A Importância das Humanidades Médicas na Formação do Médico
Entrevista cedida a Davi Vieira, do Grupo de Estudos em Humanidades Médicas John Locke, da PUC-SP.
GELocke: Em primeiro lugar, nós do GELocke gostaríamos de agradecê-lo
por aceitar nosso convite para esta entrevista. Como surgiu o seu interesse
pelas Humanidades Médicas, e o que o fez criar o Seminário de Filosofia
Aplicada à Medicina?
Obrigado pelo convite!
O interesse nas Humanidades Médicas surgiu por uma confluência de diversos
fatores.
Primeiro, começava a travar na época um contato mais próximo com meus
pacientes, durante a residência, e assumia responsabilidades maiores pelo
próximo, o que sempre estimula a maior reflexão.
À época, também conheci a obra filosófica de Olavo de Carvalho, que
despertou o interesse pela área de Humanidades e me levou ao estudo de diversos
outros filósofos e campos do saber, incluindo história, ética, psicologia, teologia
e literatura.
Fortalecer minha fé também permitiu questionar com profundidade o
sentido de minha profissão e o quão importante e valoroso era buscar o
significado de tudo o que fazia, para mim e para o paciente que necessita de
auxílio.
No decorrer dos estudos humanísticos, que se iniciaram aproximadamente
em 2004, tive a oportunidade de ler Platão, Aristóteles, Hipócrates, Louis
Lavelle, Diego Gracia, Xavier Zubiri, Eric Voegelin, Mário Ferreira dos Santos,
Agostinho, João Calvino, Tomás de Aquino, José Ortega y Gasset, Pedro Lain
Entralgo, Julián Marías, Viktor Frankl e vários outros.
Conforme estudava e vivia a prática médica, também percebi a falta que
os estudos humanísticos de qualidade faziam à medicina. Quando muito, o
acadêmico (inclusive eu em minha graduação) recebia o que agora denomino “marmita
sociológica pop pseudointelectual”,
uma vulgarização do que deveria ser o conhecimento humanístico, uma peça
ideológica muito longe da verdadeira reflexão filosófica.
Em 2012, na qualidade de professor de medicina, resolvi fazer minha
parte para mudar o cenário e montei o SEFAM (Seminário de Filosofia Aplicada à
Medicina). Meu objetivo era partilhar o que aprendera e prosseguir na busca de
conhecimentos humanísticos úteis aos médicos e aos pacientes. Desde então sonho
em formar novos estudiosos, novos médicos com bagagem cultural suficiente para
trilharem seus próprios caminhos e enriquecerem a cultura médica em novas
direções sem perderem suas raízes milenares.
Foi no SEFAM que comecei também a aprofundar os estudos na obra de Edmund
Pellegrino - o pai da Ética Médica contemporânea, quase que completamente
desconhecido no Brasil – e dos originais hipocráticos, iniciando uma de minhas
linhas de pesquisa.
Como metodologia para o SEFAM, utilizei a Teoria Aristotélica dos Quatro
Discursos elaborada por Olavo de Carvalho, iniciando com a formação cultural
geral e literária, avançando pela retórica e pelas regras de argumentação, para
enfim exercitar a dialética e a lógica, afinando o discurso e o pensamento
durante dois ou mais anos. O SEFAM também trata de diversos outros assuntos, e
é um pouco imprevisível na medida em que abordamos temas de interesse dos
participantes. Podemos começar falando de metafísica aristotélica e terminar em
economia, política e saúde, por exemplo.
Desde o começo, a grande preocupação era agregar pessoas verdadeiramente
interessadas em crescer, refletir e aprender. Jamais foram enfatizados títulos,
notas ou certificados. Felizmente tais pessoas motivadas apareceram e, embora
poucas, tenho certeza que brilharão no futuro e, se Deus quiser, serão muito
melhores do que consegui ser.
Hoje o SEFAM caminha bem, com um livro publicado (A Morte da Medicina),
um trabalho premiado em Congresso Brasileiro e diversos outros apresentados em
congressos de nível nacional e internacional, artigos acadêmicos publicados em
revistas nacionais e internacionais, um segundo livro em edição e mais dois em
elaboração, três iniciações científicas concluídas e dois convites para palestrar
nos Estados Unidos e aumentar o intercâmbio cultural. Também estamos na
terceira edição do Seminário UNESC de Humanidades Médicas e este ano ajudamos a
organizar o I Seminário UFES de Humanidades Médicas. Com menos de quatro anos
de existência o SEFAM foi muito mais longe do que eu pensava. E o melhor de
tudo: estamos perto de concluir o ciclo de uma segunda turma do SEFAM!
GELocke: Qual é a importância das Humanidades na formação do médico?
A Medicina é uma maravilhosa Arte. Como toda arte, produz algo único,
assim como é único cada ser humano e cada situação que vive. Mas a Medicina
também utiliza a ciência e a tecnologia, amparada pela evidência estatística.
Essa combinação só é eficaz se somarmos a experiência e prudência de um agente
humano. Nenhum desses componentes pode faltar.
O médico precisa da ciência e da tecnologia para tratar com eficiência.
E precisa das humanidades para ser ele mesmo um agente terapêutico, para gerar o
famoso efeito placebo do médico. Precisa também das humanidades para se
comunicar de forma eficaz e para sentir na pele o que o paciente sente, ter a
tão necessária empatia que vem com a experiência de vida e com o caráter
virtuoso.
É curioso notar que, ao longo da história, quando o médico mais cuidou
de seu lado humanístico e, entenda-se, da ética profissional, de seu próprio
caráter e de sua excelência, ele gerou maior confiança e satisfação em seus
pacientes.
Por outro lado, mesmo dotada de incríveis aparatos tecnológicos e
estatísticas extremamente complexas unidas à metodologia de pesquisa, a
medicina contemporânea falha em satisfazer o paciente.
Medica-se! Porém não se “cuida” do paciente e, às vezes, nem de si mesmo.
As Humanidades Médicas complementam a Arte Médica. Dão profundidade,
experiência, riqueza de emoções, compreensão e comunicação ao médico. E acima
de tudo, potencializam o bem que pode ser feito ao paciente em necessidade.
E é claro que estudar humanidades é algo divertido, um fim em si mesmo.
Como não apreciar a leitura dos clássicos? Como não se surpreender com os
efeitos terapêuticos da música de qualidade em nosso espírito? Como não encher
os olhos e a mente com a boa pintura? Como não meditar na profundeza das
Escrituras e dos textos filosóficos?
GELocke: O nosso grupo tem como patrono o filósofo inglês John Locke. O
que pensa a respeito de Locke e da tradição liberal britânica?
O pouco que sei disso deriva principalmente da
obra de Roger Scruton, e de alguns volumes de história da filosofia (Giovanni
Reale, Frederick Copleston, Olavo de Carvalho e Julián Marías). Julgo que ainda
não estudei o suficiente para opinar a respeito de John Locke (não li seus
livros) e da tradição liberal britânica com qualidade, embora a princípio não
concorde com a idéia de não termos idéias inatas e considere que o liberalismo
funciona muito bem somente quando se tem valores culturais bem estabelecidos e
de boa qualidade.
GELocke: Recentemente, realizamos nosso primeiro evento, o I Ciclo de
Palestras "Bioética". Qual é a
importância da Bioética, e quais são os tópicos que mais despertam o seu
interesse na área?
Em primeiro lugar é importante ressaltar que
não podemos falar da Bioética, mas de muitas bioéticas, com muitas ênfases e
muitas perspectivas. Temos escolas de pensamento utilitaristas, escolas
baseadas em princípios ou virtudes, escolas secularistas ou religiosas, escolas
liberais ou marxistas, escolas feministas etc.
A Ética Médica é uma forma de bioética
especializada. Mas também gostaria de lembrar que o termo bioética ganhou
destaque há menos de meio século, enquanto que a Ética Médica já é discutida há
mais de dois milênios.
Os temas que despertam meu interesse em
bioética incluem o valor da vida humana e sua dignidade, o aborto e a
eutanásia, a história da ética médica e da medicina ao longo dos séculos, a
filosofia da medicina e a teologia aplicadas a questões éticas e a interface
entre política, cultura e saúde. Por gostar de Medicina Baseada em Evidências e
fazer parte de um Comitê de Ética em Pesquisa, acabo lidando também com Filosofia
da Ciência, Metodologia Científica e Ética em Pesquisa, assuntos extremamente
interessantes e importantes.
GELocke: Para maior aprofundamento nos tópicos relacionados à Bioética,
quais leituras o senhor sugere?
Há enciclopédias, manuais e tratados de grande abrangência, e há livros
sobre temas específicos. Depende muito do que se busca.
O primeiro conselho que posso dar é ir às fontes. Ler artigos é
necessário, mas sem bagagem cultural e muitos livros, nada feito.
Quer saber como Edmund Pellegrino abordou a ética em saúde? Leia os
livros de Pellegrino e tire suas conclusões.
Quer tecer críticas a respeito do principialismo? Leia os Princípios de
Ética Biomédica e assista aos cursos online da Georgetown University
(principalmente as aulas do Beauchamp).
Quer saber o que os religiosos pensam a respeito da Bioética? Leia
Fundamentos da Bioética Cristã Ortodoxa (Tristram Engelhardt), Ética Cristã (Norman
Geisler), a série publicada pela Editora Cultura Cristã e os dois volumes do Manual de Bioética (Elio Sgreccia). Isso só para falar dos Cristãos, sem tocar na Bioética judaica, islâmica ou oriental.
Quer entender a Ética Médica tradicional? Leia Hipócrates, Galeno,
William Osler, Thomas Percival e outros antigos, medievais, modernos e
contemporâneos de destaque.
Quer descobrir a fantástica trajetória da bioética e da Ética Médica?
Leia Diego Gracia e Albert Jonsen.
E se alguém deseja abordar um problema, pesquise opiniões, artigos e
livros de várias perspectivas, contrárias e favoráveis. Deixe correr um pouco
de tempo enquanto acumula diferentes experiências e conhecimentos. In tempus veritas. Abstenha-se de emitir
opiniões por um tempo enquanto ganha profundidade. Mantenha-se informado: a
realidade e a experiência concreta das pessoas envolvidas é crucial. Para sair
o meu primeiro artigo de bioética e meu primeiro livro foram quase dez anos de
estudo sobre um tema; e ainda acho que poderia ter estudado mais.
Edmund Pellegrino dava outra dica importante. Não há como estudar
Bioética sem estudar as Humanidades Médicas. E não há como estudar Humanidades
sem apelar à Filosofia. E como compreender o ser humano sem compreender sua fé,
seus valores, sua cosmovisão? Como consolar sem saber qual o sentido da
existência de seu paciente? O bom médico que pretende refletir sobre a vida
humana e a bioética apelará inclusive para a sabedoria dos textos sagrados e da
Teologia.
Não há atalho. Há somente a perspectiva de uma vida de busca e intensos
estudos.
GELocke: Nesse mesmo evento, uma das palestras tratou da teologia
asclepíade em Hipócrates. Qual é a relevância de Hipócrates na história da
medicina, e como seus ensinamentos ecoam na medicina contemporânea?
Hipócrates foi uma figura de grande carisma que nomeou toda uma escola
incluindo uma linhagem de médicos que herdaram concepções religiosas de
Pitágoras. Na extensa obra assinada com seu nome são demonstrados os
fundamentos morais da Medicina - que considera o ser humano digno – e a busca
pela virtude pessoal. Há um compromisso pessoal com a busca por uma vida
compatível com tão nobre missão. É com a escola hipocrática e sua descendência
também que o médico surge como profissional (professando valores), destacado do
ofício religioso propriamente dito, porém sem tornar-se destituído do
sentimento religioso.
A ética hipocrática é tão rica e possui elementos tão universais que foi
inclusive absorvida pela cristandade primitiva e medieval.
Obviamente é necessária uma contextualização de qualquer ética prévia.
Os tempos mudam sempre, com suas tecnologias e ciências, mas seu elemento de
universalidade e seu conteúdo humanístico persiste, e permite ao estudioso ler
Hipócrates e obter insights valorosos
para a prática médica contemporânea.
GELocke: Muitíssimo obrigado, professor!
Novamente agradeço o convite. Sucesso a todos
vocês, e não desistam de lutar por uma Medicina cada vez mais completa, mais
científica e mais humana!