sábado, 27 de setembro de 2014

Bioética e guerra cultural III: o escotoma negativo abstrativo

Publicado originalmente no Mídia sem Máscara em 13 de junho de 2014.


Lembro de uma vez na qual Olavo de Carvalho utilizou o termo escotoma para se referir à ausência perceptiva de certo ponto numa questão. Em oftalmologia dizemos que o escotoma é uma mancha no campo visual do paciente, uma ausência localizada de percepção visual. Quando o paciente percebe que a mancha está lá, chama-se o escotoma de positivo; por outro lado, quando a mancha não é percebida pelo paciente, estamos diante do escotoma negativo.
A analogia possível em termos de apreensão da realidade ao se abordar uma questão bioética é interessante, e exemplifica um erro constante em nosso meio. Teríamos um escotoma negativo abstrativo quando recortes da realidade passam ao largo da intelecção ou do raciocínio humano, sendo estes os reféns de determinados aspectos abstratos pré-estabelecidos numa discussão ou na análise de uma situação. É um tipo de armadilha lógica.
Uma busca de limpeza de tais escotomas foi feita no livro “A Morte da Medicina”, a ser lançado pela Vide Editorial em breve (1). Mas um breve exemplo aqui pode ser esclarecedor.
Talvez o escotoma negativo abstrativo mais usado, e abusado, seja aquele utilizado pelo grupo chamado de “pró-escolha”.
Na questão de se liberar ou não o abortamento voluntário, o aspecto ressaltado é o da autonomia materna para decidir livremente acerca de seu corpo, tomado como sua propriedade.(2)
Concentra-se a atenção em determinado aspecto retirado da realidade, recusando-se a perceber, ou dar percepção, a outros aspectos igualmente reais. É uma abstração que leva irremediavelmente ao reducionismo quando se analisa um problema, erro imperdoável na filosofia.
E se removermos o escotoma? O que veremos, ou por onde seremos obrigados a abordar a questão?
Ainda na perspectiva do princípio da autonomia (3), será necessário avaliar a autonomia biológica, ontológica e social do feto, assim como a do médico, capaz de tecer objeção de consciência, por exemplo. Por fim, porque não falar da autonomia paterna, coparticipante na gestação, mesmo que de forma menos direta?
Se tomarmos os princípios da beneficência e da não maleficência, será necessário abordar o problema sob o aspecto dos benefícios e malefícios esperados para todos os envolvidos. Ao abordar a questão do aborto somente da perspectiva da autonomia da mãe, deixa-se de falar quais as consequências físicas e psicológicas do aborto para o organismo materno, incluindo depressão, infertilidade, hemorragia e outras complicações diversas. Também é necessário falar do feto ou do bebê, inevitavelmente o mais prejudicado. E por que não falar do médico e de quais consequências psicológicas e morais ele sofrerá?
Finalmente, ainda dentro dos princípios clássicos da Bioética, teremos que falar da Justiça, e será necessário questionar se o ato de matar fetos e bebês, por definição seres humanos inocentes e indefesos, provocará ou promoverá justiça ou injustiça na sociedade. Quais as consequências civilizacionais e culturais da institucionalização do aborto?
Poderíamos ainda falar de aspectos econômicos, transcendentais, biológicos em larga escala, geopolíticos, emocionais e tantos outros numa lista que é virtualmente ilimitada. O que não se pode fazer é reduzir tudo a uma questão pura e simples de escolha, e esta de uma pessoa somente.
No fim das contas, o escotoma abstrativo não passa de um empobrecimento da apreensão da realidade e da inteligência humana, um artifício antidialético que só pode resultar numa opinião muito mal fundamentada.
Outros exemplos são fáceis de achar, não somente na Bioética, mas em todos os campos de estudo.
A abordagem historicista do Juramento de Hipócrates, as críticas governistas à medicina brasileira, as soluções simplistas e propagandistas às vésperas da eleição... Escolha você mesmo um item da imensa lista de escotomas imbecilizantes para treinar, e limpe seu intelecto dessas manchas num esforço sadio.

Notas:1 - ANGOTTI-NETO, Hélio. A Morte da Medicina. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2014. Disponível em: <http://www.videeditorial.com.br/VIDE-Editorial/A-Morte-da-Medicina/flypage.tpl.html>.
2 - Como pode ser visto em: JURKEWICZ, Regina. A escolha sobre o corpo. Le Monde Diplomatique Brasil, 2010. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=619>. Acesso em: 10 jun. 2014.
3 - Os Princípios da Bioética, conforme a obra clássica “Princípios de Ética Biomédica”, são a beneficência, a não maleficência, a autonomia e a justiça. Cf. BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS James. Princípios da Ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.