O médico salva diversas vidas, sim! Isso pode até não ser um grande desafio na maioria das vezes, mas é maravilhoso e recompensador.
Li um comentário que despertou o interesse em falar acerca de qual seria o maior desafio do médico.
“Não há desafio maior do que salvar vidas humanas”.
Antes de falar qual seria o maior desafio, seria bom
começar a falar de quais são os desafios do médico.
A tríade da clínica nos impõe três grandes desafios
de caráter geral. O primeiro grande desafio geral é o diagnóstico. Investigar e
descobrir qual o problema, mapear terrenos.
O segundo grande desafio é o prognóstico. De posse
do conhecimento acerca do problema do paciente, prever o risco, os possíveis
caminhos a seguir, os possíveis destinos a alcançar.
O terceiro grande desafio é a terapêutica. O
tratamento, que pode ser cirúrgico, farmacológico, de reabilitação ou
simplesmente de conforto. Sem o mapeamento do terreno a caminhar e sem saber o
que esperar ao fim de cada caminho, como traçar um percurso?
Esses três desafios gerais são complementares.
Algumas vezes o mais desafiador será o diagnóstico, e um tratamento simples
poderá poupar uma vida. Às vezes o diagnóstico será facílimo, porém o
tratamento necessitará de grande perícia, ou muita coragem.
Mas toda a tríade da ação médica visa um objetivo,
uma finalidade: o bem do paciente. Aí cabe uma série de desafios adicionais.
Qual o bem desejado pelo paciente? Qual o bem
necessário identificado pelo médico? Qual o maior bem possível de ser alcançado
na relação médico-paciente?
Posso atender a um paciente que deseja novos óculos
e detectar um dano ao nervo óptico compatível com o diagnóstico de Glaucoma
Primário de ângulo Aberto. A doença é silenciosa, e o paciente mal sabia que a
tinha. O paciente chegou pensando num resultado: enxergar melhor com novos
óculos. No meio da consulta ele descobre um outro problema e um objetivo
alternativo: evitar a cegueira num futuro hipotético. Qual o melhor resultado
possível desta situação e qual o maior desafio? E ainda estamos num exemplo
relativamente bem simples, bem cotidiano.
O bem final a ser alcançado pode ser um entre
muitos: salvar uma vida, aliviar a dor, confortar alguém que sofre, oferecer
sentido à situação de fragilidade e dúvida, informar conhecimentos e promover a
autonomia do paciente e de sua família etc.
O desafio e sua gradação mudam de acordo com a
situação.
Às vezes o tratamento que salvará uma vida é algo
simples, corriqueiro, como a simples injeção da tradicional Penicilina
Benzatina que salvará de uma infecção potencialmente mortal. Às vezes salvar
uma vida será um desafio extraordinário, de ousadia, técnica, ciência e
compaixão, como o grande desafio aceito por nobres cirurgiões pediátricos que
decidiram lutar pela vida humana quando tantos outros desistiram.
Um exemplo clássico pode ser visto no esforço de Rob
de Jong, crítico do Protocolo de Eutanásia Infantil conhecido como Protocolo
Groningen.
O Protocolo Groningen, da Holanda, advoga o
extermínio da vida de um bebê em situações drásticas, sem prognóstico, de
grande sofrimento irreversível. Joga-se a toalha. Em 2008 foram reportados 22
casos de aplicação do Protocolo em crianças com espinha bífida.[1]
Desistir sempre da vida humana seria tão fácil! Alguns
resultados garantem que tudo pôde ser feito em acordo com os pais e a equipe
médica, e sem gerar processos legais incômodos.
Mas aí o grande desafio é realmente salvar uma vida,
inovar, batalhar. Rob de Jong mostra o resultado de uma de suas batalhas: uma
criança operada e sorridente, aos 7 meses, interagindo, com o diagnóstico que
garantiria sua entrada no Protocolo Groningen, porém sem o sofrimento
insuportável ou o prognóstico irreversível descrito.[2]
Quantas vezes um médico
ou um cientista não se deparou com o que parecia ser um beco sem saída? Quantas
vezes o impossível não se tornou possível e hoje parece ser algo garantido?
Lembro da história do
Dr. Ben Carson, neurocirurgião pediátrico que pela primeira vez separou com
sucesso dois gêmeos siameses unidos pela região occipital do crânio. Assim como
ele venceu um desafio pela primeira, vez, alguém pela primeira vez realizou um
transplante de rim, operou um coração, usou com sucesso um antibiótico etc.
Sim, salvar a vida é um
grande desafio em diversas oportunidades.
Mas há oportunidades
nas quais a grande novidade, a grande descoberta, a revolução no tratamento não
ocorre. Nesses casos a vida não poderá ser salva. O grande desafio será aliviar
ou confortar, e esses atos são deveres primários de qualquer médico.
Esqueça o conselho
amargo de alguns desiludidos ou menos otimistas que afirmam que o médico nada
faz, que o médico não está lá para salvar vidas. O médico faz muita coisa, e se
for um bom médico, de boa formação humanística e científica, fará ainda mais. O
médico salva diversas vidas, sim! Isso pode até não ser um grande desafio na
maioria das vezes, mas é maravilhoso e recompensador.
Prof.
Dr. Hélio Angotti Neto
é Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas),
Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, Médico Oftalmologista pela
Secretaria de Saúde do ES, Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e
criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).
Mirabilia
Medicinæ: http://www.revistamirabilia.com/medicinae
[1] Verhagen AA, Sol JJ, Brouwer OF,
Sauer PJ. Deliberate termination of life in newborns in The Netherlands; review
of all 22 reported cases between 1997 and 2004. Ned Tijdschr Geneeskd. 2005 Jan
22;149(4):183-8.
[2] JONG, T. H. Rob de. Deliberate
termination of life of newborns with spina bifida, a critical reappraisal. Childs
Nerv Syst. 2008 Jan; 24(1): 13–28.