Jean Hamburger, Médico francês e fundador da Nefrologia como especialidade médica.
Uma virtude central em toda
relação humana sem dúvida nenhuma é a confiabilidade[1].
Alain Peyrefitte já apontava o
valor que a confiança tem no caminhar de uma sociedade e qual o seu papel no
desenvolvimento: sem confiança não há ambiente para nenhum tipo de progresso,
somente há o caos[2].
Das relações de confiança que
perduram nas diferentes sociedades, uma das mais emblemáticas e complexas,
porém essencial, é a Relação Médico-Paciente. E parte dessa relação de
confiança é a crença na disposição alheia em contar a verdade.
O paciente busca o médico
confiando que, geralmente:
- O médico o informará se o
problema de saúde estiver acima de sua capacidade de resolução ou auxílio;
- O médico informará tudo o
que é importante saber acerca da condição de saúde;
- O médico informará as
melhores opções possíveis ao paciente, explicando cada uma e aconselhando se
preciso for;
- O médico não esconderá
informações intencionalmente ou, se o fizer considerando o bem do paciente, o
fará apenas de forma temporária.
Essa confiabilidade repousa
sobre outras características também essenciais ao médico.
A principal dessas características
é o espírito de benevolência junto com seu complemento indispensável: a não
maleficência. O médico porta-se de forma confiável sabendo que isso se traduz
num bem para seu paciente, e este bem envolve a comunicação da verdade e a
atuação sincera como elementos para a manutenção da integridade do paciente,
considerando acima de tudo a integridade como um elemento beneficente, e a
autonomia do paciente como um dos componentes da sua integridade.
Outra característica é o
autoconhecimento do médico, que deve verificar em sua consciência o que sabe, o
quanto sabe e com que fim sabe algo. Sem a noção adequada do próprio
conhecimento o médico age de forma imprudente (o contrário da grande virtude
médica: a prudência ou phronesis).
O médico utiliza a
confiabilidade em diversas situações. Comento acerca de duas situações.
Hoje em dia se fala muito
acerca do Testamento Vital, no qual o paciente deixa um relato de como quer ser
tratado próximo à sua morte. Cabe ao médico assistente fazer cumprir a vontade
de seu paciente mesmo na ausência de sua consciência por motivo de agravo à
saúde. O médico que recebeu a honrosa posição de protetor da vontade de seu
paciente deve zelar com honra, veracidade e extrema confiabilidade no momento
mais frágil da existência humana.
Uma situação mais comum na
realidade do médico brasileiro é o momento de comunicar más notícias, como o
diagnóstico de um câncer intratável ou a baixa expectativa de sobrevida num
paciente grave internado na Unidade de Tratamento Intensivo.
Alguns defendem que o médico
pode ocultar o diagnóstico ou o prognóstico para oferecer momentos mais
proveitosos ao paciente, para que se desfrute do resto da vida sem o peso da consciência
da morte. Tal postura de ocultação da verdade, porém, é uma armadilha.
Negar a realidade ao paciente
autônomo é negar-lhe o conhecimento necessário acerca de sua vida para que ele programe
de forma adequada suas prioridades. Se o diagnóstico e a informação do
prognóstico demorarem muito, tempo precioso pode ser perdido, e danos
irreversíveis podem ser acrescidos à situação já dramática do paciente.
Com isso não quero dizer que a
informação deve ser dada de qualquer forma e imediatamente. Daí a necessidade
de treinar os jovens médicos na arte de comunicar más notícias.
Jean Hamburger já avisava que
certas palavras não devem ser utilizadas, e que um resquício de esperança, por
menor que seja, nunca deve ser extirpado. Tais medidas temperam a
confiabilidade do médico com tratos humanísticos e empáticos ao sofrimento do
paciente[3].
Algumas dicas preciosas do
nefrologista Jean Hamburger:
1 – O ponto primordial é a
formação da relação com o paciente;
2 – Não basta se apoiar
somente no instinto e no amor ao próximo (há formas adequadas de executar ações
em saúde);
3 – Entender reações
psicológicas do paciente;
4 – Utilizar auxílio,
informação e conforto como instrumentos terapêuticos;
5 – Não utilizar palavras com
forte conteúdo emotivo negativo como: morte, lepra, câncer, coma ou autópsia
(ou fazê-lo de forma gradual e empática);
6 – Explicar tudo ao paciente
e jamais, jamais mentir;
7 – A explicação de cada ato
praticado reduz o desconforto e a dor;
8 – Jamais anunciar uma doença
como absolutamente incurável ou intratável; permitir um mínimo de esperança.
O último conselho poderia ser
questionado, mas o fato real é que inúmeras pesquisas acontecem todos os dias
buscando soluções e alívio para doenças ainda incuráveis ou intratáveis, e a
esperança de alguma novidade sempre existe.
Até mesmo as situações mais
corriqueiras do cotidiano médico exigem confiabilidade.
Ao solicitar exames para
diagnosticar determinada condição de saúde do paciente, o médico precisa ser
claro e veraz em suas suspeitas, e informar ao paciente sobre as repercussões
do diagnóstico. Ao realizar o diagnóstico, o médico precisa informar ao
paciente o prognóstico de acordo com as diferentes formas de tratamento
adotadas.
O paciente precisa acreditar
que o médico é confiável e benevolente, ou jamais confiará no plano terapêutico
prescrito. E é preciso lembrar que o médico é buscado em uma situação extrema,
na qual o paciente se encontra frágil, assustado e disposto a entregar, muitas
vezes, grande parcela de sua autonomia em mãos de outrem, em quem deposita
grandes esperanças.
Cabe ao médico avaliar de
forma verdadeira a esperança nele depositada e agir de acordo.
Interesses discretos ou
ocultos não cabem numa Relação Médico-Paciente saudável. O médico precisa ser
bem claro e confiável até mesmo em relações entre profissionais, como apresentações
acadêmicas nos congressos, informando possíveis interações com laboratórios e
verbas recebidas de fontes privadas ou públicas. A confiabilidade também é
crucial nas passagens de plantão, nas quais a informação transmitida poderá
auxiliar a salvar vidas e ganhar tempo.
Sem confiabilidade, a Medicina
gerará somente desconfiança e hostilidade. Não está em jogo somente o nome do
médico, mas toda a confiabilidade da sociedade na Medicina e a percepção dessa
antiga profissão como empreendimento honrado.
[1] PELLEGRINO, Edmund D.; THOMASMA,
David C. The Virtues in Medical Practice. New York, NY: Oxford University
Press, 1993, p. 65-78.
[2] PEYREFITTE, Alain. La societe de
confiance: Essai sur les origines et la nature du developpement. France:
Editions O. Jacob, 1995.
[3] HAMBURGER, Jean. Conseils aux étudiants en médicine dans mon
service. Paris: Flammarion; 1963.