quinta-feira, 6 de julho de 2017

ATÉ QUANDO LUTAR PELA VIDA HUMANA?

ATÉ QUANDO LUTAR PELA VIDA HUMANA?

Dever de Matar 2




No artigo Dever de Matar, abordei perigosos aspectos observados no caso do pequeno Charlie Gard, um recém-nascido com uma grave doença retido no hospital contra a vontade dos pais para que morresse, conforme denominação da equipe médica, com dignidade e sem intervenções consideradas fúteis e potencialmente lesivas.

O nome das intervenções inúteis, lesivas e obstinadas em medicina é distanásia, uma falha técnica e moral, sem dúvida. Mas será que o conceito se aplica realmente à situação?

Um exemplo claro de distanásia é um paciente de idade avançada com câncer de pulmão metastático[1], já muito próximo à morte, no estádio mais avançado de sua doença, que apresenta uma comorbidade[2] como dificuldade urinária por hiperplasia prostática benigna, por exemplo. Diante da morte iminente, não cabe submeter o paciente a procedimentos cirúrgicos de ressecção da próstata, mas caberia a passagem de sonda para eliminar a urina e promover conforto. A cirurgia seria claramente um exagero.

No caso do bebê Charlie a situação é muito mais complexa do que o exemplo descrito. O procedimento é experimental e a possibilidade de vida é incerta. Como pensar essa situação?

Relato alguns elementos que apoiariam a compreensão de que estamos diante de um caso potencial de distanásia:

- A baixíssima probabilidade de sobrevivência;

- O aspecto completamente experimental do tratamento;

- O dano cerebral já presente, teoricamente incompatível com uma vida de boa qualidade segundo algumas informações porém ainda não definido;

- O excesso da intervenção já promovida.

- A possibilidade de que os pais estejam em fase de negação ou negociação da doença terminal de seu pequeno bebê.[3]

Contudo, quais os perigos em se chamar de distanásia a possibilidade de tentar o tratamento experimental no caso em questão?

A situação envolve sentimentos intensos e muitas vezes contraditórios por parte dos pais e, não duvido, por parte de alguns da própria equipe médica, que em algum grau podem se solidarizar com o sofrimento do bebê e imaginar o que seria uma vida extremamente limitada para o pequeno paciente na hipótese de sucesso limitado do tratamento experimental, acrescentando sofrimento para a família em níveis imprevisíveis ao longo de anos.

Tive a chance de acompanhar alguns pacientes até o momento do óbito e vi de perto o sofrimento de diversas famílias. Mesmo sendo oftalmologista[4], fui chamado a oferecer suporte em domicílio em casos graves com alterações oftalmológicas e já alerto: todo médico deve aprender a lidar com a morte e o sofrimento, pois cedo ou tarde irá se deparar com essa velha e indesejada companheira. Há quase sempre um intenso sofrimento por parte da família que vem ao lado do sentimento profundo de obrigação para com o doente e, quando o familiar querido falece, do sentimento de um triste dever cumprido, se tudo tiver corrido bem.

O sentimento dos pais do bebê Charlie, de não querer que algo deixe de ser feito, realmente pode disparar culpas desnecessárias e inadequadas em determinadas situações, mas é um sentimento que deve ser respeitado. A vida humana possui valor ontológico e precede qualquer outro direito como condição sine qua non, e a resposta preocupada daqueles que cuidam de pacientes graves ou em fase final de vida é algo coerente com esse valor apreendido da realidade. Se abandonarmos os valores fundamentais de nossa civilização, o respeito à dignidade da vida humana entre eles, a vida passará a ter valor puramente subjetivo e relativizado, abrindo caminho para as loucuras mais cruéis já presenciadas na história.

Ao mesmo tempo, deve-se compreender que expectativas irreais não justificam plenamente o emprego fútil de medidas médicas inúteis. Isso onera a família, cria anseios que jamais poderão ser supridos e aumenta o sofrimento de todos: pacientes, familiares e equipe médica.

Qual será o caso do pequeno Charlie Gard? Distanásia? Abandono do paciente por causa da Cultura da Morte? O que fazer?

Não acredito que haja resposta simples.

Tratar de forma insistente com baixíssimas chances de manter a vida guarda sim um elemento de obstinação. Todavia, nem toda obstinação é vã.

Por outro lado, o emprego da morte alheia como conceito corriqueiro, útil e ativo da prática médica guarda perigosas repercussões e restrições profissionais. Pode nos levar à instrumentalização da morte como meio eficaz de “tratamento” dos indesejados e como marca de uma profissão médica que passará a ser ainda mais temida e odiada por alguns, agora que tornou-se eficaz distribuidora da morte.

Lembro da situação já descrita na obra “A Morte da Medicina”, na qual crianças com espinha bífida foram sistematicamente submetidas ao Protocolo Groningen, na Holanda, cuja implantação o Conselho Federal de Medicina do Brasil chegou a sugerir em uma gestão anterior.[5] Mais de vinte casos de eutanásia infantil por doença “incurável” foram executados por meio da eutanásia com a concordância dos pais e com a indicação da equipe médica. Pouco tempo após o Dr. Verhagen ter publicado sua mórbida casuística[6], Rob de Jong, um neurocirurgião pediátrico, publicou o sucesso de uma inovadora cirurgia de grande porte e muita complexidade capaz de restituir potencial de vida útil a um bebê nascido com a trágica deformação.[7] Não consigo parar de pensar quantas crianças foram mortas em vão, e imagino como deve estar a consciência dos pais que foram convencidos de que não valia a pena lutar por seus filhos, que nada poderia ser feito. O rosto sorridente do paciente do Dr. De Jong é um potente alerta vermelho para os entusiastas da fácil solução final.

Imagem de público aceso, disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2092440/

A medicina, ao longo dos milênios, fez inúmeras descobertas sobre como salvar a vida, prolongá-la ou melhorá-la, além de descobrir recursos para prevenção de doenças. Desde as coisas simples como a antissepsia até as técnicas avançadas como transplantes de órgãos e implante de próteses foram descobertas e aplicadas com sucesso por médicos que sempre estiveram abertos a novas possibilidades de auxiliar o próximo.

Se há necessidade de evitar intervenções esdrúxulas, há também necessidade de se buscar novos caminhos.

Diante de um caso de doença grave e irreversível em pacientes de idade muito avançada, realmente o excesso de intervenção pode ser desaconselhado. E qualquer médico tem o direito, e às vezes o dever, de recusar tratamentos inúteis ou errados.

Mas a situação é bem mais complexa. Não se fala de um tratamento inútil, fala-se de um tratamento experimental que pode dar errado ou pode funcionar provocando algum tipo de melhora.

O tema em jogo não é o de uma equipe médica sendo obrigada a tratar um paciente empregando técnicas que acredita serem erradas. A questão em jogo é levar o pequeno paciente a médicos que podem empregar um tratamento inovador e incerto, mas que estão dispostos a tentar.

Não se fala de um tratamento contraindicado ou inútil, fala-se de um tratamento com possibilidade de funcionar, mesmo que mínima, e que seria indicado para outras crianças se fosse bem-sucedido, mudando completamente o prognóstico de outras pessoas e famílias num futuro próximo.

Não se fala em aumentar o sofrimento de pessoas muito idosas e já sem esperança de vida sem nada lhes acrescentar de vida, fala-se em tentar aumentar o potencial de vida de um bebê.

Quais serão as consequências de empregar a morte como opção válida para evitar tratamentos inovadores?

Deixar morrer ou matar é coisa simples, qualquer energúmeno consegue. Criar um tratamento diferente ou uma cirurgia inovadora é coisa dificílima, uma verdadeira obra de arte e ciência.

Não seria mais fácil para todos simplesmente lavar as mãos e repetir a velha frase quid est veritas?

E ainda há outro aspecto: o da imagem da medicina diante de tudo isso.

Que imagem essa família e as pessoas em todo o mundo guardarão desses médicos e dessa medicina coercitiva? Faço a pergunta com muito receio, pois acredito de coração que os colegas britânicos realmente consideram que fazem o melhor para o pequeno bebê. O próprio juiz que emitiu parecer sobre o caso afirmou fazê-lo com pesar. Mas acredito também que há um profundo equívoco nessa decisão imposta à família e na tomada da tutela do bebê à força pelo Estado.

Há elementos potencialmente lesivos para toda a sociedade nesse caso, há precedentes perigosos que podem mudar completamente a forma pela qual enxergamos os médicos e os serviços de saúde, se é que já não mudaram.

A pergunta que se faz ao final de tudo é quanto vale a vida humana? Dessa pergunta surgem muitas outras.

Deve-se calcular o preço da vida humana, ou quanto esforço fazemos para salvá-la, conforme sua capacidade de ser útil, de obter prazer ou de fornecê-lo? Podemos parar de lutar por novos tratamentos para aquelas condições terríveis que teoricamente nos levarão sempre à morte e ao sofrimento? Todo sofrimento deve ser ferozmente evitado?

Jeffrey Bishop, de forma semelhante ao médico Viktor Frankl, inventor da Logoterapia[8], questiona se a medicina não deveria pensar na vida humana como finalidade, dotada de um propósito iluminado pela consciência e desvelado pela biografia de cada ser vivo em comunidade.[9]

O propósito dos pais é o de proteger seu filho. Devem fazê-lo dotados das melhores informações possíveis em um ambiente de compreensão e amparo.

O propósito dos médicos é beneficiar o paciente e, quando possível, salvar e resguardar a vida, considerando os já tradicionais aspectos físicos, mentais, sociais e espirituais. Nessa equação cabe a observação de Viktor Frankl e Jeffrey Bishop sobre a valorização dos aspectos existenciais.

Até mesmo o pequeno Charlie já pode ter um propósito em seu contexto. Ao que indica, muitos enxergaram na luta dessa família e na vida do bebê um símbolo do valor pela luta contra a morte e a doença, um pequenino e ao mesmo tempo grande símbolo de esperança, perseverança e amor.

Como já afirmei, há elementos de obstinação neste caso, porém o emprego da autoridade tecnocrática dos médicos e do Estado contra a autoridade familiar, além da proibição ativa do tratamento, pode nos levar a consequências de espectro muito mais amplo do que o previsto.

Estamos diante de atitudes e valores que fundamentam nossa civilização e caracterizam a profissão médica e os cuidados com a saúde em geral. Qual o modelo médico que desejamos seguir? Onde nossas escolhas nos levarão? Quem deve ter a guarda do pequeno Charlie? Deve ser seu responsável a sua família que o ama, que o carregou no ventre e que perde noites de sono ao seu lado, sofrendo? Ou deve ser responsável a fria tecnocracia estatal, que enxerga o pequeno Charlie como um problema num sistema de saúde?

Peço desculpas se encho a cabeça dos leitores com perguntas, mas diante de uma decisão irreversível que pode levar à morte, só Deus sabe o estrago que pode ser feito na vida dessa sofrida família, na carreira dos médicos de forma geral e em nossa civilização.



[1] Um câncer que já se espalhou pelo organismo e, de regra, é incurável.
[2] Uma outra doença não diretamente relacionada com a doença principal.
[3] KUBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a Morte e o Morrer. Ão Paulo: WMF Editora Martins Fontes, 2008.
[4] O fato de eu trabalhar com doenças relacionadas à Órbita e à Neuro-Oftalmologia, incluindo tumores oculares e de cabeça e pescoço, acaba por aumentar a chance de lidar com esses casos mais exigentes.
[5] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Conselhos de Medicina se posicionam a favor da autonomia da mulher em caso de interrupção da gestação. Quinta, 21 de março de 2013. Internet, http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23661
[6] VERHAGEN, Eduard; SAUER, Pieter J.J. ‘The Groningen Protocol — Euthanasia in Severely Ill Newborns’. New England Journal of Medicine, 352, 2005, p. 959-962.
[7] ANGOTTI NETO, Hélio. A Morte da Medicina. Campinas: Vide Editorial, 2014; JONG, T. H. Rob de. Deliberate termination of life of newborns with spina bifida, a critical reappraisal. Child’s Nervous System, 24, 2008, p.13–28.
[8] XAUSA, Izar Aparecida de Moraes. A Psicologia do Sentido da Vida. A primeira obra sobre logoterapia publicada no Brasil. 2ª edição. Campinas, SP: Vide Editorial, 2013.
[9] BISHOP, Jeffrey. The Anticipatory Corpse. Medicine, Power, and the Care of the Dying. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2011.