sábado, 27 de setembro de 2014

Bioética e guerra cultural II: assassinando legados culturais

Originalmente publicado no Mídia sem Máscara em 04 de junho de 2014.


Uma das formas mais discutidas, porém nem sempre percebidas, de se alterar os valores de uma sociedade é, sem dúvida nenhuma, a manipulação histórica e cultural.
Exemplos literários não saem de nossa cabeça. Quem não se lembra da distopia de Orwell, 1984? O Ministério da Verdade era aquele que cuidava justamente da reescrita da história, num paralelo interessante com as atuais comissões de busca ideológica da verdade.
Uma das absurdidades de nossos dias de analfabetismo funcional é a proposta de vulgarizar Machado de Assis, na qual uma estudiosa irá assassinar Machado, na prática, com dinheiro público, já que conseguiu apoio da Lei Rouanet, do Ministério da Cultura.[1] Ao invés de elevar a capacidade compreensiva e expressiva de nossas crianças e jovens, o que se propõe é destruir o legado de Machado de Assis sob a desculpa de torná-lo acessível. Por fim, o que se alcança é a acessibilidade de um texto reinventado por outra pessoa.
Além de tornar idéias complexas e sutis em realidades distantes, quase alienígenas, idéias estas anteriormente comunicadas por meio do esforço árduo dos grandes escritores, essa vulgarização acabará por alterar o próprio significado do que Machado desejou transmitir. É, literalmente, a destruição da nossa agonizante cultura, daquele resto que nos alcançou depois de décadas de massacre e mediocrização intelectual.
Mas neste caso, há um precedente importantíssimo na medicina. Hipócrates, um antepassado muito mais distante, já sofreu nas mãos desses reinventores da cultura. A comparação entre o texto original e o que hoje em dia se oferece em códigos de ética pelos próprios conselhos de classe falará por si mesma:
Juramento de Hipócrates Original
Juro por Apolo médico, Asclépio, Hígia, Panacéia (3) e todos os deuses e deusas,fazendo-os testemunhas de que conforme minha capacidade e discernimento cumprireieste juramento e compromisso escrito:
Considerar aquele que me ensinou esta arte igual a meus pais, compartilhar com elemeus recursos e se necessário prover o que lhe faltar; considerar seus filhos meus irmãos, e aos do sexo masculino ensinarei esta arte, se desejarem aprendê-la, sem remuneraçãoou compromisso escrito; compartilhar os preceitos, ensinamentos e todas as demais instruções com os meus filhos, os filhos daquele que me ensinou, os discípulosque assumiram compromisso por escrito e prestaram juramento conforme a leimédica, e com ninguém mais;utilizarei a dieta para benefício dos que sofrem, conforme minha capacidade e discernimento,e além disso evitarei o mal e a injustiça;não darei a quem pedir nenhuma droga mortal e nem darei esse tipo de instrução; domesmo modo, não darei a mulher alguma pessário para abortar; com pureza e santidade conservarei minha vida e minha arte;não operarei ninguém que tenha a doença da pedra, e cederei o lugar aos homensque fazem isso;em quantas casas eu entrar, entrarei para benefício dos que sofrem, evitando todainjustiça voluntária ou outra forma de corrupção, e também atos libidinosos no corpode mulheres e homens, livres ou escravos;o que vir e ouvir durante o tratamento sobre a vida dos homens, sem relação com otratamento e que não for necessário divulgar, calarei, considerando tais coisas segredo.
Se cumprir e não violar este juramento, que eu possa desfrutar minha vida e minhaarte afamado junto a todos os homens, para sempre; mas se eu o transgredir e nãocumprir, o contrário dessas coisas aconteça.[2]


Juramento de Hipócrates amputado
Prometo que ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência.
Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, os quais terei como preceito de honra.
Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes e favorecer o crime.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu, para sempre, a minha vida e a minha arte de boa reputação entre os homens.
Se o infringir ou dele me afastar, suceda-me o contrario.[3]


O médico deixou de ser um herói ou santo, eterno buscador da excelência e da virtude, deixou de ser um professo, um vocacionado, e tornou-se um honrado burguês preocupado com sua reputação entre os homens. E, de forma bem escancarada, simplesmente não se menciona o valor da vida ao proibir a eutanásia, o suicídio assistido e o abortamento voluntário.
E o que veio depois ainda foi mais chocante: o Conselho Federal de Medicina tentou emplacar uma resolução para liberação do abortamento até a 12ª semana!
Numa brincadeira boba com as palavras, o documento justifica-se da seguinte forma: 


É importante frisar que não se decidiu serem os Conselhos de Medicina favoráveis ao aborto, mas, sim, à autonomia da mulher e do médico. É como falar que cebola não faz com que ardam nossos olhos, ela tempera a comida simplesmente! O documento declara, com todas as palavras, que seria feito o abortamento por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação.[4]
Felizmente nem todos os conselhos concordaram.[5]
Isso tudo num país majoritariamente contra o aborto e que adota a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) como Norma Constitucional! No pacto está descrito quepessoa é todo ser humano, e que toda vida do ser humano deve ser protegida desde sua concepção.[6]
Mas voltemos ao Juramento.
É óbvio que o mesmo, assim como a obra de Machado de Assis, deve ser interpretado após o estudo adequado. Leitores incultos – e, às vezes, mal intencionados - enxergam no Juramento o machismo grego como se fosse machismo médico, ou o respeito aos mestres como corporativismo, obviamente uma deturpação inaceitável para alguém que domine o mínimo de metodologia necessária ao ler um documento antigo.
A solução não é destruir o Juramento criando uma versão falsificada e inodora, ou distorcer a interpretação e a correta contextualização do original. Da mesma forma a solução não é destruir Machado de Assis em sua originalidade e genialidade.
A solução também não é proibir a versão original como tentaram fazer com o Monteiro Lobato, enxergando em suas brincadeiras literárias infantis um racismo cruel com a personagem de Tia Anastácia.[7]
A solução, ou a tentativa de evitar a criação de um grande problema, é resgatar a cultura e adquirir os significados e a expressividade de nosso legado. É estudar de forma adequada, respeitosa e prudente. É imperativo saber que essas “pequenas” mudanças culturais podem degenerar em assombrosas mutações civilizacionais.[8]
Destrua a cultura da vida e o legado da medicina hipocrática e cristã, e a sociedade é quem pagará o preço. A medicina no Brasil já sente a decadência cultural, política e moral em suas fileiras, e já é escorraçada e desmoralizada pelo partido governante. Se o médico brasileiro não aprender direito o que é ser médico e qual o valor da alta cultura (a verdadeira e única digna do nome, diga-se de passagem), provavelmente será o pequeno burguês de boas aparências do Juramento de Hipócrates adulterado.[9] Destrua a verdadeira cultura e a memória da medicina, e nossos médicos alcançarão a irrelevância frente à sociedade, tornando-se meros burocratas da saúde.


Notas:

[1] AZEVEDO, Reinaldo. Em vez de uma escola brasileira à altura de Machado, um “Machado” à baixura da escola brasileira. Blog Reinaldo Azevedo. Veja, 2014. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/em-vez-de-uma-escola-brasileira-a-altura-de-machado-um-machado-a-baixura-da-escola-brasileira/>. Acesso em: 03 jun. 2014.
[2] RIBEIRO JR., W.A. Juramento de Hipócrates. Modelo 19, Araraquara, v. 4, n. 9, p. 69-72,1999. Disponível em: <http://warj.med.br/pub/pdf/juramento.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2014.
[3]CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO DISTRITO FEDERAL. Código de Ética do Estudante de Medicina 3ª Edição. Brasília, DF, 2004.
[4] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Circular CFM N° 46/2013. Brasília, DF, 2013. Disponível em: <http://waldircardoso.files.wordpress.com/2013/03/ofc3adcio-circular-cfm-46-2013.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2014.
[5] PEREIRA, Sandra Helena. Posição do Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo (CRM-ES) e do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o abortamento voluntário. Mirabilia (Medicinae), 2013,vol. 1, pp. 7-12.
[6] MINISTÉRIO DAS RELAÇÔES EXTERIORES. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Em vigor no Brasil desde 1992, conforme o Decreto 678, de 06 nov. 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 03 jun. 2014.
[7] MENDES, Priscilla. Mais uma obra de Monteiro Lobato é questionada por suposto racismo. Brasília: G1 Educação. Disponível em: <http://g1.globo.com/educacao/noticia/2012/09/mais-uma-obra-de-monteiro-lobato-e-questionada-por-suposto-racismo.html>. Acesso em: 03 jun. 2014.
[8] Indico as seguintes obras para começar a entender o perigo que uma alteração de idéias pode representar: WEAVER, Richard. Idéias têm Consequências. São Paulo: Vide Editorial, 2012; JONAS, Hans. O Princípio da Responsabilidade. Rio de Janeiro: Editora PUC Rio, 2011.
[9] Para compreender melhor o que é ser médico no contexto histórico e filosófico, e como a benevolência e a busca pela excelência atuam num contexto de amizade com o paciente para estabelecer a Relação Médico-Paciente de forma adequada, sugiro a leitura das obras de Diego Gracia e Edmund Pellegrino. GRACIA-Guillén, Diego. Fundamentos de Bioética. Madrid: Editorial Triacastela, 2011; PELLEGRINO, Edmund. The Philosophy of Medicine Reborn: A Pellegrino Reader. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2011.