terça-feira, 4 de abril de 2017

Princípio XXII do Código de Ética Médica: DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA

Princípio XXII – Ortotanásia e Distanásia



XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.

Este princípio trata de dois conceitos importantes para a boa prática médica: Ortotanásia e Distanásia.

Ortotanásia é a morte conduzida adequadamente, sem a sobrecarga de procedimentos inúteis e dolorosos. Distanásia é a morte excessivamente sofrida, repleta de intervenções que nada contribuem para o prognóstico ou a qualidade de vida do paciente.

Um terceiro termo de elaboração mais recente seria Mistanásia, a morte sofrida por falta de condições econômicas e sociais. Se na Distanásia o risco é principalmente o de sofrer com excessos médicos, na Mistanásia o risco é sofrer com a falta de recursos médicos.

Embora tais expressões sejam de uso relativamente recente na ética médica, os cuidados com o paciente muito próximo da morte são discutidos pela medicina há milênios, inclusive com conceitos muitos próximos aos nossos. Na obra hipocrática, por exemplo, lê-se que:

Se deixados a si mesmos, os pacientes afundar-se-ão em sua condição dolorosa e partirão dessa vida após desistir de lutar. Mas aquele que tomou o paciente pela mão, mostrando as descobertas da arte enquanto respeita a natureza sem buscar alterá-la, irá afastar a depressão e a insegurança do momento.[1]

Desde as origens éticas, a medicina compreende que há um momento em que o melhor a ser feito pelo paciente é acompanhá-lo em seu momento de grande dúvida e sofrimento, para que tudo não se transforme em desespero. O médico deve ser o bom amigo que vai até ao limiar da vida. Mas qual é este limiar?

A medicina fala de estado terminal. Embora não seja simples caracterizar exatamente o que seja um estado terminal, visto que todos nós possuímos o estado terminal chamado vida, que inevitavelmente terminará com nossa morte, há algumas características básicas que devem ser observadas acerca do paciente terminal:

1 – deve portar doença incurável;

2 – não responde mais aos recursos médicos;

3 – está muito próximo da morte.

A importância de definir bem os termos jamais será ressaltada o  suficiente. O tema de como o médico deve agir diante da morte é delicado e já foi tratado de formas muito cruéis em nossa história.

No passado, e ainda hoje, acadêmicos defendem as mais terríveis ideias contra a vida humana e sua dignidade. Já se falou em “comedores inúteis”, morte compassiva, evitar sofrimento e promoção do bem comum para se justificar o massacre daqueles considerados indignos de viverem. Ao médico cabe valorizar a vida de seu paciente, sua dignidade e sua qualidade sem transformá-lo no alvo de um cálculo hedonista ou utilitarista. O médico que não compreende o paciente em sua integralidade, incluindo seus aspectos biográficos, espirituais, emocionais, psicológicos e físicos, realmente não poderá oferecer o consolo e o apoio tão necessário nos momentos finais de vida, correndo o risco de, inclusive, acrescentar ao sofrimento do paciente.

O profissional precisa de uma profunda compreensão dos estágios psicológicos e existenciais que o paciente enfrenta. Após o diagnóstico difícil de uma condição irreversível com desfecho fatal, há diversas atitudes que devem ser esperadas e adequadamente conduzidas.[2]

O paciente pode negar o diagnóstico feito. Pode procurar outra “opinião”. O médico assistente deve ser respeitoso, realista e estar aberto a indicar outros colegas, ciente de que o paciente precisa da realidade e que o médico assistente deve manter-se à disposição para permanecer auxiliando o paciente a atravessar esses estágios psicológicos.

O paciente, quando entende que o diagnóstico está correto, pode entrar em um estado de raiva, de revolta, projetando no médico os sentimentos de frustração advindos da doença. É necessário ter paciência e mostrar-se sempre disposto a ajudar, trazendo à tona a informação de que não há quem culpar pelos problemas presentes.

Quando a raiva esfria, o paciente pode tentar a negociação, buscando tratamentos miraculosos ou fazendo promessas, tentando enfim manipular a realidade para livrar-se de sua condição. Novamente ao médico cabe o realismo cordial, instruindo o paciente a não prejudicar-se com falsas expectativas ao mesmo tempo em que o estimula a viver sua vida de forma plena e fazer o que é possível para melhorar seu estado físico e psíquico.

Por fim, quando a consciência da aproximação da morte torna-se inevitável, muitos entram num estágio de depressão. Perdem as esperanças em qualquer projeto ou o gosto pelo viver. O médico deve estar ao lado do paciente para ajudá-lo a realmente aceitar sua condição de vida, movendo-o para o estágio final de aceitação.

No estágio de aceitação, o paciente compreende a realidade e aceita seu destino. Encontra-se capaz de colaborar com o médico em busca de qualidade para o restante de sua existência. Sofre, mas segue adiante ou repousa enfim tranquilo.

Esses estágios podem variar conforme a pessoa, mas costumam estarem sempre presentes em menor ou maior medida.

A essas etapas talvez o médico consiga somar um estágio mais elevado, aquele de sublimação, que incluiria a percepção de um significado existencial pessoal mesmo nos momentos de maior tormento, fornecendo uma esperança nova a alguém que se encontra à beira da morte. É a esperança num sentido para a vida, inclusive na morte.

O médico psiquiatra Viktor Frankl tratou com maestria acerca da busca pelo sentido existencial na obra de sua vida: a escola logoterápica de psicanálise.[3]

Mesmo que nenhuma medicação eficaz possa ser oferecida ao paciente, o médico deve ajudá-lo a compreender seu estado, a ter uma noção realista sem o pessimismo exagerado sobre o que pode ser feito para se viver com a felicidade que ainda é possível e conseguir - se o tempo assim permitir - dizer as coisas que realmente importam ao final de tudo.

O paciente deve ter a chance de saber o que lhe aguarda por meio do conhecimento de seu médico para que possa agradecer a quem de direito por tudo o que recebeu, para que possa pedir desculpas e desculpar-se por ofensas feitas ou recebidas e para que deixe bem claro que ama àqueles que fizeram diferença em sua vida. Isso é respeitar a biografia do paciente e sua condição de pessoa. É uma forma de terapia existencial que pode exigir muito do médico, até mesmo mais empenho intelectual e emocional do que uma difícil terapia clínica ou cirúrgica.[4]

É nesse contexto extremo e difícil que os cuidados paliativos ganham destaque e mostram-se cruciais para a relação médico-paciente e médico-família. Espera-se que as escolas médicas tenham espaço hoje para discutir abertamente tais questões, sem as vulgarizações e a ignorância que era tão comum até poucos anos atrás.

E durante os momentos finais, o médico assistente deve estar preparado para declarar o óbito de seu paciente ou a morte cerebral, facilitando os entraves burocráticos que podem atormentar a família no momento da perda de seu membro.[5]

Oferecer apoio num contexto de cuidados paliativos, mesmo quando um colega paliativista encontra-se por perto prestando apoio especializado, é um desafio para toda a equipe de saúde. O médico deve respeitar e valorizar a vida de seu paciente e seus familiares até ao último instante.



[1] HIPPOCRATES. Ancient Medicine. Airs, Waters, Places. Epidemics 1 and 3. The Oath. Precepts. Nutriment. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical Library 147. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923; PESSIM, Kaio Cezar Gomes; ANGOTTI NETO, Hélio. ‘A Relação Médico-Paciente na Obra Hipocrática: Medicina Antiga; Ares, Líquidos e Locais; Epidemia I e III; Preceitos’. In: ANGOTTI NETO, Hélio (org.). Mirabilia Medicinæ 7, 2016, p. 1-15.
[2] KÜBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1996.
[3] XAUSA, Izar Aparecida de Moraes. A Psicologia do Sentido da Vida. Campinas: VIDE Editorial, 2013.
[4] BYOCK, Ira. The Four Things That Matter Most. A Book About Living. New York: Atria Books, 2004.
[5] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.480/97. Internet, http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm