A REVOLTA CONTRA O QUE POUCO IMPORTA
ESTÁ TUDO DE CABEÇA PARA BAIXO!
Nestes
últimos dias observei um fato curioso que despertou algumas reflexões.
Um
grupo de jovens formandos de medicina, de uma universidade do Espírito Santo,
posou sem calças e divulgou a imagem. Uma brincadeira típica daquelas de
adolescentes – e nem tão adolescentes assim – que vemos por aí.
Quando
as fotos circularam, escutei uma sequencia de análises revoltadas com o fato,
inclusive pedindo punição pelo Conselho Regional de Medicina com suspensão de
um ano para os rapazolas. Gritos virtuais de fúria e revolta ecoavam a
perplexidade em relação a como aqueles jovens, um pouco inconsequentes, ousavam
colocar em risco a frágil imagem da medicina brasileira com uma brincadeira tão
sem noção.
Dos denunciados...
Os
rapazes foram infelizes em sua brincadeira? Creio que sim. Expor suas imagens
publicamente logo no começo de suas carreiras, em uma profissão tão visada como
a medicina e de alta exigência de maturidade e postura de respeitabilidade, foi
algo imprudente, para dizer o mínimo.
Foi
um erro como tantos outros que, na qualidade de seres humanos jovens, muitos já
cometeram, cometem e ainda cometerão. Provavelmente a maior punição já está
acontecendo: a exposição exagerada e a condenação pública pelo politicamente
correto e pelo moralismo exacerbado.
Do
ponto de vista ético profissional, os rapazes são condenáveis? Convido o leitor
a abrir seu Código de Ética Médica e a fazer uma busca específica sobre o caso
aqui em discussão. Vejo um único princípio que pode ser aplicado ao caso:
IV
- Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina,
bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.[1]
Há
que concordar comigo no sentido de que o princípio é um tanto vago quanto ao
que seria prestígio ou bom conceito. Também é necessário observar que não falamos
de uma norma deontológica proibitiva, mas sim, de uma orientação geral a ser
aplicada com bom senso na qualidade de princípio.
Do
ponto de vista histórico e cultural, eles erraram? Vejamos o que nossos
antepassados disseram sobre o excesso nos modos:
10. Para
ganhar o paciente você deve evitar adereços exagerados de cabeça e perfumes
exóticos. Excesso de estranheza garantirá má reputação, embora uma pequena dose
não desqualifique o bom gosto. Assim é com a dor, irrisória quando numa pequena
parte, grave quando presente em todo o corpo. No entanto, não desaprovo a
tentativa de agradar o paciente, algo que não desmerece a dignidade médica.[2]
Excesso
de estranheza garantirá má reputação. Desde Hipócrates já se alertava sobre a
manutenção da respeitabilidade e da honra profissional, prescrevendo uma postura
de moderação nos costumes.
Outro
trecho curioso encontra-se em Do Decoro:
7.
Considerando, portanto, tudo o que acabei de dizer, é preciso que o médico
tenha uma certa disposição para brincar, pois a severidade é falta de
afabilidade, tanto para os que estão saudáveis como para os que estão doentes.
É preciso, sobretudo, que ele vigie a si mesmo, nem mostrando muito partes de
seu corpo, nem conversando muito com os leigos, mas somente o necessário. †
Considere isso, forçosamente, um tratamento que leva à intimação judicial. †
Não fazer, com certeza, nenhuma dessas coisas, com indiscrição e nem com
ostentação. Pense antecipadamente em todas essas coisas, para que estejam
facilmente à mão, como se deve; de outro modo, necessariamente, estará sempre em
apuros em relação ao seu dever.[3]
De
tudo, o que posso concluir? Fizeram uma brincadeira típica de adolescentes que
seria mal vista até mesmo em tempos antigos. Adolescentes são craques em fazer
tais coisas, ou você não se lembra de ter sido um adolescente? Em relação à
ética – ou etiqueta -, talvez o máximo que possa ser aconselhado seja um pouco
de temperança e discrição, como bem cabe a um médico que, desejando ou não,
terá sua imagem lançada aos quatro ventos por ser figura pública.
De quem denuncia...
Agora
eu realmente gostaria de partir para outras duas perspectivas, e peço que o
leitor tenha um pouco de paciência e que leia até ao final. E que guarde as
pedras nas mãos e nos bolsos – pois alguns carregam muitas - por um pouco de tempo
antes de lançá-las em mim.
O
que dizer dos colegas que, revoltados, acusaram e compartilharam fotos em meios
públicos? Partindo do fato de que muitos interpretaram o ocorrido como
desrespeito à profissão, digno de suspensão de um ano, uma pena quase extrema
em termos profissionais, deve-se ter em mente os seguintes trechos do Código de
Ética Médica.[4]
No
Preâmbulo:
IV - A fim de
garantir o acatamento e a cabal execução deste Código, o médico comunicará ao
Conselho Regional de Medicina, com discrição e fundamento, fatos de que tenha
conhecimento e que caracterizem possível infração do presente Código e das
demais normas que regulam o exercício da Medicina.
O
compartilhamento exagerado em redes sociais não teve nada de discrição. Se algo
nos fere em termos éticos, a recomendação é que busquemos fundamentar uma
denúncia que deve ser feita discretamente junto ao Conselho Regional de
Medicina, não junto ao “conselho” dos grupos de mídia social, potencializando
ainda mais o possível escândalo.
O
Artigo 57 repete a orientação, reforçando que a denúncia deve ser feita ao
Conselho ou ao órgão responsável, sob a necessidade de se apontar qual é o
postulado ético contrariado. É vedado ao médico:
Art. 57.
Deixar de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à comissão de
ética da instituição em que exerce seu trabalho profissional e, se necessário,
ao Conselho Regional de Medicina.
Alguém
pode denunciar que os jovens e brincalhões colegas não tiveram consideração,
respeito ou solidariedade para com a classe ao abaixarem suas calças, com base
no seguinte princípio que orienta o seguinte:
XVIII - O
médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem
se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos.
Todavia,
a falta de decoro de uns não autoriza a falta de postura de outros. Se um erro
de fato foi percebido, e se tal acontecimento merece ser punido com uma
suspensão, como alguns proclamam, a denúncia deve ser feita com discrição e
respeito.
Se
o que aconteceu foi um escândalo por romper as aparências, a frágil
sensibilidade de alguns ou a sensível imagem da medicina, não há que se pedir
punição. A simples reprimenda pública com certeza já é punição exemplar e
tantas vezes exagerada.
E
agora passo ao último ponto da análise, que é o cerne de minhas preocupações
reais.
Do escândalo com as coisas pequenas
e da completa falta de senso das proporções...
A
histeria causada entre muitos médicos, de todas as idades, frente ao ocorrido
me preocupa.
Os
formandos fizeram certo? Acredito que não. Se um deles fosse meu filho
escutaria um daqueles sermões!
Acredito
que médicos devem se dar ao respeito e oferecer à população uma postura digna e
séria, compatível com o testemunho de quem lida com coisas das mais sérias que
podemos encontrar neste mundo: a vida humana e o sofrimento alheio.
Mas
o que chama a atenção é a tendência repetida da sociedade brasileira em prestar
muita atenção às coisas pequenas e menosprezar fatos e ideias de suma
importância.
Morrem
sete dezenas de milhares de pessoas de forma violenta e intencional por ano.
Mais de 70.000 assassinatos![5] O
que as mídias sociais comentam? A morte de um gorila num zoológico estrangeiro[6] ou
um bando de rapazolas de calças arriadas.
Nas
escolas ocorre uma lavagem cerebral tosca e uma censura velada à discordância
ideológica, comprometendo a inteligência e a liberdade de nossas crianças e
nossas famílias.[7]
O que atormenta nossos compatriotas? O médico bobo e desrespeitoso que fez uma
brincadeira criticando o paciente que fala errado a palavra pneumonia.
Uma barulhenta e irresponsável minoria de
médicos denigre toda a classe atendendo mal a seus pacientes, fazendo esquemas
para burlar seus vínculos empregatícios e superfaturando materiais utilizados
em procedimentos terapêuticos ou diagnósticos. Estudantes ligados ao movimento
estudantil defendem posturas que atentam contra a dignidade da vida humana como
eutanásia, abortamento e suicídio assistido, priorizando uma ideologia
potencialmente genocida ao invés de respeitarem os valores clássicos da boa
medicina.[8] Nosso
próprio Conselho Federal da Medicina, em sua gestão anterior, defendeu a
eliminação de vidas humanas e a eutanásia infantil![9] Qual
o foco do burburinho escandalizado das frágeis e sensíveis almas que circulam
nas redes sociais? Calças arriadas.
Numa
sociedade em que a ideologia de gênero distribui material pornográfico para
crianças na educação infantil, em que adolescentes no ensino médio são
instrumentalizados como bucha de canhão para a revolução que atenta contra toda
e qualquer forma de pudor e em que todos são expostos ao material
semipornográfico de suspeitíssima qualidade veiculado pelos meios de
comunicação em horário nobre, só posso concluir uma coisa: os jovens egressos
do curso de medicina fizeram foi pouco!
Alguém
já viu algumas das manifestações artísticas, políticas e culturais que abundam
em nossos cursos superiores de humanas?[10]
Repito, os rapazolas da medicina foram até muito comedidos, quase carolas.
Mas
o brasileiro típico é especialista em subverter a hierarquia de valores. Coisas
medíocres e bobas, que seriam resolvidas com uma educada conversa entre adultos
ou em família, tomam proporções dantescas. Por outro lado, temas mortalmente
sérios que definem toda a nossa civilização – ou preparam o terreno para a sua
destruição – simplesmente passam adiante, ignorados em meio à profusão
carnavalesca de obscenidades e ameaças graves.
O
brasileiro, de regra acusa de moralista qualquer um que queira impedir que mães
saiam por aí matando seus filhos em seus ventres, mas na prática são de um
moralismo insuportável ao perder enorme tempo em picuinhas sobre maus costumes
e pequenos desvios de conduta que pouco dano concreto fazem a qualquer um.
Antes
de condenar os jovens colegas e descarregar neles o condenável mecanismo do
bode expiatório por todos os nossos males[11],
gostaria de lançar duas reflexões.
A
primeira é a reflexão sobre tirar a trave de nossos olhos antes de acusar o
cisco no olho alheio. Sua revolta está direcionada ao lugar certo? Sua prática
médica está adequada com os mais elevados parâmetros morais ou somente possui
uma casca de bons modos, vazia de substância? O mínimo que devo esperar de
alguém que se revolta contra essa brincadeira imatura é uma revolta muitíssimo
maior contra coisas extremamente mais urgentes e graves. Você não está virando
as coisas de cabeça para baixo? Você quer defender a classe médica de verdade?
É como um zelote dos bons costumes que você realmente pode fazer algo importante
e construtivo? Será que fiscalizar brincadeiras bobas de formatura é a melhor
forma de zelar pela dignidade da profissão médica?
A
segunda lição é a das três peneiras atribuídas a Sócrates: Verdade, Bondade e
Utilidade.[12]
Antes de divulgar algo, há certeza de que é verdadeiro? Esta é a primeira
peneirada. A segunda questiona se é um bem divulgar o assunto. Causa algum bem
maior à sociedade? E, por fim, a terceira peneira nos leva a perguntar se é
realmente necessário divulgar.
O
povo brasileiro precisa aprender a dar importância ao que realmente importa, e
entrar em discussões que são realmente urgentes. Utilizei o tema totalmente
desinteressante e superficialmente moral da brincadeira dos formandos para
chegar neste ponto: estamos criando uma tempestade em copo d’água enquanto o navio
afunda em meio à ressaca!
Quer
lutar pela honra e dignidade da classe médica? Já estudou o Código de Ética
Médica e já se aprofundou na cultura milenar da medicina e em como ela pode ajudar
a restaurar nossa confiabilidade e nossa honra? Já estudou política e filosofia
a ponto de compreender como se trabalha a imagem profissional em sociedade? Já
começou a atender ao paciente com carinho e atenção? Já exortou ou denunciou
aqueles que praticam atos muito mais graves, às vezes criminosos?
Poderia
perguntar por páginas e páginas, mas sei que muitos estão dando o máximo de si
e fazendo o melhor que podem. Só torço para que os olhos da grande maioria dos
médicos se abram a tempo de ver o que realmente está prestes a destruir nossa
profissão.
Agora,
que todos joguem suas pedras... No alvo certo!
Hélio
Angotti Neto, 10 de abril de 2017.
LEIA A CONTINUAÇÃO DESTE ARTIGO AQUI.
[1]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Internet, http://www.rcem.cfm.org.br/index.php/cem-atual
[2] HIPPOCRATES. Ancient
Medicine. Airs, Waters, Places. Epidemics 1 and 3. The Oath. Precepts.
Nutriment. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical
Library 147. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923, p. 326-327.
[3] O
sinal † indica má qualidade dos documentos originais, o que pode gerar dúvida
em alguns trechos. RIBEIRO Jr., Wilson A. Do Decoro. In: CAIRUS, Henrique e
RIBEIRO Jr. Wilson A. Textos Hipocráticos: O Doente, O Médico e a Doença. Coleção História & Saúde: Clássicos &
Fontes. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. VII. Ὄντων οὖν τοιούτων τῶν
προειρημένων ἁπάντων, χρὴ τὸν ἰητρὸν ἔχειν τινὰ εὐτραπελίην παρακειμένην· τὸ γὰρ
αὐστηρὸν δυσπρόσιτον καὶ τοῖσιν ὑγιαίνουσι καὶ τοῖσι νοσέουσιν. τηρεῖν δὲ χρὴ ἑωυτὸν
ὅτι μάλιστα, μὴ πολλὰ φαίνοντα τῶν τοῦ σώματος μερέων, μηδὲ πολλὰ λεσχηνευόμενον
τοῖσιν ἰδιώτῃσιν, ἀλλὰ τἀναγκαῖα· †νομίζει γὰρ τοῦτο βίη εἶναι ἐς πρόσκλησιν
θεραπηίης.† ποιεῖν δὲ κάρτα μηδὲν περιέργως αὐτῶν, μηδὲ μετὰ φαντασίης·
ἐσκέφθω δὲ ταῦτα πάντα, ὅκως ᾖ σοι προκατηρτισμένα ἐς τὴν εὐπορίην, ὡς δέοι· εἰ
δὲ μή, ἐπὶ τοῦ χρέους ἀπορεῖν αἰεὶ δεῖ.
[4]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Internet, http://www.rcem.cfm.org.br/index.php/cem-atual
[5] Morre
mais gente no Brasil por “morte matada” do que na guerra da Síria! BOCHINNI,
Bruno. Brasil tem mais mortes violentas do que a Síria em guerra, mostra
anuário. EBC Agência Brasil, 28 de
outubro de 2016. Internet, http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-10/brasil-tem-mais-mortes-violentas-do-que-siria-em-guerra-mostra;
Daniel Cerqueira; Helder Ferreira; Renato Sergio de Lima; Samira Bueno; Olaya
Hanashiro; Filipe Batista; Patricia Nicolato. Atlas da Violência 2016 –
Nota Técnica. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Internet, http://infogbucket.s3.amazonaws.com/arquivos/2016/03/22/atlas_da_violencia_2016.pdf
[6]
REUTERS. Gorila é morto após menino
cair em área isolada de zoológico nos EUA. 29 de maio de 2016. G1-Natureza. Internet, http://g1.globo.com/natureza/noticia/2016/05/gorila-e-morto-apos-menino-cair-em-area-isolada-de-zoologico-nos-eua-20160529140003786892.html
[7]
Saiba mais sobre a importante discussão que expõe o absurdo ao qual nossas
crianças são submetidas no Portal Escola Sem Partido: http://www.escolasempartido.org/ ;
outra referência importante é: DEMAR, Gary. Quem
Controla a Escola Governa o Mundo. Brasília: Editora Monergismo, 2014.
[8] XLV
ECEM. 45º Encontro Científico dos Estudantes de Medicina. Cartilha com os
Posicionamentos Aprovados em Plenária Final do ECEM, realizada no dia 02 de
agosto de 2015. Internet, https://drive.google.com/file/d/0B3K_QAwFHaaKdDNqZEg3NlpPbUE/view
[9]
AZEVEDO, Reinaldo. Cultura da morte – Maioria do Conselho Federal de Medicina
apoia descriminação do aborto até 12ª semana de gestação; assim, também ela
acha, a exemplo de certa comissão, que feto de gente é inferior a ovo de pardal.
VEJA.COM 21 de março de 2013. Internet,
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/cultura-da-morte-maioria-do-conselho-federal-de-medicina-apoia-descriminacao-do-aborto-ate-12-semana-de-gestacao-assim-tambem-ela-acha-a-exemplo-de-certa-comissao-que-feto-de-gente-e-inferior-a-ovo-de/
[10]
Os corajosos que pesquisem a “performance” macaquinhos no Google.
[11]
GOLSAN, Richard. Mito e Teoria Mimética.
Uma Introdução ao Pensamento girardiano. São Paulo: É Realizações, 2014.
[12]
AZEVEDO, Ricardo Almeida de; CURI, Erick Freitas. Manual de Conduta nas Mídias Sociais. Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de Anestesiologia, 2017.