LIBERDADE
E CONSCIÊNCIA MÉDICA
Artigo
a ser publicado no livro “Saúde e Liberdade”*
Liberdade de consciência é um dos
componentes da integridade pessoal. E sem integridade, o que nos resta é o
caráter fragmentado, a personalidade fraca e maleável à manipulação e aos mais
diversos vícios.
Na Medicina, cabe ao profissional -
isto é, àquele que professa um corpo de valores fundamentais - ter a força de
caráter suficiente para lutar pela integridade de sua profissão e de sua
pessoa.
Medicina aqui se entende por profissão
beneficente que segue o modelo hipocrático cristão de cosmovisão. Tal definição
não restringe de forma alguma a medicina a médicos e pacientes cristãos. Porém,
restringe a forma pela qual exercemos nossa profissão. E todas as vezes que nos
afastamos desse modelo que vigora há mais de dois mil anos, a tragédia se
abateu sobre vidas inocentes.
Muitos imaginam que o médico não
deveria prezar por sua integridade, sendo somente um instrumento a servir ao
paciente em seus mais diversos desejos. Porém, sobram muitas perguntas: qual
paciente? Quais desejos? Quais formas e sob quais parâmetros? A medicina pode
ser amoral, isto é, neutra?
Em nossa história já conhecemos o
exemplo da medicina comunista, honrando princípios seculares revolucionários
acima da vida humana, servindo ao Estado antes de servir ao indivíduo, como se
observa no próprio juramento dos antigos médicos soviéticos.[1]
O resultado desse desvio ideológico foi o uso da psiquiatria para manipulação
ideológica e opressão totalitária de toda a população.[2]
A percepção do médico como agente do
Estado só poderia terminar em desconfiança e medo, como descrito no caso da
Romênia em tempos mais sombrios, onde o paciente acossado pela doença e diante
de um médico burocrata a serviço do Estado, tantas vezes sentia-se obrigado a
recorrer ao suborno.[3]
O exemplo da medicina nazista também
não nos é estranho. Médicos movidos pelo avanço da ciência aliado ao racismo de
moral darwinista[4]
usaram milhões de judeus, ciganos, prisioneiros de guerra, deficientes mentais
e pessoas com diversas características socialmente indesejáveis como cobaias
para os mais cruéis experimentos.
O ser humano poderia ser dividido em
categorias e ser tratado como mera mercadoria; sua pele serviria de material
para belíssimos abajures, sua gordura proveria sabão e o cabelo seria estofo
para colchão.[5]
O processo pelo qual tanto horror
aconteceu é relativamente claro para aqueles que desejam abrir os olhos. Uma
elite iluminada decide mudar a moralidade médica, reformar a sociedade em prol
de sua visão avançada do que é o certo a ser feito, muito melhor do que a velha
forma de ver o mundo. Moralidade hipocrática e cristã seria coisa do passado
ou, como diria Nietzsche, de escravos. Mas o famoso filósofo niilista sabia
muito bem no que se transformaria a humanidade ao nos “libertarmos” das amarras
da moralidade chamada de tradicional. E sua profecia se cumpriu.
Seguindo essa elite esclarecida que se
julgava capaz dos mais revolucionários atos de engenharia social e mudança
moral, toda uma hoste de médicos praticou os mais horrendos e desumanos atos
imagináveis com a excelente desculpa de que só cumpriam ordens, como se ouviu
no Julgamento de Nuremberg.[6]
Conclui-se que há modelos de prática
médica que não devem ser seguidos de forma alguma.
Mas poderia o médico alegar liberdade
plena e declarar que não seguiria nenhum modelo? Tal pretensão em si seria um
novo modelo de conduta. A idéia contida na palavra liberdade é de contingência,
isto é, requer uma delimitação: liberdade de que ou de quem em relação ao quê?
Quando se fala liberdade de consciência,
fala-se exatamente o quê?
Minha posição claramente é a de que o
médico deve ter a liberdade de consciência para seguir a moralidade hipocrática
e cristã sem ser forçado por ideologias ou Estados a executar atos contra suas
mais fundamentais crenças.
Mas estaria tal liberdade ameaçada?
Esse é o grande tema perante o qual nos
deparamos.
A medicina utilitarista conseguiu
gigantescas vitórias: liberou o abortamento voluntário, a pesquisa de embriões
humanos, a eutanásia e o suicídio assistido. Todas essas mudanças se
fundamentaram nos pressupostos de que:
1 – Não há nada de especial em ser
humano e estar vivo;
2 – Há vidas humanas que valem mais do
que outras;
3 – O médico pode matar ao invés de
somente buscar a manutenção adequada da vida;
4 – A vida só tem valor se oferecer
prazer físico.
São mutações civilizacionais gigantescas
que, no Brasil, são empurradas goela abaixo dia após dia por milhões e milhões
de dólares aliados à militância de centenas de organizações não governamentais
e à constante pressão da Organização Mundial da Saúde e sua agenda de controle
populacional.
Mas o próximo passo dessa revolução
moral justificada pelo avanço da ciência é o próprio espírito da classe médica.
Em nossas consciências é que se dará a próxima grande batalha.
Bioeticistas de renome mundial,
editores de grandes periódicos científicos, declaram abertamente que médicos
devem servir ao Estado sem o direito de apelarem às suas consciências. Julgam
como errada a posição de negar auxílio, por exemplo, a pacientes suicidas.
Afirmam que:
“Doutores são, primeiramente e acima de tudo, provedores de
serviços de saúde. A sociedade tem todo o direito de determinar que tipos de
serviços eles (os médicos) devem oferecer.” [7]
A ordem de execução dessas grandes
mutações civilizacionais realmente segue um padrão que deve ser compreendido.
Da elite, em cima, para o povo, abaixo,
há um constante emprego de diversas formas de propaganda e manipulação. A
autoridade acadêmica de professores universitários tem papel relevante no
processo[8],
formando o que Antônio Gramsci chamaria de Intelectualidade Orgânica.[9]
No começo, a opinião dessa elite
iluminada é claramente contrária à da população, cujos valores e virtudes são
denominados “preconceitos familiares” e são inexoravelmente ridicularizados e
combatidos.[10]
Exemplo claro é o Brasil, onde a
população é claramente contra o aborto e possui tendências conservadoras[11]
em diversos assuntos, mas é empurrada sem descanso à mutação de sua moralidade.
Cabe então perguntar que sociedade é
essa a quem os médicos devem obedecer. Será a sociedade composta pelo povo
brasileiro, ainda conservador? Será a sociedade que prescreve a moralidade
cristã tradicional, capaz de beneficiar teístas, ateus e agnósticos mundo
afora? Será a sociedade de moralidade secular adaptada e derivada de tais
elementos religiosos do passado? Ou será a sociedade dos revolucionários
líderes que se acham no direito de manipular o espírito alheio ao evocar
autoridade quase que divina para si mesmos?
E a sociedade nazista? Tiveram eles
todo o direito de determinar o que os médicos deveriam fazer? Estavam os
médicos justificados ao dizerem que somente seguiam ordens? Essa neutralidade
moral justifica as vivissecções, a inoculação de micro-organismos letais, o
afogamento e congelamento experimental, toda a miséria, fome e genocídio dos
campos de concentração nazistas e do Gulag soviético?
De acordo com os novos Césares,
legisladores seculares da moralidade humana, “Se você é um médico ginecologista e não quer fazer abortamentos, é como
um policial que não usa armas, e deve parar de exercer sua profissão”.[12]
Também afirmam que “Num serviço público, de acordo com a norma técnica, o
médico responsável é obrigado a fornecer o abortamento.”[13]
A
justificativa é que a saúde é um bem geral - ou social, como gostam de chamar –
e que só se faz medicina por concessão do Estado. Nessa logica há uma premissa
que necessariamente não é verdadeira!
O fato de se
trabalhar por meio de concessão estatal e de se prestar um serviço à comunidade
em caráter público ou privado, não nos leva a concluir imediatamente que os
valores implicados em tal trabalho devam ser os mesmos da elite governante ou
até mesmo os da população. Há uma perigosa submissão do espírito humano aos
elementos políticos do momento, o que pode ser a porta de entrada de muitos
horrores e sofrimento.[14]
Com muita ironia, aconselho o Estado a
treinar sua própria versão do que seria um prestador de cuidados de saúde, só
não cabendo chamá-lo de médico. O Estado ou a elite iluminada, que está certa
de como deve ser o futuro, que crie seus carrascos e executores e deixe a
medicina em paz.
A Medicina carrega um significado muito
específico e nobre, incluindo a percepção de que toda a vida humana é sagrada e
digna, a devoção ao serviço do próximo de forma concreta e individualizada em
um contexto amplo e a busca constante pela excelência técnica e científica
dentro desses parâmetros morais. Qualquer outra coisa não merece ser chamada de
medicina.
Remover a liberdade do profissional
médico em professar fidelidade ao projeto hipocrático e cristão da medicina é
destruir a profissão e a integridade do ser humano devotado à cura do próximo.
Ademais, sem a integridade moral necessária, tudo o que nos restará é a
instrumentalização do ser humano, direcionada pelo mais raso voluntarismo
subjetivista, uma das mais perigosas combinações de toda nossa história.
Prof. Dr. Hélio Angotti Neto
é Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas),
Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, Visiting Scholar da Global
Bioethics Education Initiative do Center for Bioethics and Human Dignity,
Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e criador do Seminário de Filosofia
Aplicada à Medicina (SEFAM).
Mirabilia Medicinæ: http://www.revistamirabilia.com/medicinae
*Agradeço
às observações do colega Arthur Jorge de Vasconcelos Ribeiro, revisor e editor.
A oportunidade de ser criticado de forma inteligente e cordial é uma excelente oportunidade
para melhorar. Este artigo será publicado impresso no livro “Saúde e
Liberdade”.
[1] Association of American
Physicians and Surgeons. Comparison between
Oath of Hippocrates and Other Oaths. Internet,
http://www.aapsonline.org/ethics/oathcomp.htm
[2] VAN NOREN, Robert. Ending
political abuse of psychiatry: where we are at and what needs to be done. BJPsych Bulletin (2016), 40, 30-33,
doi: 10.1192/pb.bp.114.049494
[3] MANEA, Teodora. ‘Medical Bribery
and the Ethics of Trust: The Romanian Case’. Journal of Medicine and Philosophy, vol. 40, 2015, p. 26-43.
[4]
Charles Darwin ofereceu a fundamentação para muitos dos crimes que se
seguiriam, mesmo que não os prescrevesse pessoalmente, como pode ser observado
nos seguintes trechos: “Em algum período futuro, não muito distante se medido
em séculos, as raças civilizadas do homem vão certamente exterminar e
substituir as raças selvagens em todo o mundo. Ao mesmo tempo, os macacos
antropomorfos... serão, sem dúvida, exterminados. A distância entre o homem e
seus parceiros inferiores será maior, pois mediará entre o homem num estado
ainda mais civilizado, esperamos, do que o caucasiano, e algum macaco tão baixo
quanto o babuíno, em vez de, como agora, entre o negro ou o australiano e o
gorila”; “Olhando o mundo numa data não muito distante, que incontável número
de raças inferiores terá sido eliminado pelas raças civilizadas mais altas!”; “Entre
os selvagens, os fracos de corpo ou mente são logo eliminados; e os sobreviventes
geralmente exibem um vigoroso estado de saúde. Nós, civilizados, por nosso
lado, fazemos o melhor que podemos para deter o processo de eliminação:
construímos asilos para os imbecis, os aleijados e os doentes; instituímos leis
para proteger os pobres; e nossos médicos empenham o máximo da sua habilidade
para salvar a vida de cada um até o último momento... Assim os membros fracos
da sociedade civilizada propagam a sua espécie. Ninguém que tenha observado a
criação de animais domésticos porá em dúvida que isso deve ser altamente
prejudicial à raça humana. É surpreendente ver o quão rapidamente a falta de
cuidados, ou os cuidados erroneamente conduzidos, levam à degenerescência de
uma raça doméstica; mas, exceto no caso do próprio ser humano, ninguém jamais
foi ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzissem.” Cf.
WIKER, Benjamim. Darwinismo Moral:
Como nos tornamos hedonistas. São Paulo: Editora Paulus, 2011, 456p; CARVALHO,
Olavo de. Por que não sou fã de Charles Darwin. Diário do Comércio, 20 de fevereiro de 2009, Internet, http://olavodecarvalho.org/semana/090220dc.html
. É claro que o funcionamento de um mecanismo evolutivo não leva
necessariamente às conclusões genocidas, mas mostra-se coerente com sua
implantação.
[5] CAPLAN, Arthur L. When Medicine Went Mad: Bioethics and
the Holocaust. Totowa, New Jersey: Humana Press, 1992, 359p.
[6]
ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém:
Um Relato Sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companha das Letras, 1999.
[7] SCHUKLENK, Udo. Editorial:
CONSCIENTIOUS OBJECTION IN MEDICINE: PRIVATE IDEOLOGICAL CONVICTIONS MUST NOT
SUPERCEDE PUBLIC SERVICE OBLIGATIONS. Bioethics, Volume 29, Number 5, 2015, p. ii–iii.
[9]
CARVALHO, Olavo de. A Nova Era e a
Revolução Cultural: Fritjof Capra e Antônio Gramsci. Campinas: Vide
Editorial, 2014.
[10]
BERNARDIN, Pascal. Maquiavel Pedagogo,
ou o ministério da reforma psicológica. Campinas: Vide Editorial, 2013.
[11]
AZEVEDO, Reinaldo. ‘Pesquisa Datafolha evidencia outra vez: o brasileiro é
conservador. Ou: Eleitores em busca de um partido’. In: Blog do jornalista
Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura. Internet, http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/pesquisa-datafolha-evidencia-outra-vez-o-brasileiro-e-conservador-ou-eleitores-em-busca-de-um-partido/
[12] VATTIMO G. Nihilism and Emancipation. New York: Columbia University Press,
2004.
[13] SAVULESCU J. ‘Conscientious Objection
in Medicine’. Brittish Medical Journal,
vol.332, 2006; p.294-297.
[14]
Há situações específicas que necessitam de análise cuidadosa, como a
possibilidade de um médico contratado após a instituição da não penalização de
abortamento em decorrência de estupro, por exemplo, negar-se a fazer o
procedimento alegando objeção de consciência. O médico entrou em seu cargo já
sob uma nova lei que o obrigaria a fazer um determinado ato, mesmo contra sua
consciência. O mais coerente seria não colocar-se em tal situação de conflito
moral. Mas o que muitos bioeticistas defendem é uma mutação moral ampla e
irrestrita, com base no fato de a permissão para exercer a medicina ser uma
concessão estatal em última instância.