Princípio XXII – Ortotanásia e Distanásia
XXII
- Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a
realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e
propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos
apropriados.
Este
princípio trata de dois conceitos importantes para a boa prática médica:
Ortotanásia e Distanásia.
Ortotanásia
é a morte conduzida adequadamente, sem a sobrecarga de procedimentos inúteis e
dolorosos. Distanásia é a morte excessivamente sofrida, repleta de intervenções
que nada contribuem para o prognóstico ou a qualidade de vida do paciente.
Um
terceiro termo de elaboração mais recente seria Mistanásia, a morte sofrida por
falta de condições econômicas e sociais. Se na Distanásia o risco é
principalmente o de sofrer com excessos médicos, na Mistanásia o risco é sofrer
com a falta de recursos médicos.
Embora
tais expressões sejam de uso relativamente recente na ética médica, os cuidados
com o paciente muito próximo da morte são discutidos pela medicina há milênios,
inclusive com conceitos muitos próximos aos nossos. Na obra hipocrática, por
exemplo, lê-se que:
Se
deixados a si mesmos, os pacientes afundar-se-ão em sua condição dolorosa e
partirão dessa vida após desistir de lutar. Mas aquele que tomou o paciente
pela mão, mostrando as descobertas da arte enquanto respeita a natureza sem
buscar alterá-la, irá afastar a depressão e a insegurança do momento.[1]
Desde
as origens éticas, a medicina compreende que há um momento em que o melhor a
ser feito pelo paciente é acompanhá-lo em seu momento de grande dúvida e
sofrimento, para que tudo não se transforme em desespero. O médico deve ser o
bom amigo que vai até ao limiar da vida. Mas qual é este limiar?
A
medicina fala de estado terminal. Embora não seja simples caracterizar
exatamente o que seja um estado terminal, visto que todos nós possuímos o estado
terminal chamado vida, que inevitavelmente terminará com nossa morte, há algumas
características básicas que devem ser observadas acerca do paciente terminal:
1
– deve portar doença incurável;
2
– não responde mais aos recursos médicos;
3
– está muito próximo da morte.
A
importância de definir bem os termos jamais será ressaltada o suficiente. O tema de como o médico deve agir
diante da morte é delicado e já foi tratado de formas muito cruéis em nossa
história.
No
passado, e ainda hoje, acadêmicos defendem as mais terríveis ideias contra a
vida humana e sua dignidade. Já se falou em “comedores inúteis”, morte compassiva,
evitar sofrimento e promoção do bem comum para se justificar o massacre
daqueles considerados indignos de viverem. Ao médico cabe valorizar a vida de
seu paciente, sua dignidade e sua qualidade sem transformá-lo no alvo de um
cálculo hedonista ou utilitarista. O médico que não compreende o paciente em
sua integralidade, incluindo seus aspectos biográficos, espirituais,
emocionais, psicológicos e físicos, realmente não poderá oferecer o consolo e o
apoio tão necessário nos momentos finais de vida, correndo o risco de,
inclusive, acrescentar ao sofrimento do paciente.
O
profissional precisa de uma profunda compreensão dos estágios psicológicos e
existenciais que o paciente enfrenta. Após o diagnóstico difícil de uma
condição irreversível com desfecho fatal, há diversas atitudes que devem ser
esperadas e adequadamente conduzidas.[2]
O
paciente pode negar o diagnóstico feito. Pode procurar outra “opinião”. O
médico assistente deve ser respeitoso, realista e estar aberto a indicar outros
colegas, ciente de que o paciente precisa da realidade e que o médico
assistente deve manter-se à disposição para permanecer auxiliando o paciente a
atravessar esses estágios psicológicos.
O
paciente, quando entende que o diagnóstico está correto, pode entrar em um
estado de raiva, de revolta, projetando no médico os sentimentos de frustração
advindos da doença. É necessário ter paciência e mostrar-se sempre disposto a
ajudar, trazendo à tona a informação de que não há quem culpar pelos problemas
presentes.
Quando
a raiva esfria, o paciente pode tentar a negociação, buscando tratamentos
miraculosos ou fazendo promessas, tentando enfim manipular a realidade para
livrar-se de sua condição. Novamente ao médico cabe o realismo cordial,
instruindo o paciente a não prejudicar-se com falsas expectativas ao mesmo
tempo em que o estimula a viver sua vida de forma plena e fazer o que é
possível para melhorar seu estado físico e psíquico.
Por
fim, quando a consciência da aproximação da morte torna-se inevitável, muitos
entram num estágio de depressão. Perdem as esperanças em qualquer projeto ou o
gosto pelo viver. O médico deve estar ao lado do paciente para ajudá-lo a
realmente aceitar sua condição de vida, movendo-o para o estágio final de
aceitação.
No
estágio de aceitação, o paciente compreende a realidade e aceita seu destino.
Encontra-se capaz de colaborar com o médico em busca de qualidade para o
restante de sua existência. Sofre, mas segue adiante ou repousa enfim
tranquilo.
Esses
estágios podem variar conforme a pessoa, mas costumam estarem sempre presentes
em menor ou maior medida.
A
essas etapas talvez o médico consiga somar um estágio mais elevado, aquele de sublimação,
que incluiria a percepção de um significado existencial pessoal mesmo nos
momentos de maior tormento, fornecendo uma esperança nova a alguém que se
encontra à beira da morte. É a esperança num sentido para a vida, inclusive na
morte.
O
médico psiquiatra Viktor Frankl tratou com maestria acerca da busca pelo
sentido existencial na obra de sua vida: a escola logoterápica de psicanálise.[3]
Mesmo
que nenhuma medicação eficaz possa ser oferecida ao paciente, o médico deve
ajudá-lo a compreender seu estado, a ter uma noção realista sem o pessimismo
exagerado sobre o que pode ser feito para se viver com a felicidade que ainda é
possível e conseguir - se o tempo assim permitir - dizer as coisas que
realmente importam ao final de tudo.
O
paciente deve ter a chance de saber o que lhe aguarda por meio do conhecimento
de seu médico para que possa agradecer a quem de direito por tudo o que
recebeu, para que possa pedir desculpas e desculpar-se por ofensas feitas ou
recebidas e para que deixe bem claro que ama àqueles que fizeram diferença em
sua vida. Isso é respeitar a biografia do paciente e sua condição de pessoa. É
uma forma de terapia existencial que pode exigir muito do médico, até mesmo
mais empenho intelectual e emocional do que uma difícil terapia clínica ou
cirúrgica.[4]
É
nesse contexto extremo e difícil que os cuidados paliativos ganham destaque e
mostram-se cruciais para a relação médico-paciente e médico-família. Espera-se
que as escolas médicas tenham espaço hoje para discutir abertamente tais
questões, sem as vulgarizações e a ignorância que era tão comum até poucos anos
atrás.
E
durante os momentos finais, o médico assistente deve estar preparado para
declarar o óbito de seu paciente ou a morte cerebral, facilitando os entraves
burocráticos que podem atormentar a família no momento da perda de seu membro.[5]
Oferecer
apoio num contexto de cuidados paliativos, mesmo quando um colega paliativista
encontra-se por perto prestando apoio especializado, é um desafio para toda a
equipe de saúde. O médico deve respeitar e valorizar a vida de seu paciente e
seus familiares até ao último instante.
[1] HIPPOCRATES. Ancient Medicine. Airs, Waters, Places. Epidemics 1 and 3. The Oath.
Precepts. Nutriment. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical Library
147. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923; PESSIM, Kaio Cezar
Gomes; ANGOTTI NETO, Hélio. ‘A Relação Médico-Paciente na Obra Hipocrática:
Medicina Antiga; Ares, Líquidos e Locais; Epidemia I e III; Preceitos’. In:
ANGOTTI NETO, Hélio (org.). Mirabilia
Medicinæ 7, 2016, p. 1-15.
[2]
KÜBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a Morte e o
Morrer. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1996.
[3]
XAUSA, Izar Aparecida de Moraes. A
Psicologia do Sentido da Vida. Campinas: VIDE Editorial, 2013.
[4] BYOCK, Ira. The Four Things That Matter Most. A Book About Living. New York:
Atria Books, 2004.
[5]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.480/97. Internet, http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm