terça-feira, 4 de agosto de 2015

Perguntas e Respostas: DA ESSÊNCIA DA MEDICINA



Recebi algumas perguntas interessantes (obrigado ao Cezar Moura) que aprofundam o debate sobre o que é a Medicina. Como o assunto toca temas centrais ao entendimento da antiga Arte, creio que vale uma publicação aqui no SEFAM.

1 - Na medicina atual, a falta de estudo sobre placebo seria o medo de ver que muitos dos tratamentos médicos continuam agindo mais pelo efeito placebo?

Não diria que faltam estudos sobre o placebo, pelo contrário. Encontram-se livros e artigos científicos sobre, inclusive, o papel do médico como terapia, isto é, como placebo benéfico. E a ação do placebo é bem conhecida e utilizada com sabedoria por muitos médicos experientes.

Um dos livros que trata especialmente dos efeitos benéficos de uma boa relação médico-paciente foi escrito pelo médico húngaro Michael Balint, intitulado: O Médico, seu Paciente e a Doença. Recomendo a leitura e a reflexão.

Outro trabalho curioso foi publicado por Fabrizio Benedetti, na revista Physiological Reviews, e tem como título: PLACEBO AND THE NEW PHYSIOLOGY OF THE DOCTOR-PATIENT RELATIONSHIP. O artigo é uma interessante revisão que inclui mais de 350 artigos originais!

2 - A medicina atual é uma ciência, ou apenas usa a ciência em benefícios corporativos e financeiros?

A medicina é uma arte que usa a ciência para fins pragmáticos, isto é, para aumentar as chances de cura ou alívio de doenças ou padecimentos do ser humano. Pode agir em benefício de interesses corporativistas e financeiros? Sim, desde que idealmente não se afaste do foco principal.

Quem trabalha de graça completamente abstraído do ganho financeiro? Alguma profissão é capaz de se sustentar sem ganhar nada? A única crítica que cabe em relação ao elemento financeiro seria a perversão da hierarquia de valores, esta sim, um vício.

Em relação ao corporativismo, há trabalhos que discutem o mesmo como ferramenta de controle da credibilidade e da qualidade profissional. Quando bem utilizado, pode servir como auxílio no efeito placebo que beneficia o paciente inclusive. Desde Hipócrates já se reconhecia que um médico de boa fama e comportamento auxiliar na cura de seu paciente.

3 - Mas qual trabalho científico, nos moldes atuais, não envolve efeito placebo?

De fato, é impossível escapar totalmente do efeito placebo, embora se tenham mecanismos de redução do mesmo, desenvolvidos principalmente nos estudos do tipo Ensaio Clínico.

Sem dúvida nenhuma, um dos elementos da ascensão da medicina moderna foi o desenvolvimento do experimento clínico por Austin Bradford Hill, como James Le Fanu lembra em sua obra The Rise and Fall of Modern Medicine. Tal desenho de estudo minimizou o aspecto subjetivo da pesquisa médica.

4 - Mas tu sabes o quanto o afastar por completo o efeito placebo é impossível, pois a simples interação entre 2 humanos já está gerando o efeito placebo, enfim, se não podemos afastar por completo, como podemos saber qual percentual de efeito placebo aconteceu?

Não podemos, mas podemos saber se há diferença estatística entre tratamentos que incluam doses semelhantes de placebo, desde que o estudo seja duplo-cego, mascarado e controlado, por exemplo.

5 - Como considerar a medicina atual não reducionista, no momento em que atua por especialidades?

Como quase tudo o que se faz hoje em dia, guarda-se importante aspecto reducionista. Mas toda ação, por mais reducionista que seja, ocorre num ambiente real, isto é, extremamente rico e complexo. O que cabe não é evitar a especialização, mas sim, buscar a especialização de qualidade sem abrir mão dos conhecimentos gerais que fundamentaram a especialidade, como o filósofo Mário ferreira dos Santos já alertava.

Hoje temos inúmeros defensores do pensamento complexo e da necessidade de entender a realidade de forma adequada, incluindo Xavier Zubiri, Olavo de Carvalho e Edgar Morin, mas tal anseio está presente há séculos. Encontro as raízes do pensamento complexo em Platão e Aristóteles, por exemplo, que analisavam uma questão sob diversas perspectivas, mas buscavam respostas em profundidade. Todo médico tem um grande desafio se ousar a especialização: não deixar de ser médico com profundos conhecimentos gerais, inclusive conhecimentos humanísticos, como Gregório Marañón já alertava ao dizer que "O Médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe. "

Com a tecnologia atual, é impossível não se especializar um mínimo que seja sem abrir mão da qualidade.

6 - Aliás, estaria a ideia de especialidade médica gerando simplesmente aumento de consumo de serviços médicos?

De certa forma sim. O aumento de ferramentas e conhecimentos à disposição do paciente aumentou exponencialmente e, com isso, a necessidade de que pessoas se dediquem a áreas específicas para que o benefício máximo seja alcançado também aumentou.

Para um médico conseguir realizar uma cirurgia chamada vitrectomia e evitar a cegueira num descolamento de retina grave, há a necessidade de no mínimo onze ou doze anos de estudo, só para citar um exemplo. Isso não desmerece quem optou por um campo mais genérico (tão desafiador e complexo quanto a especialidade, quando encarado seriamente).

O problema na pergunta é a palavra simplesmente. Aumenta-se o consumo, mas aumenta-se também em muitos casos a qualidade de vida. Considere os avanços na cirurgia de catarata, por exemplo. Pessoas de sete ou oito décadas de vida praticamente cegas que voltam a enxergar e se conectam novamente com o mundo e que, além disso, evitam traumas e quedas ao ver melhor por onde caminham.

O aumento do "consumo" médico vem ao lado de muitas conquistas.

7 - Numa sociedade que consome serviços de saúde quando está doente, estaria a ideia de especialidade médica gerando mais doença ou isto tudo é mera coincidência com o fato do governo pensar que o problema de saúde do Brasil é falta de médico para atender tantas consultas?

A visão de que a sociedade "consome serviços" é um pouco estranha e enviesada. Prestação de serviços de saúde não é material de consumo. Mas é um fato que as pessoas de todas as classes sociais demandam cada vez mais serviços de qualidade e alta complexidade. E também é fato que muitos comecem a enxergar - erroneamente - a medicina como um produto.

Também não se pode evitar a percepção de que muitos procedimentos trazem benefícios às custas de efeitos colaterais novos e novos desafios, e que a Iatrogenia (lesão causada por ação médica) é uma realidade que deve preocupar cada vez mais os médicos conscientes.

Já as razões para que o governo traga mais médicos são várias, e recomendo uma leitura no artigo publicado na revista Ibérica de Estudos Interdisciplinares. Nessa questão do Mais Médicos, o buraco é muito mais embaixo. Artigo: http://www.sophiaweb.net/repositorio/iberica/iberica21/interiorizacao-medico-angotti.pdf