Há livros que nos abrem os olhos para a dura realidade. Um desses livros, sem dúvida nenhuma, pertence a Peter Gøtzsche, médico pesquisador e ex-diretor de um dos centros da Cochrane, uma organização que se dedica a analisar de forma crítica as evidências científicas que movem o mundo da medicina.
O livro se chama “Medicamentos Mortais e Crime Organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica” e é de leitura obrigatória.
Em palavras diretas, sinceras e, às vezes, irônicas – pois como não utilizar um pouco de ironia diante de uma realidade tão amarga como aquela produzida pela gigantesca e trilionária indústria farmacêutica –, o autor expõe fatos de extrema gravidade e, obviamente, de quase total desconhecimento do público e até mesmo de médicos, eu diria.
Nem todos entendem que aquilo que para uns é uma busca pela sobrevivência e pela saúde, para outros nada mais é do que um lucrativo mercado a ser explorado, não importa a que custo moral.
Gøtzsche alerta, logo no início da obra:
Quando pesquisas importantes demonstram que um produto é perigoso, diversos estudos abaixo do padrão são produzidos dizendo o contrário, o que confunde o público pois – como jornalistas dirão a você – “os pesquisadores discordam.” Essa indústria da dúvida é muito eficaz ao distrair as pessoas para ignorarem os danos; a indústria ganha tempo enquanto as pessoas continuam a morrer.[1]
Vidas nada mais são do que empecilhos no caminho do lucro exorbitante dessa indústria, que superou em muito a margem de lucro existente no mercado de forma geral.[2] Pessoas, incluindo médicos, burocratas e técnicos de agências reguladoras, jornalistas, políticos e até mesmo cidadãos em associações de pacientes portadores de determinadas doenças, são comprados sistematicamente, com o intuito de mover esse mercado extremamente poderoso.
De forma muito dura, Gøtzsche sentencia que “a principal razão pela qual ingerimos tantos medicamentos é que as empresas farmacêuticas não vendem medicamentos: elas vendem mentiras sobre medicamentos.”[3]
Durante a pandemia, não foi diferente, eu diria. Foi até mesmo pior, pois o medo abriu brechas perigosíssimas e suplantou a racionalidade e a moral de incontáveis pessoas no mundo inteiro, e a mercantilização da medicina, inevitavelmente ligada à despersonalização e perda da dignidade humana, avançou a largos passos.
Medicamentos caros foram empurrados de todas as formas possíveis, enquanto medicamentos baratos que poderiam ter sido reposicionados e melhor pesquisados foram combatidos com uma fúria assanhada que eu jamais presenciara.
Gøtzsche teve a coragem de “abrir o bico” e falar o que muitos queriam que jamais fosse falado e outros não gostariam nunca de ter ouvido, pois junto com a denúncia gravíssima dos fatos, que falam por si mesmos, imediatamente vem à consciência a acusação grave contra aqueles que abriram mão de seu caráter e de sua personalidade para se tornarem objetos imorais de uma máquina de corrupção, morte e engano. Como todo aquele que ousa falar de moral com moralidade, Gøtzsche ameaça, desagrada e se expõe ao opróbio dos medíocres e vendidos.
Contudo, cabe a nós reconhecer uma antiga verdade, já enunciada por Goethe: “O talento molda-se na solidão; o caráter na convivência.” Se é na leitura e na Academia que forjamos o nosso saber, é no ringue da realidade, lidando com ameaças reais e com a perseguição promovida pelos mercadores da morte, que forjaremos nossa personalidade e mostraremos ao mundo e, principalmente, a nós mesmos e a Deus, a que viemos.
Ler os fatos horrorosos descritos por Gøtzsche, compreendê-los e voltar a olhar a realidade da saúde, da pesquisa e da medicina após esse mergulho nas trevas, é tarefa para os mais corajosos.
[1] Peter C. Gøtzsche. Medicamentos Mortais e Crime Organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Porto Alegre: Bookman, 2016, p. 2.
[2] Angell M. The Truth about the Drug Companies: how they deceive us and what to do about it. New York: Random House, 2004.
[3] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., 2016, p. 2.