lado de muitos outros profissionais da
saúde foram às ruas em 2013 para reclamar melhores condições é extremamente
sugestivo. Na política há pouco espaço para o acaso. Assistimos à votação do
Ato Médico, na qual médicos foram acusados de criar a doença para enriquecer,
observamos as propagandas acusando médicos de racistas com a falsa
interpretação de dados do SUS e até mesmo uma presidente agindo de forma
leviana ao acusar a classe médica de tratar mal os pacientes brasileiros. Uma
grande e esforçada maioria, incluindo alguns exemplos heroicos de
dedicação, pagou pelo erro de poucos e pela maldade institucionalizada de um
governo indecente.
Entrevistador: Gestão e
liderança tem sido exigido dos médicos. Estes conceitos são importantes? São
tão importantes quanto a formação política e filosófica?
Sem dúvida a gestão e a liderança são importantíssimos. Na formação
humanística clássica, por exemplo, partia-se do estudo do indivíduo (Ética e
Psicologia, chamada de estudo da alma) e dos discursos (Gramática, Lógica,
Dialética e Retórica) e alcançava-se o estudo da sociedade como um todo
(Política). Contudo, no meio do caminho estava o estudo das relações de
trabalho e das relações familiares, chamado de economia (Oiko = comunidade;
Nomos = regras). O médico é o responsável pela equipe, e deve aprender a agir
como tal, assim como deve aprender e desenvolver o caráter e a nobreza de um
verdadeiro líder, demandando respeito por meio do exemplo acima de tudo.
Conforme disse o filósofo britânico Roger Scruton:
"Da mesma forma, as
pessoas vão obter educação somente se elas a desejarem por seu próprio fim, mas
conseguirão bem mais do que isso. Elas vão adquirir a habilidade de se
comunicar, de persuadir, de atrair e de dominar. Em qualquer arranjo social, tais
capacidades serão vantagens, mas a educação nunca pode ser buscada somente como
meios para elas, mesmo se são sua consequência natural." (SCRUTON,
Roger. O Que É Conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015.)
A educação em humanidades deve ser desafiadora, deve ser interessante e
prazerosa. Buscada em si para o desenvolvimento do caráter, da inteligência e
pelo prazer intelectual e emocional que proporciona, automaticamente capacitará
o médico ao desenvolvimento da liderança.
Entrevistador: Qual
conselho o senhor daria para a categoria médica? E para os acadêmicos?
Aos colegas permanecer firme no antigo mandamento: Amar o próximo como
amam a si mesmos. Exercer o dom da empatia com competência e com compaixão.
Aos acadêmicos, que sejam bons médicos agora! Sejam excelentes em suas
áreas. Dediquem-se verdadeiramente aos seus pacientes. Não tenham pressa em
terminar seus estudos formais e entendam que não há desculpas depois para a
falta de conhecimentos. Aquilo que se conquista e se integra à personalidade é
um tesouro que ninguém pode remover. Cresçam e amadureçam o quanto antes, em
todos os sentidos. Busquem ser médicos na verdadeira acepção da palavra.
Hélio Angotti Neto
03 de julho, Colatina –
ES.