Antes de falar das virtudes
médicas, é preciso falar de algumas obviedades que ajudarão a compreender
melhor o que queremos dizer quando falamos de Formação Médica.
A Medicina é uma Comunidade Moral
Terapêutica. O que isso quer dizer?
Todos aqueles que se dizem
médicos defendem um grupo razoavelmente semelhante de valores e princípios,
isto é, a Medicina é eticamente semelhante em diferentes épocas e diferentes
sociedades, pois defende praticamente as mesmas “coisas”.
Alguns defendem que você pode ter
qualquer cosmovisão ou ideologia e ser um bom médico. É preciso deixar bem
claro desde já que isso é mentira ou desinformação.
Um nazista que participou dos
experimentos em campos de concentração, como aqueles observados no assustador
relato sobre os testes de hipotermia de Dachau[1],
jamais poderia afirmar que é um médico. É um monstro pura e simplesmente pelo
simples fato de consentir com uma ideologia monstruosa. Da mesma forma um
psiquiatra comunista da União Soviética que utilizava sua profissão para
realizar controle político e ideológico da população não passava de um monstro
moral.
Logo, não são todas as ideologias
e tendências políticas que são compatíveis com a Medicina. Algumas, inclusive,
são completamente deletérias à Medicina e ao bem do ser humano.
Como fundamentos para a
existência da Medicina, nós podemos listar alguns elementos bem simples e evidentes:
1 – As pessoas morrem e ficam
doentes ou limitadas durante um segmento de suas vidas ou por toda a vida;
2 – Quando fragilizadas, as
pessoas normalmente buscam auxílio;
3 – Alguns se dispõem a auxiliar
quem se encontra fragilizado.
Esses três elementos são reais e
independem da cultura em que se vive. Eles fundamentam ontologicamente a
relação médico-paciente.
Ao redor dessa realidade de
auxílio terapêutico é organizada uma comunidade moral que se ampara em códigos
de ética, leis, princípios e virtudes para exercer a prática médica.
Nosso Código de Ética é aquele
elaborado pelo Conselho Federal de Medicina traduzindo valores importantes para
nossa sociedade no contexto da relação médico-paciente e, inclusive,
médico-médico e médico-sociedade.
Os princípios básicos observados
pela Bioética contemporânea, principalmente em sua vertente principialista,
são: Autonomia, Beneficência, Não-Maleficência e Justiça. Um estudo aprofundado
sobre tais princípios pode ser encontrado naquela que, talvez, seja a mais lida
obra de Bioética do mundo inteiro, escrita por Beauchamp e Childress[2].
E no íntimo dos médicos estão as
virtudes que tornam possíveis a manifestação dos princípios de uma forma
sincera e comprometida com o paciente. Tais virtudes, descritas por Edmund
Pellegrino, são: Fidelidade (confiabilidade), Compaixão, Sabedoria, Justiça,
Fortaleza, Temperança, Integridade e Altruísmo[3]. Pellegrino também acrescenta três virtudes
adicionais presentes no ambiente cristão de nossa civilização que, segundo ele,
potencializam a atitude do médico: Fé, Esperança e Caridade[4].
Por que a Medicina foi uma
profissão em geral tão respeitada no passado, mesmo quando detinha pouca
tecnologia, e agora se encontra tão mal falada, mesmo ao oferecer soluções
tecnológicas que no passado seriam consideradas milagrosas? Creio que parte da
resposta pode ser encontrada na decadência e no desconhecimento da Ética
baseada em virtudes e na negligência em cuidar da formação moral dos novos
médicos.
Cabe, no presente momento, em que
a Medicina no Brasil sofre um pesado ataque de origem política e ideológica,
defender o que realmente vale a pena: o bem do paciente e as virtudes e
princípios que nos ajudarão a promovê-lo, ao lado da técnica e do conhecimento
avançado que alcançamos.
A Medicina possui estatuto
filosófico moral próprio. Não deve ceder nem ao mercantilismo, já proibido pelo
Código de Ética, e nem tornar-se subserviente ao Estado, assumindo o papel de
atravessadora dos cuidados de um aparato burocrático inchado, opressivo e
despersonalizado. A Medicina é uma profissão liberal no sentido em que é
executada por livres praticantes, capazes de renunciar às pressões estatais e às
do mercado em prol daquilo pelo que lutam: o bem do paciente. Pessoas livres
para defenderem seus ideais[5].
Prof.
Dr. Hélio Angotti Neto
Doutorado em Ciências Médicas pela FMUSP
Médico Oftalmologista pelo Conselho
Brasileiro de Oftalmologia
Coordenador do Seminário de Filosofia
Aplicada à Medicina – SEFAM www.medicinaefilosofia.blogspot.com.br
Coordenador do Curso de Medicina do Centro
Universitário do Espírito Santo – UNESC http://www.unesc.br/website/index.php?filtro=Colatina
Diretor Editorial da Mirabilia Medicinae,
revista especializada em Humanidades Médicas http://www.revistamirabilia.com/medicinae
[1] BERGER, Robert L. Nazi Science – The Dachau Hypothermia
Experiments. New England Journal of Medicine, vol. 322, 1990, p. 1435-1440.
[2] BEAUCHAMP, Tom L. &
CHILDRESS, James F. Principles of
Biomedical Ethics, 7ª edição. New York: Oxford University
Press, 2013. No Brasil há um atradução de uma versão antiga do livro, que já
ganhou novos capítulos e argumentações diversas frente às contestações que vem
sofrendo.
[3] PELLEGRINO, Edmund D. &
THOMASMA, David C. The Virtues in Medical Practice. New York: Oxford
University Press, 1993.
[4] PELLEGRINO, Edmund D. &
THOMASMA, David C. The Christian Virtues in Medical Practice. New
York: Oxford University Press, 1996.
[5] Um
excelente texto sobre o risco de abandonarmos nossos ideais foi escrito pelo
Filósofo Olavo de Carvalho e pode ser encontrado em: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/ideais.htm
.