segunda-feira, 3 de julho de 2017

ENTREVISTA: O que é formar um médico integralmente?

O QUE É FORMAR UM MÉDICO INTEGRALMENTE?

ENTREVISTA CEDIDA AO NÚCLEO ACADÊMICO DO SINDICATO DOS MÉDICOS DO RIO GRANDE DO SUL

 

Entrevistador: O senhor defende que os médicos precisam buscar uma formação humanista, além da técnica e científica. O que exatamente o senhor deseja propor com esta abordagem?

A reconquista dos instrumentos intelectuais e para a formação do caráter que foram abandonados pela concepção pedagógica presente. O médico precisa do aporte científico e dos instrumentos de aprendizagem ativa e medicina baseada em evidências para atualizar-se, mas precisa também da formação humanística antiga que o capacitará a agir em sociedade, compreender a realidade e pensar de forma aguçada e verdadeiramente crítica. Não há atalhos neste quesito, formação humanística não é bom mocismo, é captar e integrar em seu ser o conhecimento acumulado de mais de dois mil anos de história e pensamento.

Entrevistador: Por que é importante integrar o lado humanista na formação do médico?

Por que a ciência não esgota e jamais esgotará o ser humano. Cada paciente é uma vida única e oferece um desafio inédito. Há coisas em nossas práticas que são gerais, porém, sem a riqueza moral e intelectual adequadas, falharemos em aplicar os conhecimentos científicos à realidade concreta ou em obter sucesso no tratamento. Do que adianta passar o tratamento certo se o paciente não confia em você? De que adianta saber medicina baseada em evidências se te falta o conhecimento literário e hermenêutico de interpretação dialética dos textos para enxergar nas entrelinhas o que não está escrito? O médico que reduz seu conhecimento à medicina compreendida como empreendimento científico somente também negligencia seu papel de agente de influência na sociedade, e serve cegamente a interesses alheios que muitas vezes priorizam qualquer outra coisa, menos a saúde do paciente.

Entrevistador: O senhor fala em médico integral? O que é este conceito?

É o médico que une o melhor da ciência, da técnica, da virtude e das humanidades. É um profissional que seja capaz de realizar um procedimento de qualidade, com a indicação adequada, na hora certa e com o estabelecimento de uma relação médico-paciente sólida sustentada na confiança do paciente e na honra e excelência do médico.

Entrevistador: Por que é preciso pensar a Medicina em um contexto maior do que normalmente se pensa nas escolas?

Por que lidar com o ser humano é uma das tarefas mais complexas que se pode executar. Lidar com a vida, a morte, a doença e a saúde são atividades que abrangem os cumes e os vales mais sombrios da experiência humana. Lidamos dia a dia com os anseios mais profundos e os maiores tormentos da humanidade e perdemos a capacidade de formar pessoas integralmente. Se não há formação de caráter e formação cultural adequadas, teremos médicos superficiais e desarticulados, incapazes de lidar com as complexas situações de seus pacientes e incapazes de agir eficazmente em sociedade para promover a tão desejada saúde integral, utopia muito mencionada, porém pouco pensada de fato.

Uma das coisas que mais me preocupa em termos de educação médica em humanidades é a vulgarização do termo e a utilização dessa busca por uma formação integral para inserir nos currículos a mais vulgar manipulação ideológica, censurando o legado cultural verdadeiro de nossa civilização e oferecendo as mais vis e baixas formulações pseudointelectuais no lugar do conteúdo de verdade. Felizmente, os alunos de medicina costumam ser inteligentes demais para cair nessa cilada. O problema é que muitos acreditam que humanidades se resumem à vulgaridade ideológica e se concentram somente no aspecto científico da medicina, suprimindo a possibilidade de buscar uma verdadeira formação humanística. Mesmo que discordem, engolem a mentira que foi contada e acreditam que as humanidades nada mais são do que loucura e enganação. 

Entrevistador: Qual é o papel do médico na sociedade?

O médico é o guardião da saúde humana e da vida de seu paciente. É o ombro amigo que consola quem está prestes a partir e aqueles que estão prestes a perder um parente amado e que ficarão para trás, enlutados. O médico é aquele que observa a sociedade com olhos atentos e mente penetrante, apto a diagnosticar problemas individuais e coletivos e propor uma terapia ao contemplar o prognóstico. O médico é aquele compromissado com a beneficência de seu paciente mediante o uso da prudência, da inteligência e de todas as suas virtudes. O médico é aquele que busca a excelência em sua arte em prol de seu paciente. Nosso papel é o de guardião dos mais frágeis entre nós, é responder ao pedido de socorro.

Entrevistador: Como o senhor vê as políticas públicas para a saúde?

Muito boas no papel, péssimas na prática. Leis e dinheiro não mudam uma população, o bandido sempre encontra a ocasião. Precisamos de mudanças na cultura, no caráter e na inteligência. O Brasil está entre os países mais violentos, mais corruptos e mais burros do mundo! Esses são problemas de "saúde" gravíssimos, e precisamos realmente repensar nosso pais. Como um país desse tamanho e com essa riqueza, repleto de gente trabalhadora e esforçada, pode estar entre os últimos colocados nos testes de conhecimento a nível internacional? Como um país de gente que era tão pacífica pode ter se transformado em um campeão de assassinatos? Creio que políticas públicas são necessárias e, em geral, são bem formuladas. Mas não temos uma elite com o caráter e a vontade para realmente fazer acontecer um Brasil de verdade. Temos espoliadores que buscam nutrir-se do sistema mesmo que para isto tenham que destruir seu hospedeiro.

Entrevistador: O senhor vê um movimento para diminuir o prestígio da categoria médica?

Médicos bons e médicos ruins sempre existiram, desde os tempos hipocráticos, ao longo da Idade Média e ainda hoje. Mas é a primeira vez que se observa um governo sistematicamente infiltrar-se em conselhos profissionais, montar propagandas claramente ofensivas contra toda uma classe profissional e utilizar o discurso de guerra de classes e ódio para a premeditada destruição daquilo que consideram uma elite concorrente. O fato de que tudo tenha vindo à tona no momento em que médicos ao lado de muitos outros profissionais da saúde foram às ruas em 2013 para reclamar melhores condições é extremamente sugestivo. Na política há pouco espaço para o acaso. Assistimos à votação do Ato Médico, na qual médicos foram acusados de criar a doença para enriquecer, observamos as propagandas acusando médicos de racistas com a falsa interpretação de dados do SUS e até mesmo uma presidente agindo de forma leviana ao acusar a classe médica de tratar mal os pacientes brasileiros. Uma grande e esforçada maioria, incluindo alguns exemplos heroicos de dedicação, pagou pelo erro de poucos e pela maldade institucionalizada de um governo indecente.

Entrevistador: Gestão e liderança tem sido exigido dos médicos. Estes conceitos são importantes? São tão importantes quanto a formação política e filosófica?

Sem dúvida a gestão e a liderança são importantíssimos. Na formação humanística clássica, por exemplo, partia-se do estudo do indivíduo (Ética e Psicologia, chamada de estudo da alma) e dos discursos (Gramática, Lógica, Dialética e Retórica) e alcançava-se o estudo da sociedade como um todo (Política). Contudo, no meio do caminho estava o estudo das relações de trabalho e das relações familiares, chamado de economia (Oiko = comunidade; Nomos = regras). O médico é o responsável pela equipe, e deve aprender a agir como tal, assim como deve aprender e desenvolver o caráter e a nobreza de um verdadeiro líder, demandando respeito por meio do exemplo acima de tudo.

Conforme disse o filósofo britânico Roger Scruton: 

"Da mesma forma, as pessoas vão obter educação somente se elas a desejarem por seu próprio fim, mas conseguirão bem mais do que isso. Elas vão adquirir a habilidade de se comunicar, de persuadir, de atrair e de dominar. Em qualquer arranjo social, tais capacidades serão vantagens, mas a educação nunca pode ser buscada somente como meios para elas, mesmo se são sua consequência natural." (SCRUTON, Roger. O Que É Conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015.)

A educação em humanidades deve ser desafiadora, deve ser interessante e prazerosa. Buscada em si para o desenvolvimento do caráter, da inteligência e pelo prazer intelectual e emocional que proporciona, automaticamente capacitará o médico ao desenvolvimento da liderança.

Entrevistador: Qual conselho o senhor daria para a categoria médica? E para os acadêmicos?

Aos colegas permanecer firme no antigo mandamento: Amar o próximo como amam a si mesmos. Exercer o dom da empatia com competência e com compaixão.
Aos acadêmicos, que sejam bons médicos agora! Sejam excelentes em suas áreas. Dediquem-se verdadeiramente aos seus pacientes. Não tenham pressa em terminar seus estudos formais e entendam que não há desculpas depois para a falta de conhecimentos. Aquilo que se conquista e se integra à personalidade é um tesouro que ninguém pode remover. Cresçam e amadureçam o quanto antes, em todos os sentidos. Busquem ser médicos na verdadeira acepção da palavra.

Hélio Angotti Neto

03 de julho, Colatina – ES.