Seria muito melhor se esse novo Coronavírus jamais tivesse existido, com certeza. Mas da complexidade da realidade, muitas coisas se apreendem de cada situação. Lições de vida são algumas delas, proporcionadas por momentos alegres ou, no caso de uma epidemia como a atual, tensos, mas reveladores.
Nesses momentos de grande tensão, medo e dificuldade, algo de menos controlado e mais instintivo parece vir à tona em todos nós. Pela resposta das pessoas nessas horas, podemos conhecer bem mais a respeito delas ou de nós mesmos. A resposta individual à epidemia do novo coronavírus não seria um caso diferente. Alguns podem dizer que a reação política e social está exagerada ou até mesmo histérica, outros diriam que estão subestimando o problema, mas a resposta individual dada à presente situação é algo bem concreto e imediatamente verificável.
Há aqueles que reagem com calma e coragem, e fazem o possível para ajudar. No caso de profissionais da saúde, surgiram muitos pedidos, vindos de diversas partes do país, de estudantes da saúde e profissionais – alguns até acima de 70 anos de idade – para que pudessem ajudar de alguma forma, qualquer forma. São pessoas que se sentiram profundamente incomodadas pela situação e sabem que podem ajudar, que podem ser úteis. Essa é a essência da nobreza da qual tanto falou José Ortega y Gasset, o oposto da mediocridade característica do que o filósofo espanhol chamava de homem-massa.
Para Ortega, o homem-massa é justamente aquele que odeia qualquer um que ouse se levantar acima dos demais, qualquer um que ouse demonstrar valor e caráter. O homem-massa é o “senhorzinho que só busca a própria satisfação” e torna-se insensível ao próximo e aos mais altos ideais de dever e responsabilidade que formam a história de um povo.
Em contextos como o que vivemos, todos têm sua colaboração de dever, responsabilidade e honra a oferecer. Seja ficando em casa, com paciência, mesmo que sem sintomas, sabendo que pode transmitir a doença a alguém mais frágil, seja trabalhando como profissional da saúde, no front dessa guerra silenciosa.
Na esfera política e social, que muito influencia a saúde, surgiram também ofertas de ajuda mesmo de alguns que nunca se mostraram lá muito amistosos em relação ao atual governo. Compreendem que somos pessoas e tratamos de pessoas. O melhor em cada um que veio à tona foi capaz de superar desavenças em tempos diferentes.
Mas nem tudo são rosas.
Há outras formas de resposta que de regra surgem nessas horas e que mostram um contraste tão evidente como o da noite em relação ao dia.
Há quem se aproveite da situação de tensão para capitalizar tudo em termos políticos, para aproveitar a tensão e alimentar o caos com objetivo de desestruturar o próximo, de plantar a discórdia para semear o ódio e o medo. Há quem tente lucrar durante a crise não por meio da coragem e da criatividade, mas da mesquinhez e do oportunismo político, para tentar ganhar na crise o que não ganhara em tempos mais tranquilos, por exemplo.
Pode ser que tais elementos o façam por não acreditar em algo chamado Justiça, ou que justiça para eles seja ajudar os amigos e detonar os “inimigos”, como afirmara Polemarco diante de Sócrates no antigo diálogo filosófico A República.
Por fim, há aqueles que, chamados a agir com calma e a ajudar o próximo, temem desesperadamente o risco. Profissionais de saúde e estudantes que, mesmo munidos de equipamentos de segurança e fora dos grupos de risco de maior de letalidade da doença, se apavoram e declaram que não irão à frente assistencial.
Tal medo é compreensível. Aliás, só é corajoso aquele que venceu o próprio medo, como tantos discursaram de forma correta ao longo da história.
Mas é preciso salientar algumas perspectivas básicas no presente cenário quando tantos falam em questões como heroísmo, segurança e profissionalismo.
Uns falam de heroísmo, outros dizem que o discurso que profissional da saúde precisa ser herói é uma desculpa para exigir condições inadequadas de trabalho e para que profissionais se exponham ao risco de forma despreparada e se submetam a condições ruins e desnecessárias de trabalho.
Estupidez é uma coisa, heroísmo é outra. E ser prudente não é ser covarde. Heróis podem e devem ser prudentes, mas são heróis pelos valores encarnados e pelo sacrifício realizado em prol do próximo.
Médicos que não se enxergam como heróis ou sacerdotes não são profissionais na concepção mais tradicional da palavra. Somente por almejar ser herói ou santo é que o médico foi respeitado desde os tempos hipocráticos, utilizando o mandato social recebido para agir além do mínimo que se exigiria para qualquer um. Quando nos afastamos disso, caímos na perigosa e morna mediocridade.
Mesmo fora dos tempos de epidemia, muitos profissionais da saúde seguem dando exemplos de como ser herói sob diversos aspectos.
Um médico cirurgião não pode negar cirurgia a um paciente com hepatite C ou soropositivo pra HIV, por exemplo. Ele sabe que assume um risco quando entra em campo operatório. Mas para isso ele será treinado e receberá os devidos meios para agir com a máxima redução do risco.
Há risco e necessidade de certo heroísmo cada vez que um médico intensivista ou infectologista e toda a equipe de saúde composta por fisioterapeutas, enfermeiros e nutricionistas entram em uma área de isolamento na unidade de terapia intensiva, pois mesmo fora de epidemias, há doenças altamente contagiosas e muito perigosas a serem combatidas.
Quantos médicos, enfermeiros e diversos outros profissionais da saúde rotineiramente fazem muito mais do que entregar um serviço? Há exemplos do que chamaríamos de ação supererrogatória por todos os lados. Palavra utilizada no campo dos estudos éticos que denota justamente fazer mais do que o mínimo necessário, fazer algo de valor que supera a obrigação
Almejar cumprir o antigo Juramento de Hipócrates, que preconiza respeitar a vida e de guardar a si mesmo e a Arte Médica com pureza e santidade pode parecer anacrônico para alguns. Eu, por outro lado, diria que tais valores representados entre profissionais da saúde há milênios são atemporais e jamais desvanecerão enquanto durarem os sentimentos profissionais de beneficência e excelência.
Há quem diga que heróis ou santos são reflexos de uma sociedade doentia, que caso estivesse saudável jamais necessitaria dos mesmos. O fato é que todos somos fracos, doentes e limitados por natureza e em diferentes graus, e que somente naqueles momentos em que nos elevamos um pouco acima de nossas mais cotidianas misérias é que vislumbramos algo superior a nós mesmos, algo pelo qual valha a pena fazer algum tipo de sacrifício. São esses momentos e a resposta que lhes é dada que direcionam a história de um povo, e que podem ser capazes de realmente formar uma história digna de ser legada à próxima geração e definir de fato o que é o Brasil.
Hoje temos um povo que ousou sair da mediocridade, ousou mudar de rumo. Pessoas falam novamente de heroísmo, valores, família, sacrifício e honra. Palavras consideradas fora de moda ou inúteis para alguns e que há relativamente pouco tempo eram politicamente incorretas. No entanto, são símbolos das coisas que realmente refletem o bem que nos transcende, e que sem dúvida merecerão ser recordadas nos livros de história para nossos filhos.
Que Deus ajude nosso país a ter cada vez mais pessoas que realmente desejam tornar-se heroicas e tomar para si a corajosa missão de fazer algo além do mínimo necessário. Pessoas que, na crise, ao invés do oportunismo egoísta ou da indiferença, estendam a mão para oferecer auxílio.
Hélio Angotti Neto
24 de março de 2020, Brasília - DF.