sábado, 9 de janeiro de 2021

O Médico na Gestão

Muitas vezes me perguntam se cabe ao médico atuar na gestão privada ou pública. Recentemente fui convidado a pronunciar-me sobre essa possibilidade em um congresso da Associação dos Estudantes de Medicina do Espírito Santo e considerei pertinente escrever algo sobre isso que complementasse minha participação no evento.



Em minha época de graduando e residente, normalmente não víamos os gestores com bons olhos. Há um preconceito básico contra os médicos que se “desviam” do caminho da medicina para realizar atividades ligadas à gestão. Hoje, ocupando um cargo de Secretário Nacional no Ministério da Saúde, depois de passar pela residência na Universidade de São Paulo, onde também passei pelo Doutorado, e depois de atuar como médico na assistência tanto no âmbito público quanto no privado e como Coordenador de Curso de Medicina (o que já é um cargo de gestão em educação), posso dizer que adquiri uma visão um pouco mais madura a respeito dessa questão. Não há como negar que a dedicação de duas décadas aos estudos das Humanidades Médicas também foi crucial para a formulação de uma visão mais complexa.

O primeiro aspecto a ressaltar é que o médico tem um compromisso ético de agir como tal em qualquer âmbito no qual os conhecimentos médicos sejam utilizados. O que inclui sua atuação na assistência, na docência, na pesquisa ou na gestão. E, desde a antiguidade, o médico tem sim o papel de atuar na esfera pública, cuidando da saúde no âmbito político, sendo ouvido por autoridades responsáveis pelas grandes decisões ou tomando também parte nas grandes decisões.

Um exemplo histórico, retirado da obra de Platão, é a constatação de que atenienses se reuniam para deliberar sobre questões de saúde pública e recorriam à sabedoria profissional dos médicos.

ΣΩ. λλ᾿ ἐάν τε πνης ἐάν τε πλοσιος   παραινν, οδν διοσει θηναοις, ταν περ τν ν τ πλει βουλεωνται, πς ν γιανοιεν, λλ ζητοσιν ατρν εναι τν σμβουλον.

soc. Se seu mentor é rico ou pobre nenhuma diferença faz para os atenienses quando deliberam acerca da saúde dos cidadãos. Tudo o que eles exigem de seu conselheiro é que ele seja um médico.[1]

O médico permanece atrelado às exigências profissionais mesmo quando atua publicamente e isso não é, portanto, nenhuma novidade.

Aliás, o fato de ser um doutor – ou um douto, em linguagem mais antiga – por acumular uma grande amplitude de conhecimentos, dá ao médico grande autoridade frente ao público, e com essa autoridade, uma enorme responsabilidade.

Tal responsabilidade não deve ser negligenciada, e o médico precisa buscar o conhecimento e a técnica adequada para lidar com as grandes questões que afetam sua comunidade e sua civilização. Daí a importância da Filosofia e das Humanidades Médicas, que incluem as Artes Liberais: Gramática, Retórica e Lógica. 

Nas palavras de Sir Roger Scruton:

(...) as pessoas vão obter educação somente se elas a desejarem por seu próprio fim, mas conseguirão bem mais do que isso. Elas vão adquirir a habilidade de se comunicar, de persuadir, de atrair e de dominar. 

Em qualquer arranjo social, tais capacidades serão vantagens, mas a educação nunca pode ser buscada somente como meio para elas, mesmo se são sua consequência natural.[2]

Essa detenção de conhecimentos, técnicas, moral profissional e elevada capacidade de impacto social facilitam o caminho para postos de liderança. Negligenciada essa vocação de liderança e essa responsabilidade, o que se segue é a possibilidade de ser utilizado como massa de manobra para interesses diversos que não aqueles ligados à saúde ou ao estatuto moral da profissão.

Um médico que negligencia esse chamado à responsabilidade da vida pública e que se recusa a adquirir o preparo humanístico adequado é como um daqueles prisioneiros acorrentados no fundo da caverna descrita por Platão em seu Livro VII de A República. Só que no caso do médico que não imergiu nos estudos humanísticos, o prisioneiro continua sentado e virado para o fundo da caverna, mesmo que alguém se ofereça para lhe soltar as correntes. 

A pior escravidão é, de fato, aquela que surge pela falta de desejo da liberdade ou do apego doentio a uma condição sub-humana.

E o contexto recente da medicina no Brasil desvela claramente as consequências trágicas do abandono do legado cultural e moral de grande parte da classe profissional. Há uma perda difusa de credibilidade, perda da união profissional, várias tentativas de rotulação odiosa por parte de certas autoridades, desvalorização do trabalho médico, perda de liderança em postos de atendimento ou gestão, ausência de formação humanística de qualidade nas escolas e ausência de formação política adequada.

Diante desse cenário preocupante, o que se deve fazer?

Confio pouco em soluções maravilhosas, panaceias que resolverão o problema de todos, e duvido que impor um currículo básico seja suficiente. Aliás, no ambiente altamente ideologizado e medíocre em termos culturais cultivado por alguns que almejam ensinar Humanidades Médicas – ou fazer proselitismo político barato, em grande parte dos casos –, ouso afirmar que certas iniciativas serão até mesmo deletérias, servindo apenas para treinar militância acéfala ou causar ojeriza pelos estudos das humanidades. 

Contudo, um caminho mais ou menos seguro é estudar de forma interessada e autônoma a ciência política, a estratégia e as humanidades em geral, absorvendo o legado cultural milenar de nossa civilização, isto é, buscando o que muito apropriadamente é chamado de Alta Cultura. Com base nesse estudo sério e profundo, pode-se traçar planos de ação no âmbito da política e da gestão, compreendendo como a gestão pública e a gestão privada impactam a vida em sociedade como um todo. E todo esse estudo de nada valerá se não ocorrer um esforço contínuo de aprimoramento do caráter. Somente assim um profissional médico estará apto realmente a ocupar um cargo público: sendo uma boa pessoa e um bom médico.

Se o conhecimento é consolidado na solidão e no silêncio, o caráter, por outro lado, é forjado no calor da batalha. Não é à toa que se aprende tanto no internato e na residência médica, quando se está imerso na dura e crua realidade assistencial.

O médico tem uma oportunidade preciosíssima de se tornar um bom gestor, pois vivencia realidades múltiplas que lhe dão acesso a experiências cruciais na formação humanística e profissional. Desde a assistência em unidades básicas de saúde em bairros e em alas hospitalares até estar presente na formulação de grandes políticas de saúde pública, o médico tem a oportunidade de adquirir uma perspectiva realmente ampla sem se esquecer do cotidiano e do específico.

Resumindo o que chamo de ciclo virtuoso da ação pública, o que se tem é a aquisição ampliada de conhecimento e experiência de vida que leva ao aumento da responsabilidade. O aumento da responsabilidade, quando assumido com nobreza, gera a confiança em meio à sociedade. Essa confiança gera autoridade e deferência por parte do público. A autoridade inevitavelmente gera maior impacto social por parte do profissional, que adquire grande capacidade de influenciar os rumos da sociedade. E, por fim, esse impacto gera maior necessidade de conhecimento para qualificar os próprios atos e decisões, o que reinicia o ciclo de aumento de responsabilidade.

E o que seria esse estudo das humanidades capaz de ajudar na construção de um bom gestor médico? Como realizar esse estudo, indo além dos conteúdos específicos de administração? Essa é a proposta do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina, abordada em outros escritos diversos.[3]

Utilizado de forma adequada, o papel de gestor pode salvar incontáveis vidas, auxiliar nas necessidades de famílias e de todo um país e promover constante aperfeiçoamento da profissão na busca pela excelência. Eis um dos mais complexos papéis que o profissional médico pode almejar e também um daqueles de maior impacto na sociedade. 

O reconhecimento dessa possível missão deve ser devidamente tratado desde a graduação para que se evite uma geração de profissionais destituídos das competências da liderança e da nobre vocação de atuar com o bem público e individual em mente.

 

Hélio Angotti Neto

Brasília, 09 de janeiro de 2021.

 



[1] PLATO. Charmides. Alcibiades I and II. Hipparchus. The Lovers. Theages. Minos. Epinomis. Loeb Classical Library 201. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1927, p. 110-11.

[2] SCRUTON, Sir Roger. O que é Conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015.

[3] ANGOTTI NETO, Hélio. A Tradição da Medicina. Brasília: Academia Monergista, 2012; ANGOTTI NETO, Hélio. Bioética: Vida, Valor e Verdade. Brasília: Editora Monergismo, 2019.