O ESTADO COMO PARTE DA REVOLUÇÃO
Comentários sobre O Estado e a Revolução, de Vladímir Ilitch Lênin
LÊNIN, Vladímir Ilitch. O Estado e a Revolução. São Paulo, SP: Boitempo, 2017, 214p.
Lênin foi, sem dúvida, um dos grandes intérpretes e aplicadores da obra de Karl Marx e Friedrich Engels. Assim, pelo menos, creem vários dos grandes nomes dentro do próprio movimento revolucionário. Para György Lukács, “Lênin restabeleceu a pureza da doutrina marxiana”. Considerando a forma da revolução, uma das estrelas contemporâneas do movimento revolucionário, Slavoj Zizek, preconiza que “mais do que nunca, devemos voltar a Lênin (...) – a intervenção deve ser verdadeiramente política, não econômica”.
Portanto, antes que algum desinformado venha com a conversa de que “deturparam” Karl Marx pela milionésima vez, vou deixar claro que Lênin aplicou de forma fiel o que Marx e Engels pregavam, e sua sangrenta prática política revolucionária ainda é louvada, ainda mexe com o ideário marxista contemporâneo e ainda oferece caminhos, como a própria comentarista da edição recente de O Estado e a Revoluçãoafirma:
(...) mais do que nunca, e principalmente para as novas gerações, os clássicos do marxismo são necessários. E, se Lênin é um companheiro nesta caminhada, sua obra é um farol que nos ajuda na travessia – com sua coesão, sua fidelidade aos fundadores do materialismo dialético, sua consciência dos limites da ação, seu destemor diante de passos ousados, sua firmeza diante da tarefa de guiar os camaradas, sua denúncia dos que se venderam por um prato de lentilhas.[1]
Sim, toda a violência e a ânsia pelo extermínio continua em voga. Pode ser que o polido verniz da democracia burguesa ainda impeça que estudiosos marxistas hoje falem abertamente da forma como Lênin e Marx falavam no passado. Contudo, lá no fundo, muitos deles guardam a velha esperança de ver o sistema estatal cair em suas mãos definitivamente, para que possam promover a ditadura do proletariado que, sugestivamente, mistura soldados e proletários. Todavia, na prática histórica, sofreram tanto os burgueses quanto os proletários nas mãos armadas da elite revolucionária, ainda mais desigual, ainda mais tirana e ainda mais corrupta do que qualquer burguesia precedente.[2]
No seu pequeno livro, Lênin reúne algumas teses clássicas do pensamento revolucionário marxista: (1) O socialismo é um primeiro passo no qual o Estado é tomado pelos proletários, (2) o capitalismo é quem leva à sua própria destruição, (3) a burguesia deve ser suprimida por meio da violência armada e (4) após o socialismo instalado, virá uma era verdadeiramente comunista, na qual a regra será “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades.”
Contrariando os socialistas que tentam redimir a imagem de Marx, Engels e Lênin, a linguagem é clara: a violência é o caminho. A derrubada da burguesia tem que ser violenta, enquanto o definhamento do Estado ocorrerá entre o socialismo e o tão sonhado comunismo.
Já dissemos, e mostraremos mais detalhadamente na exposição a seguir, que a doutrina de Marx e Engels sobre a inevitabilidade da revolução violenta refere-se ao Estado Burguês. Este não pode ser substituído pelo Estado proletário (pela ditadura do proletariado) pela via do “definhamento”, mas apenas, como regra geral, por meio da revolução violenta.[3]
A substituição do Estado Burguês pelo proletário é impossível sem a revolução violenta. A extinção do Estado proletário, ou seja, a extinção de todo o Estado, é impossível de outro modo senão por meio de seu definhamento.[4]
A visão leninista do Estado tem caráter pragmático, reconhecendo seus aspectos coercitivos e nocivos, como também fazem os liberais, em certa medida. Todavia, por outro lado, Lênin e seus descendentes revolucionários desejam instrumentalizar o Estado para a tomada e a manutenção do poder. Esse uso do Estado para suprimir violentamente outras classes não foi um experimento teórico, foi um experimento prático que realmente levou à morte mais de cem milhões de pessoas na União Soviética e na China Maoísta.
O Estado é a organização especial do poder, é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer. (...) Os trabalhadores precisam do Estado apenas para reprimir a resistência dos espoliadores e dirigir essa repressão, trazê-la à vida; apenas o proletariado está e condições de fazer isso, como única classe revolucionária até o fim, única classe capaz de unir todos os trabalhadores e explorados na luta contra a burguesia, por seu completo afastamento.[5]
O anseio pela tomada do Estado é algo que permanece no movimento revolucionário desde suas origens. Em formulações posteriores como a de Antônio Gramsci, o foco pode sair um pouco da política – como era no caso de Lênin – e caminhar para a instrumentalização da cultura; contudo, o Estado ainda é a peça-chave.
O Brasil é um exemplo recente de tomada cultural de Igrejas, Escolas e Universidades para ascensão política posterior e uso do aparelho de Estado para fortalecimento próprio e desenvolvimento de um processo de feedbackpositivo entre meios culturais, políticos e econômicos para a criação da hegemonia. O Partido dos Trabalhadores teve a estratégia e a paciência de pôr em prática a Grande Marcha Para Dentro das Instituiçõese fazer uso descarado do Estado para enriquecer e se estabelecer por anos no poder. Para a sorte do povo brasileiro, o projeto de violência política não foi iniciado, mas o processo de vitimização própria como justificativa para agressão contra o outro emplacou totalmente, uma prescrição leninista que justificava o extermínio com base na busca de justiça pelo sofrimento de uma classe espoliada.
As classes espoliadas precisam do domínio político em nome do interesse da completa extinção de toda a espoliação, ou seja, do interesse da imensa maioria do povo contra a minoria insignificante dos escravistas contemporâneos, ou seja, os latifundiários e os capitalistas.[6]
Muito interessante é que no Brasil do Partido dos Trabalhadores, a elite política e seus asseclas que se intitulavam pertencentes à classe dos trabalhadores – mesmo que nunca tenham de fato trabalhado, na concepção real do termo – uniram-se justamente aos maiores empresários do país, montando a maior teia de corrupção e evasão de divisas públicas da nossa história e talvez da história mundial.
Em uma manobra que não guarda nada de imprevisibilidade, os que se diziam “espoliados” uniram-se aos muito fortes e instrumentalizaram os fracos para obliterar cada vez mais a classe do meio. Um clássico mecanismo de concentração de poder tirânico prescrita desde Platão e descrita de forma excelente por Bertrand de Jouvenel.[7]
Friedrich Engels, citado por Lênin, somente reforça o sentimento de autoritarismo necessário para o empreendimento da revolução:
Uma revolução e certamente a coisa mais autoritária que há; é o ato pelo qual uma parte da população impõe à outra parte sua vontade por meio de espingardas, baionetas e canhões, ou seja, por meio autoritários por excelência; e o partido vitorioso, se não quer ter combatido em vão, deve continuar esse domínio com o terror que as suas armas inspiram aos reacionários.[8]
A ideia leninista de que há duas fases, uma socialista e uma comunista, repete-se em outras obras suas como Socialismo, Doença Infantil do Comunismo. Mas o que se vê ao lançar os olhos sobre a história dos últimos dois séculos, é um socialismo que se implanta e invariavelmente estagna, pois, na prática, após mais de um século de sangrentos experimentos sociais, o comunismo continua servindo somente como ópio para os intelectuais e moedor de carne contra as massas.
Assim, na primeira fase da sociedade comunista (que se costuma chamar socialismo), o “direito burguês” não é abolido completamente, mas apenas em parte, na medida em que a revolução econômica foi realizada, isto é, apenas no que diz respeito aos meios de produção. O “direito burguês” atribui aos indivíduos a propriedade privada daqueles. O socialismo faz deles propriedade comum. É nisso – e somente nisso – que o direito burguês é abolido.[9]
O aparelhamento socialista promovido no Brasil dentro do Supremo Tribunal Federal e toda a ideologia de distorção jurídica em prol da revolução confirmam a docilidade ainda presente frente às teses leninistas. Mesmo que nominalmente a propriedade continue privada, a cada dia mais regulamentações e impostos deixam bem claro que o proprietário cada dia mais pode ser reconhecido como proprietário de alguma coisa somente por concessão e “extrema bondade” do Estado, seu senhor. Mesmo que tenhamos leis, a cada dia os revolucionários de toga distorcem e torturam o texto para que lhes saia das páginas de papel exatamente o que mandam seus corações, já tão escravos de sua patota ideológica.
Talvez seja este o impedimento para uma aliança entre liberais e socialistas, como tanto desejou Murray Rothbard, contra os conservadores.[10]Os socialistas – eternas encarnações infantis dos comunistas, conforme Lênin – sempre estarão dispostos a usar e abusar profundamente do Estado, assim como sempre estarão dispostos a aumenta-lo indefinidamente, enquanto a própria ideia de um Estado grande desperta repulsa intensa e imediata nos bons liberais.
A “morte gradual do Estado” somente ocorreria, no discurso leninista, após a completa instalação da ditadura do proletariado socialista. Até esse ponto ainda jamais alcançado, o papel central do Estado é destruir certos componentes da população. Portanto, qualquer tentativa de creditar os terríveis massacres feitos pelos regimes socialistas mundo afora a pessoas que “não fizeram o socialismo direito” somente poderá ser fruto da extrema ignorância irresponsável ou do mais profundo cinismo. “Esmagar” pessoas sempre foi a meta dos clássicos marxistas e leninistas.
O Estado morre na medida em que não há mais capitalistas, em que não há mais classes e, por isso, não há mais necessidade de esmagar nenhuma classe.[11]
E esse banho de sangue, no seu ápice extremo, finalmente levará ao paraíso terrestre, pois
O Estado poderá desaparecer completamente quando a sociedade tiver realizado o princípio “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”.[12]
Essa promessa de uma consumação escatológica dos tempos atuais para alcançar um estado de glória terrena é o que Eric Voegelin acusou de Imanentização do Eskathón.[13]É uma promessa de expectativa quase religiosa capaz de motivar as inversões da mentalidade revolucionária descritas pelo Filósofo brasileiro Olavo de Carvalho. Em prol de uma causa maravilhosa, o revolucionário em busca de concentração de poder julga a realidade sob três importantes inversões:
1 - A inversão temporal, na qual se faz no presente aquilo que é considerado necessário para a concretização de um futuro certo;
2 - A inversão moral, na qual se defende a realização de um ato cruel em prol de uma boa causa;
3 - A inversão agente-objeto, na qual o praticante de determinado ato se vê como vítima da imperiosa necessidade histórica.
E se você acha que os olhos sempre vigilantes do Big BrotherOrwelliano foram uma inovação stalinista, é porque não prestou atenção na antiga prescrição de onipresença estatal socialista. É curioso quando jovens socialistas dizem combater a opressão policialesca do Estado em prol da liberdade. Mal sabem eles que lutam pelo mais violento e opressor dos Estados. Ou, se sabem, são perigosos bandidos capazes de gerar grande mal e destruição na sociedade.
Até a chegada dessa fase superior do comunismo, os socialistas exigem a fiscalização rigorosa do trabalho e do consumo pela sociedade e pelo Estado, mas essa fiscalização deve começar pela expropriação dos capitalistas e ser exercida pelo Estado dos operários armados, não pelo Estado dos funcionários.[14]
Esse exercício do poder estatal pelos “operários armados” pode, inclusive, degenerar a condição de classe daqueles que ocupam o Estado em processo de definhamento. Lênin prevê a corrupção de alguns elementos revolucionários por causa do contato com a máquina burocrática do Estado arrancada das mãos da burguesia. É como se os revolucionários se tornassem aburguesados.
(...) pessoas privilegiadas, desligadas das massas, colocadas acima das massas. Nisso reside a essência do burocratismo e, enquanto os capitalistas não forem expropriados, enquanto a burguesia não for derrubada, até esse momento é inevitável certa burocratização mesmo dos funcionários proletários.[15]
Em relação à tão querida democracia, palavra que incontáveis intelectuais usam com boca cheia e cérebro ausente, Lênin tece críticas formais ainda hoje reproduzidas com muita correção por bons cientistas políticos. Aliás, os anarcocapitalistas guardam, de forma semelhante, uma visão pragmática e pessimista da democracia, e têm sua boa cota de razão.[16]
A democracia é uma das formas, uma das variantes do Estado. Por consequência, como todo Estado, ela é o exercício organizado, sistemático, da coerção sobre os homens.[17]
A gradual transformação socialista da sociedade, inclusive, deve contar com a utilização daqueles mesmos que devem ser destruídos. Realidade também presente no Brasil, onde a burguesia docilmente oferece todas as armas que socialistas precisam para a oprimir e, por fim, destruir.
(...) é totalmente impossível derrubar, de um dia para o outro, os capitalistas e os funcionários e substituí-los, no controle da produção e da repartição, no recenseamento do trabalho e dos produtos, pelos operários armados, pelo povo inteiro e armas.[18]
A progressiva estatização dos bens e a onipresença estatal foram elementos básicos na agenda política recente do Brasil, promovida pelo Partido dos Trabalhadores. Que muitos ainda tenham ousado chamar o Partido dos Trabalhadores de “direita”, só pode ser uma piada de mal gosto ou a completa ignorância política. Lênin já deixava claro em sua obra a necessidade de inchar a máquina estatal, exatamente como fez o partido no Brasil. Lênin só não previa ou deixava transparecer a pobreza generalizada e o grande risco que isso ofereceria a um país inteiro.
Contabilidade e controle – eis as principais condições necessárias para o funcionamento regular da primeira fase da sociedade comunista. Todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado, personificado, por sua vez, pelos operários armados. Todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um só “grupo econômico” nacional do Estado.[19]
Sobre a relação dos socialistas petistas brasileiros com tucanos – membros do PSDB –, é impossível não tecer uma analogia com a relação de amor e ódio entre radicais e moderados, mencheviques e bolcheviques, e até mesmo entre as incontáveis facções do movimento revolucionário. A tolerância com os membros mais radicais e a crítica contra aqueles que são moderados sempre foi vocação do movimento revolucionário, assim como a vontade dos moderados em serem vistos como puros de esquerda também sempre esteve presente. O resultado muitas vezes termina em banhos de sangue ou traições, mas esta é a natureza do mal: consumir a si mesmo até sua destruição. Lênin tece duras críticas aos demais revolucionários, que ousam vender sua ideologia à concepções burguesas como a vontade da maioria. O caminho do sucessor de Marx sempre foi a tomada violenta por uma elite revolucionária.
Kautsky passa do marxismo para os oportunistas, pois nele desaparece por completo justamente essa destruição da máquina de Estado, de todo inaceitável para os oportunistas, e deixa-lhes uma saída no sentido de interpretar a “conquista” como uma simples obtenção da maioria.[20]
Um verdadeiro revolucionário pode até atuar sob a democracia, mas a violência escatológica e imanente está lá. O sentimento de santidade pessoal, imaculada até mesmo pelos mais atrozes atos, permanece ainda hoje no imaginário dos tardios descendentes do marxismo e de seus ramos. Esses atos podem consistir de roubos bilionários que comprometem toda a qualidade de vida da massa populacional, facadas na barriga de concorrentes políticos – como a que aconteceu no 6 de setembro da Rua Halfeld, em Juiz de Fora, quando um radical de esquerda quase matou o presidente posteriormente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro – ou a emissão das mais descaradas mentiras em prol do projeto político.
Que os leitores atuais não se enganem. Lênin é um dos maiores estrategistas do movimento revolucionário mundial, ao lado de seu camarada Stálin. Sua obra é uma obra de alguém cruel, talvez até mesmo de um psicopata, mas não há como negar uma visão astuta de como agir em prol de sua utopia tirânica. Em especial, o seu livro que aqui é apresentado em alguns trechos, aborda uma questão bem contemporânea: como a elite socialista lida com o Estado, e por que não se espera tão cedo uma união efetiva entre socialistas e liberais.
Quanto ao estilo, Lênin possui uma escrita envolvente e empolgante, realmente capaz de impressionar, enganar e seduzir os mais tolos. Que tantos jovens que buscam a paz, como meta e como meio de ação, sintam-se inspirados por um monstro homicida como Lênin, ainda é assustador. Que tantos elementos famosos da sociedade brasileira e da Academia internacional comemorem a Revolução Russa, só pode ser um escárnio profundo contra as milhões de vítimas do sistema comunista de Marx, Engels, Lênin, Stálin e Mao. Que a leitura dos originais possa nos despertar do profundo sono em que nos encontramos para a dura realidade que encaramos dia após dia quando o assunto é elite política e ideologia.
Hélio Angotti Neto
10 de dezembro, Colatina - ES
[1]LÊNIN, Vladímir Ilitch. O Estado e a Revolução. São Paulo, SP: Boitempo, 2017, p. 195-196.
[2]VOLKOGONOV, Dmitri. Os Sete Chefes do Império Soviético. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
[3]LÊNIN, op. cit., p. 43-44.
[7]JOUVENEL, Bertrand de. Do Poder. História Natural de Seu Crescimento. São Paulo: Editora Peixoto Neto, 2010.
[10]ROTHBARD, Murray. Esquerda & Direita. Perspectivas para a Liberdade. Campinas: Vide Editorial, 2016.
[13]VOEGELIN, Eric. Modernity Without Restraint. The Political Religions, The New Science of Politics, and Science, Politics and Gnosticism. Columba: Missouri University Press, 2000.