A patrulha ideológica contra os nomes e os conhecimentos proibidos
Erística
é a arte de discutir para vencer, por meios lícitos ou ilícitos.[1]
Recebi
um ataque curioso após tornar público um texto anterior: O Médico em Busca da Filosofia. Digo ataque por se tratar de um clássico exemplo de erística, e não
de um argumento válido.
Aproveito
a ocasião para treinar um pouco de análise da erística, instrumento hoje
indispensável para não ter o seu cérebro transformado em geleia.
Quando
publiquei o texto, sabia muito bem do risco de despertar a raiva da militância
e da patrulha ideológica, e o efeito surtido foi exatamente o desejado: obtive
material para analisar o que se passa na cabeça do brasileiro, incluindo alguns
médicos aparentemente favoráveis ao que critiquei no artigo.
O
ataque começa com um clássico Ad Hominem[2]
dirigido a uma escolha bibliográfica, objetivando desmerecer a análise do
autor, isto é, fala-se de alguém e não de algo ou alguma situação:
Olavo de Carvalho não é exemplo pra médico algum, um
desbocado e homofóbico de marca maior.
Não
estou aqui para ser o advogado do mais que mal interpretado e atacado Olavo de
Carvalho. Aliás, ele merece um advogado muito melhor do que um médico como eu;
porém é trágico perceber que a discussão pública brasileira recorre sempre a
este recurso tão limitado e inadequado.
Antonin-Dalmace
Sertillanges, autor do livro A Vida Intelectual[3],
antigamente recomendado normalmente aos calouros de medicina[4], preconizava
que somente a verdade interessa, independente da boca que a profere. Dizer que
alguém é isto ou aquilo nada depõe contra a verdade ou falsidade de seu
conteúdo.
E, mesmo que o ataque fosse verdadeiro, seria algo tão absurdo quanto dizer que
Oscar Wilde não merece ser lido ou citado por ter sido um pedófilo. Ou ninguém
deveria escutar o Apóstolo Paulo por ter sido ele um assassino de Cristãos.
Mas,
para a patrulha ideológica, o pior crime possível é discordar do pensamento
único.
Além
disso, a rotulação odiosa[5]
utilizada – desbocado e homofóbico –
também não é critério para se avaliar a obra filosófica de alguém.
O
que se segue é uma curiosa variação de ataques erísticos no mínimo duvidosos em
termos de pragmaticidade.
O
patrulheiro ideológico começa com um apelo à ignorância do leitor. Isso mesmo,
ele apela à ignorância do leitor e alude ao mesmo tempo à uma provável
ignorância do autor (eu).
Creio que você formaria um juízo mais próximo da
realidade se frequentasse congressos de formação médica e apresentasse
trabalhos a pessoas dessa área de conhecimento, não para médicos neófitos em
humanidades.
É
deprimente discutir em termos de fiz isso ou aquilo, mas não deixa de ser uma resposta com fatos a um ataque indevido do tipo Ad Hominem
contra alguém que mal se conhece:
(1) eu frequento diversos fóruns e congressos de educação médica, colaborando no COBEM com um grupo de estudo;
(2) todas estas discussões aqui no Academia Médica já foram e são ainda travadas em ambientes acadêmicos e especializados dentro e fora do Brasil;
(3) já apresentei diversos trabalhos a pesquisadores das Humanidades Médicas no Congresso Brasileiro de Bioética - no qual fui premiado como um dos melhores trabalhos de fundamentação filosófica da bioética -, no COBEM e no Congresso Internacional de humanidades Médicas.
Acredito que qualquer médico ou estudante de medicina está intelectualmente mais que capacitado para acompanhar a discussão em Bioética e Humanidades Médicas, embora talvez não esteja disposto a aceitar a insossa marmita ideológica de muitos dos nossos líderes.
E,
para encerrar o ataque erístico, ocorre uma série de mudanças de assunto e espantalhos, isto é,
de ataques do tipo mutatio controversiae,
nos quais o colega patrulheiro tece acusações contra algo que não foi feito e
ataca alguém que não existe.[6]
Contra preconceitos, o médico não cura a si mesmo
apenas lendo textos, mas o faz principalmente em diálogo com os outros, num currículo
mais humano, sim. Esse debate você já perdeu e os currículos devem e vão
continuar mudando.
Em
meu artigo, o ataque foi direcionado à elite burocrática que nada ou pouco
entende do que deseja legislar, e a uma hoste de ideólogos e doutrinadores
criminosos que brincam com o cérebro de jovens médicos nas escolas.
Primeiro
ponto: ninguém atacou módulos ou disciplinas que ensinam o diálogo com o outro.
Na verdade, eu pessoalmente introduzi em um dos módulos onde leciono, a
atividade de conversar com o paciente precocemente.
Segundo
ponto: este não é um debate, e o empreendimento da educação médica,
especialmente em Humanidades Médicas, não pode ser reduzido a uma estúpida luta
política, na qual se perde ou ganha. A politização exagerada de nossa cultura é
uma das fontes da tragédia brasileira.
Terceiro
ponto: Ninguém deseja congelar a reforma curricular. Eu mesmo implementei uma
reforma e encabecei outra, atualmente também implementada! O currículo com
certeza deverá seguir em mudança, pois a realidade é dinâmica. Obviedade das
obviedades.
No
fim, o exemplo utilizado aqui repete uma fórmula usada à exaustão no Brasil:
cria-se um espantalho, uma falsa imagem de alguém que não se gosta pelas mais
diversas razões, e ao invés de mirar o ataque, a objeção ou a crítica na pessoa
ou nos fatos reais, ataca-se a falsa imagem, de regra construída na forma de
esquema simplificado e tosco.
Que
isso ocorra no Brasil de forma difusa não é surpresa. Num país onde fração
expressiva da classe universitária – professores e alunos – é tida como
analfabeta em termos funcionais, não se pode esperar mais do que isso. Mas que
isso ocorra vindo de colegas médicos, segundo alguns a “nata” da educação,
produtos de uma escola rigorosa e extremamente exigente, é assustador.
Se
as Humanidades Médicas podem ajudar em algo, aqui temos um exemplo. Com os
estudos das Humanidades aprende-se a gramática, a oratória e a lógica e,
portanto, aprende-se como argumentar e viver em sociedade de forma civilizada.
E
para o desgosto da patrulha ideológica, deixo mais uma recomendação ligada ao injustamente
odiado e mais que necessário Olavo de Carvalho: Como Vencer um Debate Sem
Precisar Ter Razão, escrito por Arthur Schopenhauer e comentado por adivinhem
quem?
Por fim, uma dica complementar que trata das formas de manipulação psicológica utilizadas comumente em nossa sociedade: Maquiavel Pedagogo, de Pascal Bernardin.
Por fim, uma dica complementar que trata das formas de manipulação psicológica utilizadas comumente em nossa sociedade: Maquiavel Pedagogo, de Pascal Bernardin.
Prof.
Dr. Hélio Angotti Neto é Coordenador do Curso de Medicina
do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ
(Revista internacional em Humanidades Médicas) e criador do Seminário de
Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM). Membro da Comissão de Ensino Médico do
CRM-ES, do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e do Center for Bioethics and
Human Dignity.
[1] SCHOPENHAUER,
Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38 Estratagemas
(Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 95.
[2] SCHOPENHAUER,
Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38 Estratagemas
(Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 148. Lembro que há situações nas quais atacar
uma pessoa é válido, mas não configura um apelo Ad Hominem, e sim, um argumentum
in contrarium. O exemplo clássico é a tese marxista de que a classe
proletária liderará a revolução, sendo ele mesmo, um líder revolucionário,
burguês. A existência factual de Karl Marx desmente sua própria tese!
[3]
SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A Vida
Intelectual: Seu Espírito, Suas Condições, Seus Métodos. São Paulo: É
Realizações, 2010.
[4]
BRAGA, Homero. Um momento, Calouro!
Aula inaugural proferida na solenidade de abertura dos Cursos da Faculdade de
Medicina do Paraná, a 1º de março de 1947. Homero Braga foi Catedrático de
Clínica Pediátrica Médica e Higiene Infantil da Faculdade de Medicina da
Universidade do Paraná.
[5] SCHOPENHAUER,
Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38 Estratagemas
(Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 174.
[6]
SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, em 38
Estratagemas (Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários – Olavo de
Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 150.