A LITERATURA COMO REMÉDIO
Os Clássicos e a Saúde da Alma
Entrei em contato com o Professor Dante Gallian em 2013, no Congresso Internacional de Humanidades Médicas realizado na Universidade Federal de São Paulo. O Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina acabara de começar, e lá eu apresentava meus primeiros resultados e minha fundamentação teórica, e aprendia um pouco da experiência de outros professores na nobre tentativa de humanização da saúde. Foi com alegria que recebi um exemplar de seu livro, que reconta sua trajetória e expõe seus ideais. Livro este que me foi presenteado por uma amiga em uma reunião justamente dedicada ao estudo em conjunto da Alta Cultura literária e da filosofia! Não poderia haver melhor presente.
O livro inicia com a reconstrução da história sobre como surgiu o Laboratório de Humanidades Médicas (LABHUM), e de como ideais se transformaram e se sistematizaram em pesquisas que, aos poucos, ganharam merecido reconhecimento internacional. O LABHUM, dedicado primariamente aos alunos de medicina da UNIFESP, gerou uma iniciativa denominada de Laboratório de Leitura (LabLei), que se estendeu para a comunidade e para o meio corporativo, e se ramificou, inclusive, em grupos de leitura domiciliar.
O uso humanístico da literatura para formar um ser humano integral é fundamentado no capítulo 2 do livro de Gallian: A Literatura como Remédio. O papel formativo da literatura é relembrado e enfatizado de forma ousada, ecoando uma antiga crítica ao tecnicismo cientificista e ao reducionismo da educação.
Curiosamente, entretanto, aquilo que hoje é visto como algo de importância relativa e complementar (espécie de verniz cultural ou erudição) foi, em todas as culturas humanas, das mais primitivas às mais sofisticadas, o elemento estruturador por excelência.[1]
As narrativas, componente do discurso poético tão bem descrito por Olavo de Carvalho em sua obra Aristóteles em Nova Perspectiva,[2]nos fornecem o “efeito pedagógico do exemplo”, conforme Jaeger,[3]e encarnam, muitas vezes, os mitos fundadores de toda uma civilização.[4]
Coerentemente com esta função de determinação da identidade e do ethosda comunidade, as narrativas desempenhavam também um papel essencial no processo de formação de seus indivíduos.[5]
Nesse contexto formativo, disponibilizar a leitura dos clássicos realmente assume um papel estruturador e terapêutico em uma sociedade amontoada de indivíduos cada vez mais solitários e culturalmente alienados, embora cada vez mais espremidos em grandes centros urbanos. As narrativas permitem a compreensão do próximo e a expressividade, promovendo o fenômeno de catarse, pois “desde os tempos homéricos, que ‘a arte tem um poder ilimitado de conversão espiritual’; um extraordinário poder humanizador”.[6]
Para isso, Gallian ressalta que o que se espera não é a leitura ressequida e sistematizada dos que se dizem críticos literários, mas uma leitura aberta, disposta a embarcar na viagem para a qual nos chama o autor de cada clássico, uma leitura pautada pelo que Samuel Taylor Coleridge chamava de Suspension of Disbelief.
No capítulo III, Gallian explica em detalhes o funcionamento do LabLei, incluindo o Itinerário de Discussão – que visita a obra escolhida em etapas – e uma síntese ao final de um ciclo denominada Histórias de Convivência, na qual o participante poderá realizar o “balanço, a síntese de toda a experiência laboratorial vivenciada”.[7]
Com excertos oferecidos pelos participantes, Gallian oferece ao leitor os resultados que podem ser esperados por aqueles que mergulham na leitura em grupo dos clássicos no capítulo final: (1) a experiência da leitura torna-se prazerosa – é despertada – e sofre importante potencialização e, com isso, aumenta-se o poder de compreensão do leitor; (2) o horizonte cultural e intelectual é amplificado, fomentando o desenvolvimento de habilidades; (3) questões essenciais da existência humana são confrontadas, o que gera repercussões na formação pessoal e na vivência ética em sociedade; (4) a humanização de si e a consequente abertura empática para o próximo; (5) e um efeito catártico e terapêutico.
Dante Gallian está de parabéns, pois compreendeu que a literatura tem seu valor para todos. Seu empreendimento cultural, iniciado em uma tradicionalíssima escola de medicina, encontra-se entre aquelas preciosas iniciativas que compreenderam que “em todas as profissões, um conhecimento da literatura geral é de grande importância para um amplo intercâmbio com a humanidade.”[8]
Hélio Angotti Neto
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Hélio Angotti Neto é médico formado pela Universidade Federal do Espírito Santo com Residência Médica em Oftalmologia e Doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atua como Professor e Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo. É Presidente do Capítulo de História da Medicina da Sociedade Brasileira de Clínica Médica (Triênio 2017-2020), membro do Conselho Brasileiro de Oftalmologia e Delegado do Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo em Colatina (2018-2023). Foi Global Scholar do Center for Bioethics and Human Dignityda Trinity International Universityem 2016 (Illinois, USA) e é Diretor Editorial da Mirabilia Medicinae, publicação em Humanidades Médicas sediada no Institut d’Estudis Medievalsda Universidad Autónoma de Barcelona. Publicou os livros: A Morte da Medicina; A Tradição da Medicina; Disbioética Volume 1: Reflexões acerca de uma estranha ética; Disbioética Volume 2: Novas Reflexões Sobre uma Ética Estranha; Disbioética Volume 3: O Extermínio do Amanhã; Arte Médica: De Hipócrates a Cristo; além de diversos capítulos de livros e artigos em Oftalmologia, Bioética, Política e Humanidades Médicas. Criador e Coordenador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina. É Presbítero da 3ª Igreja Presbiteriana de Colatina. Casado com Joana e pai de Arthur, Heitor e André.
[1]GALLIAN, Dante. A Literatura como Remédio. Os Clássicos e a Saúde da Alma. São Paulo, SP: Martin Claret, 2017, p. 59-60.
[2]CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas, SP: Vide Editorial, 2014.
[4]PETERSON, Jordan. Maps of Meaning. The Architecture of Belief. New York & London: Routledge, 1999.
[8]YALE, Universidade de. A Educação Superior e o Resgate Intelectual. O Relatório de Yale de 1828. Campinas, SP: Vide Editorial, 2016.