ATÉ QUANDO LUTAR PELA VIDA HUMANA?
Dever de Matar 2
No
artigo Dever de Matar, abordei perigosos
aspectos observados no caso do pequeno Charlie Gard, um recém-nascido com uma
grave doença retido no hospital contra a vontade dos pais para que morresse,
conforme denominação da equipe médica, com dignidade e sem intervenções
consideradas fúteis e potencialmente lesivas.
O
nome das intervenções inúteis, lesivas e obstinadas em medicina é distanásia,
uma falha técnica e moral, sem dúvida. Mas será que o conceito se aplica
realmente à situação?
Um
exemplo claro de distanásia é um paciente de idade avançada com câncer de
pulmão metastático[1],
já muito próximo à morte, no estádio mais avançado de sua doença, que apresenta
uma comorbidade[2]
como dificuldade urinária por hiperplasia prostática benigna, por exemplo.
Diante da morte iminente, não cabe submeter o paciente a procedimentos
cirúrgicos de ressecção da próstata, mas caberia a passagem de sonda para
eliminar a urina e promover conforto. A cirurgia seria claramente um exagero.
No
caso do bebê Charlie a situação é muito mais complexa do que o exemplo
descrito. O procedimento é experimental e a possibilidade de vida é incerta.
Como pensar essa situação?
Relato
alguns elementos que apoiariam a compreensão de que estamos diante de um caso
potencial de distanásia:
-
A baixíssima probabilidade de sobrevivência;
-
O aspecto completamente experimental do tratamento;
-
O dano cerebral já presente, teoricamente incompatível com uma vida de boa
qualidade segundo algumas informações porém ainda não definido;
-
O excesso da intervenção já promovida.
-
A possibilidade de que os pais estejam em fase de negação ou negociação da
doença terminal de seu pequeno bebê.[3]
Contudo,
quais os perigos em se chamar de distanásia a possibilidade de tentar o
tratamento experimental no caso em questão?
A
situação envolve sentimentos intensos e muitas vezes contraditórios por parte
dos pais e, não duvido, por parte de alguns da própria equipe médica, que em
algum grau podem se solidarizar com o sofrimento do bebê e imaginar o que seria
uma vida extremamente limitada para o pequeno paciente na hipótese de sucesso
limitado do tratamento experimental, acrescentando sofrimento para a família em
níveis imprevisíveis ao longo de anos.
Tive
a chance de acompanhar alguns pacientes até o momento do óbito e vi de perto o
sofrimento de diversas famílias. Mesmo sendo oftalmologista[4],
fui chamado a oferecer suporte em domicílio em casos graves com alterações
oftalmológicas e já alerto: todo médico deve aprender a lidar com a morte e o
sofrimento, pois cedo ou tarde irá se deparar com essa velha e indesejada
companheira. Há quase sempre um intenso sofrimento por parte da família que vem
ao lado do sentimento profundo de obrigação para com o doente e, quando o
familiar querido falece, do sentimento de um triste dever cumprido, se tudo
tiver corrido bem.
O
sentimento dos pais do bebê Charlie, de não querer que algo deixe de ser feito,
realmente pode disparar culpas desnecessárias e inadequadas em determinadas
situações, mas é um sentimento que deve ser respeitado. A vida humana possui
valor ontológico e precede qualquer outro direito como condição sine qua non, e a resposta preocupada
daqueles que cuidam de pacientes graves ou em fase final de vida é algo
coerente com esse valor apreendido da realidade. Se abandonarmos os valores
fundamentais de nossa civilização, o respeito à dignidade da vida humana entre
eles, a vida passará a ter valor puramente subjetivo e relativizado, abrindo
caminho para as loucuras mais cruéis já presenciadas na história.
Ao
mesmo tempo, deve-se compreender que expectativas irreais não justificam plenamente
o emprego fútil de medidas médicas inúteis. Isso onera a família, cria anseios
que jamais poderão ser supridos e aumenta o sofrimento de todos: pacientes,
familiares e equipe médica.
Qual
será o caso do pequeno Charlie Gard? Distanásia? Abandono do paciente por causa
da Cultura da Morte? O que fazer?
Não
acredito que haja resposta simples.
Tratar
de forma insistente com baixíssimas chances de manter a vida guarda sim um
elemento de obstinação. Todavia, nem toda obstinação é vã.
Por
outro lado, o emprego da morte alheia como conceito corriqueiro, útil e ativo
da prática médica guarda perigosas repercussões e restrições profissionais.
Pode nos levar à instrumentalização da morte como meio eficaz de “tratamento”
dos indesejados e como marca de uma profissão médica que passará a ser ainda
mais temida e odiada por alguns, agora que tornou-se eficaz distribuidora da
morte.
Lembro
da situação já descrita na obra “A Morte da Medicina”, na qual crianças com
espinha bífida foram sistematicamente submetidas ao Protocolo Groningen, na
Holanda, cuja implantação o Conselho Federal de Medicina do Brasil chegou a
sugerir em uma gestão anterior.[5]
Mais de vinte casos de eutanásia infantil por doença “incurável” foram
executados por meio da eutanásia com a concordância dos pais e com a indicação
da equipe médica. Pouco tempo após o Dr. Verhagen ter publicado sua mórbida
casuística[6],
Rob de Jong, um neurocirurgião pediátrico, publicou o sucesso de uma inovadora
cirurgia de grande porte e muita complexidade capaz de restituir potencial de
vida útil a um bebê nascido com a trágica deformação.[7] Não
consigo parar de pensar quantas crianças foram mortas em vão, e imagino como
deve estar a consciência dos pais que foram convencidos de que não valia a pena
lutar por seus filhos, que nada poderia ser feito. O rosto sorridente do
paciente do Dr. De Jong é um potente alerta vermelho para os entusiastas da
fácil solução final.
Imagem de público aceso,
disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2092440/
A
medicina, ao longo dos milênios, fez inúmeras descobertas sobre como salvar a
vida, prolongá-la ou melhorá-la, além de descobrir recursos para prevenção de
doenças. Desde as coisas simples como a antissepsia até as técnicas avançadas
como transplantes de órgãos e implante de próteses foram descobertas e aplicadas
com sucesso por médicos que sempre estiveram abertos a novas possibilidades de
auxiliar o próximo.
Se
há necessidade de evitar intervenções esdrúxulas, há também necessidade de se buscar
novos caminhos.
Diante
de um caso de doença grave e irreversível em pacientes de idade muito avançada,
realmente o excesso de intervenção pode ser desaconselhado. E qualquer médico
tem o direito, e às vezes o dever, de recusar tratamentos inúteis ou errados.
Mas
a situação é bem mais complexa. Não se fala de um tratamento inútil, fala-se de
um tratamento experimental que pode dar errado ou pode funcionar provocando
algum tipo de melhora.
O
tema em jogo não é o de uma equipe médica sendo obrigada a tratar um paciente
empregando técnicas que acredita serem erradas. A questão em jogo é levar o
pequeno paciente a médicos que podem empregar um tratamento inovador e incerto,
mas que estão dispostos a tentar.
Não
se fala de um tratamento contraindicado ou inútil, fala-se de um tratamento com
possibilidade de funcionar, mesmo que mínima, e que seria indicado para outras crianças
se fosse bem-sucedido, mudando completamente o prognóstico de outras pessoas e
famílias num futuro próximo.
Não
se fala em aumentar o sofrimento de pessoas muito idosas e já sem esperança de
vida sem nada lhes acrescentar de vida, fala-se em tentar aumentar o potencial
de vida de um bebê.
Quais
serão as consequências de empregar a morte como opção válida para evitar
tratamentos inovadores?
Deixar
morrer ou matar é coisa simples, qualquer energúmeno consegue. Criar um
tratamento diferente ou uma cirurgia inovadora é coisa dificílima, uma
verdadeira obra de arte e ciência.
Não
seria mais fácil para todos simplesmente lavar as mãos e repetir a velha frase quid est veritas?
E
ainda há outro aspecto: o da imagem da medicina diante de tudo isso.
Que
imagem essa família e as pessoas em todo o mundo guardarão desses médicos e
dessa medicina coercitiva? Faço a pergunta com muito receio, pois acredito de
coração que os colegas britânicos realmente consideram que fazem o melhor para
o pequeno bebê. O próprio juiz que emitiu parecer sobre o caso afirmou fazê-lo
com pesar. Mas acredito também que há um profundo equívoco nessa decisão
imposta à família e na tomada da tutela do bebê à força pelo Estado.
Há
elementos potencialmente lesivos para toda a sociedade nesse caso, há precedentes
perigosos que podem mudar completamente a forma pela qual enxergamos os médicos
e os serviços de saúde, se é que já não mudaram.
A
pergunta que se faz ao final de tudo é quanto vale a vida humana? Dessa
pergunta surgem muitas outras.
Deve-se
calcular o preço da vida humana, ou quanto esforço fazemos para salvá-la, conforme
sua capacidade de ser útil, de obter prazer ou de fornecê-lo? Podemos parar de
lutar por novos tratamentos para aquelas condições terríveis que teoricamente
nos levarão sempre à morte e ao sofrimento? Todo sofrimento deve ser ferozmente
evitado?
Jeffrey
Bishop, de forma semelhante ao médico Viktor Frankl, inventor da Logoterapia[8],
questiona se a medicina não deveria pensar na vida humana como finalidade,
dotada de um propósito iluminado pela consciência e desvelado pela biografia de
cada ser vivo em comunidade.[9]
O
propósito dos pais é o de proteger seu filho. Devem fazê-lo dotados das
melhores informações possíveis em um ambiente de compreensão e amparo.
O
propósito dos médicos é beneficiar o paciente e, quando possível, salvar e
resguardar a vida, considerando os já tradicionais aspectos físicos, mentais,
sociais e espirituais. Nessa equação cabe a observação de Viktor Frankl e
Jeffrey Bishop sobre a valorização dos aspectos existenciais.
Até
mesmo o pequeno Charlie já pode ter um propósito em seu contexto. Ao que
indica, muitos enxergaram na luta dessa família e na vida do bebê um símbolo do
valor pela luta contra a morte e a doença, um pequenino e ao mesmo tempo grande
símbolo de esperança, perseverança e amor.
Como
já afirmei, há elementos de obstinação neste caso, porém o emprego da
autoridade tecnocrática dos médicos e do Estado contra a autoridade familiar,
além da proibição ativa do tratamento, pode nos levar a consequências de
espectro muito mais amplo do que o previsto.
Estamos
diante de atitudes e valores que fundamentam nossa civilização e caracterizam a
profissão médica e os cuidados com a saúde em geral. Qual o modelo médico que
desejamos seguir? Onde nossas escolhas nos levarão? Quem deve ter a guarda do
pequeno Charlie? Deve ser seu responsável a sua família que o ama, que o
carregou no ventre e que perde noites de sono ao seu lado, sofrendo? Ou deve
ser responsável a fria tecnocracia estatal, que enxerga o pequeno Charlie como
um problema num sistema de saúde?
Peço
desculpas se encho a cabeça dos leitores com perguntas, mas diante de uma
decisão irreversível que pode levar à morte, só Deus sabe o estrago que pode
ser feito na vida dessa sofrida família, na carreira dos médicos de forma geral
e em nossa civilização.
[1] Um
câncer que já se espalhou pelo organismo e, de regra, é incurável.
[2]
Uma outra doença não diretamente relacionada com a doença principal.
[3]
KUBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a Morte e o
Morrer. Ão Paulo: WMF Editora Martins Fontes, 2008.
[4] O
fato de eu trabalhar com doenças relacionadas à Órbita e à Neuro-Oftalmologia,
incluindo tumores oculares e de cabeça e pescoço, acaba por aumentar a chance
de lidar com esses casos mais exigentes.
[5]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Conselhos de Medicina se posicionam a favor da
autonomia da mulher em caso de interrupção da gestação. Quinta, 21 de março de 2013. Internet, http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23661
[6]
VERHAGEN, Eduard; SAUER, Pieter J.J. ‘The Groningen Protocol — Euthanasia in
Severely Ill Newborns’. New England
Journal of Medicine, 352, 2005, p. 959-962.
[7]
ANGOTTI NETO, Hélio. A Morte da Medicina.
Campinas: Vide Editorial, 2014; JONG, T. H. Rob de. Deliberate termination of
life of newborns with spina bifida, a critical reappraisal. Child’s Nervous System, 24, 2008, p.13–28.
[8]
XAUSA, Izar Aparecida de Moraes. A
Psicologia do Sentido da Vida. A primeira obra sobre logoterapia publicada
no Brasil. 2ª edição. Campinas, SP: Vide Editorial, 2013.
[9]
BISHOP, Jeffrey. The Anticipatory Corpse.
Medicine, Power, and the Care of the Dying. Notre Dame, Indiana: University of
Notre Dame Press, 2011.