quinta-feira, 5 de maio de 2016

ERÍSTICA E MEDICINA

A patrulha ideológica contra os nomes e os conhecimentos proibidos



Erística é a arte de discutir para vencer, por meios lícitos ou ilícitos.[1]

Recebi um ataque curioso após tornar público um texto anterior: O Médico em Busca da Filosofia. Digo ataque por se tratar de um clássico exemplo de erística, e não de um argumento válido.

Aproveito a ocasião para treinar um pouco de análise da erística, instrumento hoje indispensável para não ter o seu cérebro transformado em geleia.

Quando publiquei o texto, sabia muito bem do risco de despertar a raiva da militância e da patrulha ideológica, e o efeito surtido foi exatamente o desejado: obtive material para analisar o que se passa na cabeça do brasileiro, incluindo alguns médicos aparentemente favoráveis ao que critiquei no artigo.

O ataque começa com um clássico Ad Hominem[2] dirigido a uma escolha bibliográfica, objetivando desmerecer a análise do autor, isto é, fala-se de alguém e não de algo ou alguma situação:

Olavo de Carvalho não é exemplo pra médico algum, um desbocado e homofóbico de marca maior.
Não estou aqui para ser o advogado do mais que mal interpretado e atacado Olavo de Carvalho. Aliás, ele merece um advogado muito melhor do que um médico como eu; porém é trágico perceber que a discussão pública brasileira recorre sempre a este recurso tão limitado e inadequado.

Antonin-Dalmace Sertillanges, autor do livro A Vida Intelectual[3], antigamente recomendado normalmente aos calouros de medicina[4], preconizava que somente a verdade interessa, independente da boca que a profere. Dizer que alguém é isto ou aquilo nada depõe contra a verdade ou falsidade de seu conteúdo.

E, mesmo que o ataque fosse verdadeiro, seria algo tão absurdo quanto dizer que Oscar Wilde não merece ser lido ou citado por ter sido um pedófilo. Ou ninguém deveria escutar o Apóstolo Paulo por ter sido ele um assassino de Cristãos.

Mas, para a patrulha ideológica, o pior crime possível é discordar do pensamento único.

Além disso, a rotulação odiosa[5] utilizada – desbocado e homofóbico – também não é critério para se avaliar a obra filosófica de alguém.

O que se segue é uma curiosa variação de ataques erísticos no mínimo duvidosos em termos de pragmaticidade.

O patrulheiro ideológico começa com um apelo à ignorância do leitor. Isso mesmo, ele apela à ignorância do leitor e alude ao mesmo tempo à uma provável ignorância do autor (eu).

Creio que você formaria um juízo mais próximo da realidade se frequentasse congressos de formação médica e apresentasse trabalhos a pessoas dessa área de conhecimento, não para médicos neófitos em humanidades.
É deprimente discutir em termos de fiz isso ou aquilo, mas não deixa de ser uma resposta com fatos a um ataque indevido do tipo Ad Hominem contra alguém que mal se conhece:

(1) eu frequento diversos fóruns e congressos de educação médica, colaborando no COBEM com um grupo de estudo; 

(2) todas estas discussões aqui no Academia Médica já foram e são ainda travadas em ambientes acadêmicos e especializados dentro e fora do Brasil; 

(3) já apresentei diversos trabalhos a pesquisadores das Humanidades Médicas no Congresso Brasileiro de Bioética - no qual fui premiado como um dos melhores trabalhos de fundamentação filosófica da bioética -, no COBEM e no Congresso Internacional de humanidades Médicas.

Acredito que qualquer médico ou estudante de medicina está intelectualmente mais que capacitado para acompanhar a discussão em Bioética e Humanidades Médicas, embora talvez não esteja disposto a aceitar a insossa marmita ideológica de muitos dos nossos líderes.

E, para encerrar o ataque erístico, ocorre uma série de mudanças de assunto e espantalhos, isto é, de ataques do tipo mutatio controversiae, nos quais o colega patrulheiro tece acusações contra algo que não foi feito e ataca alguém que não existe.[6]

Contra preconceitos, o médico não cura a si mesmo apenas lendo textos, mas o faz principalmente em diálogo com os outros, num currículo mais humano, sim. Esse debate você já perdeu e os currículos devem e vão continuar mudando.
Em meu artigo, o ataque foi direcionado à elite burocrática que nada ou pouco entende do que deseja legislar, e a uma hoste de ideólogos e doutrinadores criminosos que brincam com o cérebro de jovens médicos nas escolas.

Primeiro ponto: ninguém atacou módulos ou disciplinas que ensinam o diálogo com o outro. Na verdade, eu pessoalmente introduzi em um dos módulos onde leciono, a atividade de conversar com o paciente precocemente.

Segundo ponto: este não é um debate, e o empreendimento da educação médica, especialmente em Humanidades Médicas, não pode ser reduzido a uma estúpida luta política, na qual se perde ou ganha. A politização exagerada de nossa cultura é uma das fontes da tragédia brasileira.

Terceiro ponto: Ninguém deseja congelar a reforma curricular. Eu mesmo implementei uma reforma e encabecei outra, atualmente também implementada! O currículo com certeza deverá seguir em mudança, pois a realidade é dinâmica. Obviedade das obviedades.

No fim, o exemplo utilizado aqui repete uma fórmula usada à exaustão no Brasil: cria-se um espantalho, uma falsa imagem de alguém que não se gosta pelas mais diversas razões, e ao invés de mirar o ataque, a objeção ou a crítica na pessoa ou nos fatos reais, ataca-se a falsa imagem, de regra construída na forma de esquema simplificado e tosco.

Que isso ocorra no Brasil de forma difusa não é surpresa. Num país onde fração expressiva da classe universitária – professores e alunos – é tida como analfabeta em termos funcionais, não se pode esperar mais do que isso. Mas que isso ocorra vindo de colegas médicos, segundo alguns a “nata” da educação, produtos de uma escola rigorosa e extremamente exigente, é assustador.

Se as Humanidades Médicas podem ajudar em algo, aqui temos um exemplo. Com os estudos das Humanidades aprende-se a gramática, a oratória e a lógica e, portanto, aprende-se como argumentar e viver em sociedade de forma civilizada.

E para o desgosto da patrulha ideológica, deixo mais uma recomendação ligada ao injustamente odiado e mais que necessário Olavo de Carvalho: Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, escrito por Arthur Schopenhauer e comentado por adivinhem quem?



Por fim, uma dica complementar que trata das formas de manipulação psicológica utilizadas comumente em nossa sociedade: Maquiavel Pedagogo, de Pascal Bernardin.





Prof. Dr. Hélio Angotti Neto é Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas) e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM). Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e do Center for Bioethics and Human Dignity.






[1] SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38 Estratagemas (Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 95.
[2] SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38 Estratagemas (Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 148. Lembro que há situações nas quais atacar uma pessoa é válido, mas não configura um apelo Ad Hominem, e sim, um argumentum in contrarium. O exemplo clássico é a tese marxista de que a classe proletária liderará a revolução, sendo ele mesmo, um líder revolucionário, burguês. A existência factual de Karl Marx desmente sua própria tese!
[3] SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A Vida Intelectual: Seu Espírito, Suas Condições, Seus Métodos. São Paulo: É Realizações, 2010.
[4] BRAGA, Homero. Um momento, Calouro! Aula inaugural proferida na solenidade de abertura dos Cursos da Faculdade de Medicina do Paraná, a 1º de março de 1947. Homero Braga foi Catedrático de Clínica Pediátrica Médica e Higiene Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade do Paraná.
[5] SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38 Estratagemas (Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 174.
[6] SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38 Estratagemas (Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 150.