segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Destruição de Memórias

Destruição de Memórias

Uma especulação, uma pergunta e uma resposta acerca da destruição de legados culturais.


Hélio: Prezado Prof. Ricardo da Costa,
Observo um fenômeno recorrente em alguns escritos de bioética: acusam insistentemente a tradição hipocrática de anacronismo, tornando-se incapazes de perceber (ou reconhecer) as intensas similaridades morais. Muitos afirmam sua completa inutilidade para a Ética Médica de nossos dias. 
Noto a incapacidade contemporânea de ter empatia com os antigos e a completa indisposição em encontrar pontos de conexão. 
Seriam esses os frutos da herança nominalista de Ockham e de uma reação exagerada ao intenso poder de tecer analogias dos medievos? Qual é seu parecer acerca da dificuldade de muitos em "conectar" com o passado? Má-fé, nominalismo exagerado, preguiça, etc?

Ricardo: Dr. Hélio Angotti Neto,
O genuíno estudo do passado, o interesse pelo passado não é algo natural. O máximo que penso pertencer à Humanidade é um desejo de conhecer a história de seus pais, de sua família. Mas isso costumeiramente se restringe aos avós, paternos ou maternos. Em outras palavras, alguém estudar a história para além de 50 anos antes da data de seu nascimento não é algo comum.

O estudo do passado que ultrapassa o âmbito de sua família, de seu estado, de seu país, de seu próprio século, é fruto do pertencimento a uma cultura, a uma tradição cultural. É algo incomum. A cada vez maior incapacidade contemporânea de estabelecer uma empatia com os antigos é, creio, consequência da cada vez maior e mais ampla crise da Educação e da disseminação de um “presentismo” que só se interessa culturalmente, no máximo, a até o início do século XX. Esse último aspecto não é gratuito, mas o resultado de uma articulada e deliberada política cultural revolucionária, dona de uma visão de mundo estreita, míope e pragmática que pretende “apagar” a História da Civilização por entender que seu ensino obstaculiza transformações quaisquer. Talvez o nominalismo de Guilherme de Ockham (1285-1347) seja, de fato, uma de suas raízes filosóficas. Mas entendo que essa forma restrita de se pensar o mundo e a vida no mundo sempre existiu. A diferença é que hoje, cada vez mais, há um projeto político explícito, repito, revolucionário, que alicerça essa destruição do passado.

domingo, 28 de agosto de 2016

Assassinato de Reputações no Hipocratismo Médico?

Novo artigo no Academia Médica.

"A medicina não é uma ciência no sentido moderno; a medicina é uma Arte que usa a ciência, entre outros elementos, profundamente humana, ocasionalmente bem sucedida e intrinsecamente moral."


Saiba mais em: https://academiamedica.com.br/hipocrates-e-o-assassinato-de-reputacao/ 

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Retiro Anual de Humanidades Médicas da Universidade Baylor - Programa de Humanidades Médicas

Divulgado originalmente no informativo HEARTBEAT: New from the Medical Humanities Program at Baylor University (edição de primavera de 2016).
Link original: http://www.baylor.edu/doc.php/266598.pdf

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O CORAÇÃO DE UM VERDADEIRO MÉDICO

Eis a palestra originalmente proferida no Retiro Anual de Humanidades Médicas da Baylor University em fevereiro de 2016. O conteúdo foi encurtado para quarenta minutos de duração (na forma original tinha mais de duas horas), porém a mensagem essencial permaneceu.

Foi proferida no dia 29 de julho de 2016 no IV Seminário de Humanidades Médicas do UNESC, organizado pela Liga Acadêmica de Humanidades Médicas sediada em Coaltina - ES.





sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A FILOSOFIA COMO MANEIRA DE VIVER

Filosofia como exercício existencial da Consciência


Terminei de ler a série de entrevistas feitas com Pierre Hadot sobre a Filosofia como Maneira de Viver, publicada pela É Realizações.
Realmente há duas formas de se enxergar Filosofia.
Uma é mais acadêmica, cristalizada na forma de profissão (de bacharelado), centrada principalmente na análise de textos, na lógica e na argumentação. Essa é uma forma de filosofia que não seria reconhecida como tal no passado. Talvez fosse até chamada de sofística ou filodoxia.
E a outra Filosofia, mais antiga, trata de como se deve viver, trata de existir conscientemente perante toda a realidade, em postura de contemplação amorosa e vivência plena.
Há paralelos importantes com obras que tratam da essência da Filosofia como modo de vida e buscam defini-la:
1. A Filosofia e Seu Inverso (Olavo de Carvalho);
2. A Consciência de Si, indicado como excelente exercício espiritual (Louis Lavelle);
3. Filosofia e Anti-Filosofia (Michele Federicci Sciacca);
4. Que és Filosofia (Dietrich von Hildebrand) e muitos outros, incluindo praticamente todos os clássicos filosóficos antigos e medievais.

Essa Filosofia como modo de viver dificilmente será encontrada na Universidade. Ela é encontrada na vida, na convivência em busca da sabedoria.
Essa Filosofia, para o Cristão, é viver plenamente inserido na realidade em reflexão profunda com o aporte da sabedoria evangélica e da sabedoria salomônica de Provérbios e Eclesiastes.
Para saber mais: http://www.olavodecarvalho.org/textos/filosofia-inverso.html


domingo, 14 de agosto de 2016

Uma Ponte para o Futuro Direto do Passado

A Obra de Van Rensselaer Potter




Recentemente, foi publicada em português a obra primordial da Bioética escrita pelo biólogo e bioquímico pesquisador em oncologia Van Rensselaer Potter pela Editora Loyola, com a tradução de Diego Carlos Zanella e uma introdução à edição brasileira escrita pelo padre Leo Pessini, importante ator da Bioética no Brasil e no mundo. Era uma obra que o mercado brasileiro necessitava há tempos por muitos motivos.

Citado por muitos e lido, talvez, por poucos, o livro sempre foi mencionado como excelente fonte dos primórdios da Bioética. É uma pedra fundamental nesse campo interdisciplinar de estudo que ajuda sobremaneira a compreender os rumos da discussão acadêmica mundo afora e no Brasil.

Potter instaura a Bioética numa perspectiva global, incluindo questões acerca da sobrevivência humana na biosfera, ecologia, crescimento populacional, responsabilidade no ambiente científico e perigos dos avanços tecnológicos. A Bioética Clínica, instaurada quase que simultaneamente por Hellegers, tratou, desde os primórdios, de questões semelhantes, porém mais restritas à assistência à saúde no contexto dos avanços tecnológicos e dos novos desafios à moralidade de médicos, pacientes e demais envolvidos.

As temáticas de Potter ainda hoje são lugares comuns na discussão bioética: responsabilidade frente às próximas gerações, valores laicos e religiosos em sociedade, controle populacional, preservação da natureza, excesso de especialização na ciência, incapacidade de lidar com as questões maiores da sociedade e individualismo.

Potter exemplifica bem o que Yuval Levin explicou em seu livro recente (Imagining the Future: Science and American Democracy): indivíduos com tendências à esquerda do espectro político (no sentido denominado progressista e liberal) estão agindo de forma conservadora quando o assunto envolve desenvolvimento tecnológico e proteção da natureza.

Outro aspecto muito curioso e ilustrativo da realidade dos ambientes de discussão em Bioética são os contrastes exemplificados pelo próprio autor em sua obra. Um secularista mecanicista que promove - com certa competência, devo dizer - um reducionismo do ser humano ao status de máquina cibernética, trazendo o aporte de vários achados científicos interpretados sob um paradigma naturalista bem específico. Ao mesmo tempo, não descuida da cultura circundante, fazendo referências contínuas a trechos das escrituras, mesmo que para anunciar placidamente que perderam sua validade nos dias de hoje. A Bioética ainda é um campo de ferrenhos duelos entre o secularismo e as outras crenças, inclusive as religiosas; todos partilhando ao menos a disposição em conversar, mesmo que com ânimos acirrados algumas vezes.

E, talvez, algo ainda mais curioso: Potter é profundamente moralista, embora subscreva a cosmovisão naturalista e mecanicista. Há uma tensão incontornável entre tais visões, à beira do abismo niilista. Não duvido por um momento sequer da sinceridade do autor em recomendar aquilo que realmente julgava certo, mas ele descartou a fé alheia com muita facilidade e evitou regressar aos seus pressupostos mais básicos. Tal regresso às fundações de suas crenças, filosófico e anamnésico ao mesmo tempo, o levaria ao terrível choque entre o naturalismo e a necessidade de pregar moralmente.

De fato, o livro de Potter é uma ponte para o futuro. Lá estão prenunciados os conflitos de hoje na Bioética. Lá já se defendia a existência daquele engenheiro social (bioeticista) que contornaria a visão super especializada de suas pesquisas cada vez mais avançadas e cada vez mais distantes do cotidiano e da aplicabilidade prática para pregar uma nova moral de uma nova fé.

Se os termos parecem exagerados, o leitor me desculpará ao ler o Credo Bioético oferecido pelo autor, com suas crenças e compromissos. E compreenderá melhor o papel central desse pequeno livro no cenário internacional que hoje se vê.

Sem dúvida nenhuma essa obra chega tarde, mas melhor agora do que nunca. Parabéns à Loyola e aos envolvidos pelo trabalho bem realizado e por trazer esse importante pedaço do quebra-cabeça chamado Bioética para a língua portuguesa.




Prof. Dr. Hélio Angotti Neto


Médico Oftalmologista pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia. Doutor em Ciências Médicas pela USP. Coordenador do Curso de Medicina e Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC. Visiting Scholar do Center for Bioethics and Human Dignity em 2016. Criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Quer fazer algo chocante? Defenda a Vida Humana.


O Politicamente Correto e os tecnocratas da medicina utilitarista e transumanista se esforçam ao máximo para difamar, distorcer e inibir a cultura hipocrática e cristã ligada à medicina.

Pintam a moral tradicional da medicina como algo autoritário e desrespeitoso, mas o verdadeiro alvo é outro bem diferente: a valorização incondicional da vida humana.
Quer melhor razão do que esta para conhecer mais acerca do Hipocratismo Médico?
Defender a vida humana raramente foi algo tão chocante e "revolucionário" quanto nos dias de hoje!

MEDICINA HIPOCRÁTICA CRISTÃ?

MEDICINA HIPOCRÁTICA?


Qual o significado de ser um médico hipocrático cristão? Talvez a forma mais direta de explicar a alguém seja: significa que não vou te assassinar.

No Canadá, chegamos a uma situação onde os médicos que negam-se a matar seus pacientes poderão prestar contas de sua rebeldia e terão que declarar explicitamente sua discordância em matar a serviço do Estado.

No mundo inteiro, bioeticistas de estirpe relativista, hedonista e utilitarista levantam-se contra o direito de objeção de consciência do médico que se recusa a abortar.

Não se iludam, a Medicina está no olho do furacão da guerra cultural.

No meio de tudo isso, como resumir a moralidade da medicina hipocrática e cristã? Quais suas características?

Princípios elencados por uma das várias sociedades que se chamam hipocráticas são os seguintes:

1. Reconhecer que uma esfera transcendente é capaz de afetar em muito a forma de praticarmos medicina;

2. Entender o fato de que a medicina é uma atividade intrinsecamente moral, e não somente uma atividade técnica. Ajudamos aos pacientes a entenderem o que eles "devem" fazer;

3. Crer na santidade da vida desde a concepção até à morte natural;

4. Proteger a integridade médica ao permitir que profissionais evitem procedimentos médicos que contrariem suas crenças mais íntimas e essenciais.

Muitos questionariam um ou todos os itens acima, mas é preciso lembrar que médicos são seres humanos dotados de personalidade e valores como qualquer outro, jamais robôs a serviço de uma tecnocracia ou de uma burocracia estatal.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

MENTORING NO CURSO MÉDICO


Mentor era o nome de um sábio descrito na mitologia grega. 

Nas histórias da Odisséia, de Homero, Mentor aconselhava os jovens e partilhava de sua experiência de vida. A própria Atenas, ao escolher um disfarce para caminhar entre os mortais, escolhera mostrar-se como se fosse Mentor, e aconselhou Telêmaco.

O nome da personagem mitológica foi adotado para descrever aquela pessoa que compartilha sua sabedoria e seus conhecimentos com alguém menos experiente.

Na Medicina contemporânea, o programa de Mentoring visa formalizar uma relação que ocorre intuitivamente há milênios entre aprendiz e mestre, entre aluno e professor. Reconhecido de muitas formas, inclusive por meio de Juramento, o elo entre gerações na medicina encontra-se reforçado no Programa de Mentoring (ou Tutoria em alguns lugares, embora tal terminologia possa confundir-se com o Tutorial da metodologia PBL).

No Programa de Mentoring, um pequeno grupo de alunos reúne-se com um professor, alguém mais experiente, e discute acerca dos planos para o futuro, do planejamento de carreira e do desenvolvimento acadêmico. É uma excelente ferramenta para ajudar a navegar no meio de tantas incertezas que cercam o acadêmico de medicina.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

IV SEMINÁRIO DE HUMANIDADES MÉDICAS - LIGA ACADÊMICA DE HUMANIDADES MÉDICAS (LIAHM)



Ter, 09 de Agosto de 2016 14:30

Nos dias 04, 05 e 06 de Agosto médicos, acadêmicos do curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo-UNESC, da Universidade Vila Velha-UVV, da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG e da Universidade Presidente Antônio Carlos-UNIPAC, Campus Juiz de Fora estiveram reunidos no Auditório do UNESC, Campus Colatina, para juntos chegarem à resposta acerca de qual médico a sociedade precisa.

O IV Seminário de Humanidades Médicas, cuja temática remete à pergunta: De que Médico a sociedade precisa?, contou com várias atividades. Na quinta-feira (4), foi realizada uma Oficina de Formação Política, sobre filosofia, da política e saúde. O objetivo do curso não foi ministrar Ciências Políticas, mas sim estratégias e ferramentas políticas aplicadas ao contexto da saúde brasileira, incluindo análises e estudos dirigidos.

Na sexta-feira (5), foi realizado um Simpósio-Satélite dentro do Seminário, com a temática: Educação Médica na visão do Estudante. Na abertura, os participantes acompanharam um vídeo acerca de aplicativos e seu uso no ensino médico. Em seguida, acompanharam virtualmente a realidade de estudantes da UFAM-Universidade Federal do Amazonas, UFVJM-Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri e FMP- Faculdade de Medicina de Petropólis, com relação aos métodos de ensino, dificuldades e benefícios que encontram em suas instituições.

No decorrer do simpósio, os temas foram os mais diversos. O primeiro workshop remeteu aos métodos de estudos aplicados à Medicina. O tema foi ministrado pelo acadêmico Rafael Ageu, coordenador de um grupo (GEDAAM-Grupo de Estudos em Didática Aplicada ao Aprendizado em Medicina), na Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG.

No período da tarde, a abertura oficial levou os participantes a um passeio pela história da Medicina, pelo Brasil e pelo mundo. Foram apresentados depoimentos de médicos, estudantes e pacientes, que opinaram acerca de qual médico precisamos hoje?


Em seguida, compondo a mesa de abertura; Hélio Angotti Neto, coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo; junto com Edgar Gatti, diretor e delegado do SIMES-Sindicato dos Médicos do Espírito Santo e o coordenador da Comissão de Ensino Médico do Conselho Federal de Medicina (CFM), Lúcio Flávio Gonzaga Silva; compuseram a mesa de honra do evento, proferindo algumas palavras para os participantes.

Na sequência, a conferência ministrada pelo conselheiro federal Lúcio Flávio trouxe à tona a discussão: A medicina na intersecção entre tecnologia e humanidades. Estamos vivendo uma era de incertezas na classe médica. Com a revolução da informação e da tecnologia “vestível”, as possibilidades do cuidado com a saúde são as mais variadas possíveis. Já vivemos em um mundo onde as pessoas já vem à consulta com a hipótese diagnóstica pronta, pois antes de procurarem um médico, já questionaram ao “Dr. Google” acerca de seus sintomas. Sabemos que adequar-se à tecnologia é inevitável, e fundamental na era em que vivemos, a ressalva se faz presente quando essa adequação se torna fator preditivo para o abandono dos aspectos humanos. E isso é preconizado em nosso Código de Ética, em seus princípios fundamentais.

A última palestra da sexta-feira, teve como tema: O coração de um verdadeiro médico. Ministrada por Hélio Angotti Neto,criador do SEFAM-Seminário de Filosofia Aplicado à Medicina, diretor Editorial da revista internacional  em Humanidades Médicas Mirabilia Medicinae, sediada no Institut d’Estudis Medievals da Universidade Autônoma de Barcelona, médico (UFES), residência em Oftalmologia e doutorado em Ciências Médicas (USP); Visiting Scholar em 2016 da Global Bioethics Education Initiative do Center for Bioethics and Human Dignity, no qual apresentou essa palestra. Durante esse tempo nos perguntamos: como formar um bom médico? Como educar para ser uma boa pessoa, e consequentemente um bom médico? Não seria pretensioso ousar educar para o certo, para a virtude? A virtude seria uma qualidade moral particular. Uma disposição estável de praticar o bem; revela mais do que uma simples característica ou uma aptidão para uma determinada ação boa, trata-se de uma verdadeira inclinação. São todos os hábitos constantes que levam o homem para o bem, quer como indivíduo, quer como espécie, quer pessoalmente, quer coletivamente. Diante desse fato, aprendemos que ser médico vai além de um registro frente ao conselho que rege a profissão, o verdadeiro coração de um médico abarca virtudes (confiabilidade, compaixão, prudência, justiça, temperança, integridade e dignidade).


Para finalizar o evento, foram discutidas questões que assolam a carreira médica: falta de respeito com o profissional, entraves como a falta de recursos, gestão ineficiente, corrupção, judicialização da saúde, lei do ato médico.

 Com informações da Liga Acadêmica de Humanidades Médicas.
Link da postagem original: 

http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26331%3A2016-08-09-17-57-11&catid=3 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

BIBLIOGRAFIA EM BIOÉTICA - MAPEANDO O INÍCIO DA JORNADA

Muitos perguntam quais livros são bons para começarem os estudos em Bioética.

A pergunta é relevante. Para quem realmente quer entender de qualquer assunto com qualidade, o levantamento bibliográfico prévio economizará anos de estudos pouco direcionados e auxiliará a fundamentar um posicionamento ou entender melhor o contexto de algum autor de grande importância na área.

Para começo de conversa, já respondo que qualquer embasamento interdisciplinar demorará alguns anos para acontecer com qualidade. Portanto, acumule paciência e comece a ler e estudar sem o compromisso de terminar tão cedo.

Edmund Pellegrino, o "Pai" da Ética Médica contemporânea.

Prepare-se também para navegar em mares nunca antes navegados (por você, pelo menos)! Nas palavras de Edmund Pellegrino, pai da ética médica contemporânea, é necessário saber Humanidades Médicas e Filosofia da Medicina se alguém quiser conhecer a Bioética. Estamos falando de literatura, história, filosofia (geral e especializada), retórica, lógica, política e muitas outras áreas.

Diante da necessidade de criar um referencial teórico mínimo aceitável, temos que nos perguntar algumas coisas extremamente importantes.

1. Qual o tipo de leitura?

Qual o tipo de livro que temos diante de nós? É um livro de conteúdo inspiracional e formativo? Um livro que molda nosso caráter e nossa perspectiva de mundo e nos inspira a melhorar? Ou é um livro de conteúdo informativo, que nos oferece material para raciocinar e argumentar? Outra categoria que não tratarei seria a do livro lúdico, que simplesmente nos diverte sem oferecer conteúdo útil ou nobre.[1]
Uma leitura formativa ou inspiracional pode ser repetida várias vezes durante uma vida, cada vez oferecendo uma nova perspectiva, cada vez mostrando-se mais complexa quanto mais complexos nós nos tornamos.

Já uma leitura informativa, deve ser lida uma vez para que se tenha noção de onde buscar informação relevante, e consultada novamente quando necessário.

2. Qual o foco?

Quando iniciamos um curso formal de bioética ou humanidades médicas, o foco é adquirir o básico de uma formação geral na área, pretensamente capaz de lançar o estudioso no campo de pesquisa com o mínimo de ferramentas necessárias para a argumentação e progressão nos estudos.

Embora a aproximação sistemática tenha suas inegáveis vantagens, é difícil compará-la com o ímpeto e a vitalidade de um estudo baseado em problemas, no qual iniciamos nossas leituras com base em um tópico de extrema relevância para nossas vidas, e que atrai intensamente nossa atenção.

Uma mistura saudável entre ambas as ênfases é interessante. Quantos tesouros eu não descobri ao ler materiais que não estavam diretamente relacionados a um problema que eu pesquisava?

3. Por quanto tempo?

Esta resposta é simples. Até o fim da vida.

Cada dia aprende-se algo, cada dia nós revisamos nossas perspectivas, para reforçá-las ou para colocá-las em cheque. Um estudioso dedicado saberá suportar anos de dúvidas e buscas.

Se não há fibra para aguentar a aporte de diferentes perspectivas e a vontade de harmonizá-las, não se deve arriscar uma vida intelectual, ainda mais em Bioética.

Se não há força de caráter para defender o que se mostrou verdadeiro e correto apesar das circunstâncias e da pressão externa, não se tem moral para ingressar na vida intelectual.

4. Quais as obras?

Esta é a pergunta fácil de responder. Isto não faz com que a resposta deixe de ser inquietante.

Estamos diante de um campo interdisciplinar que mistura humanidades e ciências. Portanto, a lista é enorme e variadíssima!

Se alguém deseja falar algo em Bioética, o mínimo que se espera é uma formação humanística de qualidade, incluindo os clássicos da literatura e da filosofia mundial, ao lado de uma formação científica atualizada.

Quando se trata de Bioética, aborda-se o fenômeno da vida humana e de tudo que a motiva e enriquece, fala-se das grandes religiões e do sentido da vida, lembra-se das mais comoventes histórias da humanidade e busca-se a Alta Cultura. Exigir um pouco menos do que isso já é destruir com a mediocrização todo um projeto de estudo.

5. A Formação do Imaginário

Começarei pelas grandes obras poéticas, conforme a classificação aristotélica formulada por Olavo de Carvalho.[2] São estas as mais importantes obras que fundamentam nosso imaginário e dão sustentação aos estudos mais complexos e avançados.

Hans Jonas, um dos defensores da Responsabilidade em Bioética.

Hans Jonas aconselha em um de seus livros que, para pensar e agir com responsabilidade em Bioética, era preciso muita imaginação.[3] E a imaginação bem formada requer a fundação oferecida pelos clássicos da religião e da literatura, além do aporte opcional de bons filmes.

A pedra fundamental para qualquer um que vive na cultura ocidental, em acordo ou discórdia, é a Bíblia. Não há nem discussão neste ponto. Para abrir a boca e falar qualquer coisa, o mínimo do mínimo é ter conhecimento das histórias fundamentais de nossa civilização.

Hoje, qualquer adolescente imberbe crê ser capaz de criticar milhares de anos de sabedoria e cultura acumulada. É preciso entender que essa ilusão é incapaz de sustentar uma verdadeira vida de estudos.

Nietzsche, por exemplo, foi um grande crítico da cultura ocidental e cristã. Porém, foi profundo conhecedor daquilo que criticava. Outro exemplo é Rensselaer Van Potter, autor do primeiro livro de Bioética do mundo, que afirmou ser um naturalista mecanicista, mas que utilizou explicitamente alguns versículos bíblicos das cartas apostólicas e dos salmos para argumentar em sua obra fundamental. As Escrituras, ao lado dos gregos antigos e dos romanos, são simplesmente as pedras que sustentam toda nossa cultura.

Na Bíblia estão os dilemas existenciais que assolam ou elevam a humanidade. Guerras, milagres, esperança, desespero, doença, cura, fé, salvação e perdição. Está tudo lá. A emotividade dos Salmos, o existencialismo de Eclesiastes, o exemplo do Cristo e as descrições fenomenológicas da intimidade angustiada do apóstolo. Num campo onde se discute o certo e o errado, a Bíblia fornece instrumentos narrativos que povoam o imaginário e potencializam a compreensão do ser humano.

Nesta hora normalmente alguém se ergue quase ultrajado e diz: e as outras religiões, e o pluralismo, e os ateus? De que adianta buscar pluralismo sem antes possuir integralmente alguma das perspectivas? De que adianta buscar uma posição crítica contra uma perspectiva a qual realmente não se conhece? Desenraizado de uma Alta Cultura, só restará a superficialidade e a arrogância daquele que ignora, só restará a impostura.

E nem preciso comentar o valor da Teologia no campo da Bioética!

Autores necessários para compreender parâmetros morais e perspectivas ocidentais incluem Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, este último dissertando sobre virtudes e vícios. Recentemente, é impossível não recomendar obras de intelectuais como Francis Schaeffer e de grandes lideranças religiosas como João Paulo II e Bento XVI. Teólogos contemporâneos estão por todos os lados em Bioética, desde o brasileiro Leocir Pessini ao americano Gilbert Meinlander, importante membro da comissão presidencial de Bioética dos Estados Unidos. Religião e Bioética definitivamente se misturam e se discutem.

Na literatura clássica, temos os livros que marcaram nossa civilização. A poesia de Homero, tragédias gregas escritas por Sófocles e diálogos escritos por Platão abordam dúvidas existenciais, noções de justiça e convivência em sociedade. Romances como “A Morte de Ivan Illitch”, de Tolstói, nos ensinam quais são as fases psicológicas enfrentadas por alguém que se aproxima da morte, tomado por uma grave doença. Romances mais modernos como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwell, nos mostram projeções de sociedades futuras baseadas nos possíveis desenvolvimentos de tecnologias e ideologias da época. Até mesmo um conto de terror, como “Frankestein”, de Mary Shelley, pode nos educar quanto a visões tenebrosas do ímpeto prometeico frente ao desenvolvimento científico e às altas expectativas de sucesso na manipulação da natureza.

Viktor Frankl, Psiquiatra Judeu sobrevivente de campos de concentração nazistas.

Nos relatos de nossa época, encontramos também biografias e estudos perturbadores que demonstram o caminho que podemos trilhar ao esquecer os nossos valores civilizacionais. “Em Busca de Sentido”, escrito pelo médico Viktor Frankl, mostra a existência dentro de um campo de concentração nazista, e contextualiza os grandes crimes que marcaram o nascimento da Bioética contemporânea.

Para desenvolver a empatia e a compreensão de nossos idosos, sempre envolvidos em debates Bioéticos quando se fala sobre utilitarismo e valor da vida humana, sugiro “O Velho e o Mar”, de Hemingway. E, por que não, “Rei Lear”, de Shakespeare?

Crônicas interessantes e relatos de médicos nos momentos mais dramáticos da existência humana são capazes de sensibilizar o mais árido coração. “Sinto Muito”, do médico português Nuno Lobo Antunes, “Mortais” de Atul Gawande e “O Médico”, de Rubem Alves, são bons exemplos.

6. A História

Fala-se muita besteira a respeito de Hipócrates. Muitos acusam ou elogiam sem nunca ter lido uma obra hipocrática sequer. Alguns acham realmente que a discussão ética nasceu com a bioética – gosto de pensar que estes são poucos, mas tenho a forte impressão de que são Legião!

Julgo que as obras hipocráticas e galênicas são indispensáveis, todas elas.

Visões gerais do passado e da validade dos fundadores da ética médica podem ser obtidas em grandes historiadores modernos e contemporâneos como Ludwig Edelstein, Owsei Temkin, Albert Jonsen, Allasdair McIntyre e Gary Ferngren. Em sua obra Fundamentos de Bioética, Diego Gracia também apresenta um panorama histórico e filosófico valioso.

Diego Gracia, discípulo do filósofo espanhol Xavier Zubiri. Filósofo e Médico.

Aproveito também para falar das línguas necessárias. O mínimo que se espera de um estudioso brasileiro da Bioética é o conhecimento de inglês, português e espanhol, além de uma boa disposição em aprender algo de grego e latim, se ousar passear pela história. Ler em espanhol a obra de Diego Gracia - aprendiz de Xavier Zubiri, médico da Real Academia Espanhola de Medicina e um dos maiores bioeticistas vivos do mundo - é elemento obrigatório. O espanhol também possibilitará a leitura de outros gigantes das Humanidades Médicas como Pedro Laín-Entralgo.

7. Os Fundamentos

Um volume básico e geral é “Para Fundamentar a Bioética” de Ferrer, que mostra uma visão bem geral deste amplo campo de estudo.

Na área específica de Filosofia da Medicina, uma boa introdução é o livro escrito pelo meu amigo James Marcum, da Baylor University: “Humanizing Modern Medicine: An Introductory philosophy of medicine”. Marcum aprendeu diretamente de dois grandes intelectuais: Bernard Lonergan e Thomas Kuhn.

Além da obra já citada de Diego Gracia, de grande valor para o estudo da história e dos fundamentos da Bioética, cabe lembrar dos livros fundamentais de cada escola de pensamento. “Fundamentos de Bioética” de Tristram Engelhardt e “Fundamentos de Bioética Cristã Ortodoxa”, do mesmo autor, são obras básicas, assim como a “bíblia” do Principialismo, “Princípios de Ética Biomédica”, de Beauchamp e Childress. A escola baseada em Virtudes conta com as obras do pai da Ética Médica contemporânea, o saudoso Edmund Pellegrino: “For the Patient’s Good”, “The Virtues in Medical Practice” e “The Christian Virtues in Medical Practice”. A escola personalista dos católicos é bem representada no Brasil pela obra em dois volumes do Cardeal Elio Sgreccia, “Manual de Bioética”, e encontram-se diversos outros livros escritos também por autores protestantes que lançam fundamentos éticos nas questões ligadas à vida humana, como o livro Ética Cristã de Norman Geisler e a série Bioética, publicada pela Editora Cultura Cristã.

Na categoria curiosidade histórica, recomendo o livro “Bridge to the Future”, o primeiro livro de Bioética do mundo - muito citado e pouco lido - escrito por Van Renselaer Potter. Como foi lançado pela Loyola recentemente, deverá ser lido por muitos daqueles que sempre o elogiaram de ouvir falar.

Uma necessidade negligenciada por muitos, é beber nas melhores fontes de nossa Alta Cultura. Lembro até hoje das palavras que ouvi do médico-filósofo Diego Gracia num Congresso Brasileiro de Bioética: “o melhor livro de bioética do mundo foi escrito há tempos, por Aristóteles. É Ética a Nicômaco.” Não diria que é o melhor, mas que é indispensável. Como eu esperava, alguns riram de forma rude do convidado estrangeiro, mostrando o pior lado do ódio que uma fração expressiva de nosso povo nutre à inteligência e à cultura.

8. A Biopolítica

Bioética e política estão ligadas profundamente. Não se trata de bioética sem as devidas considerações políticas, jamais.

Fundamentos do pensamento político incluem “A República”, de Platão; “Política”, de Aristóteles; “Arte da Guerra”, de Sun Tzu; “O Príncipe”, de Maquiavel, ao lado da crítica demolidora escrita por Olavo de Carvalho, de quem eu recomendo também “A Nova era e a Revolução Cultural”, “Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão” (na verdade escrito por Schopenhauer e anotado por Olavo de Carvalho), “O Mínimo que Você Precisa Saber Para Não Ser um Idiota”, “Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial” e toda a série de comentários políticos, filosóficos e culturais publicada pela Vide. Do ponto de vista psiquiátrico e estratégico, recomendo especialmente a obra de Andrew Lobacewski, “Ponerologia Política”, e a obra de Heitor de Paola, “Eixo do Mal Latino-Americano”, esta última mais estratégica do que psiquiátrica, embora também tenha sido escrita por um especialista da área.

Algumas obras que ajudam a contextualizar os conflitos ideológicos globais e entender as bases do pensamento político, estratégico e econômico que interferem sem parar na Bioética são: “Política da Prudência”, de Russel Kirk; “O Que é Conservadorismo”, de Roger Scruton; “Rules for Radicals”, de Saul Alinski; “Estratégia e Hegemonia Socialista”, de Ernesto Laclau, etc.

Um autor que ainda é pouco conhecido na Academia brasileira é Eric Voegelin, que trata de história e política com maestria, e que oferece uma nova forma de avaliar e julgar a cultura e a política. Visões de grande interesse e relevância incluem também os escritores romenos Vladimir Tismaneanu e Gabriel Liiceanu, com seus relatos e estudos assustadores do potencial destrutivo do ser humano e das suas distopias.

Na política externa, tão importante quanto à política interna, para compreender o Brasil, sugiro as obras e escritos de Paulo Roberto de Almeida, um diplomata na linha tradicional de excelência do Itamaraty, da época anterior ao desmanche feito pelo Partido dos Trabalhadores e que agora retorna com o devido reconhecimento ao Instituto Rio Branco.

9. Estudo de acordo com problemas

E enquanto se adquire a fundação que permitirá crescer em conhecimento, deve-se estudar muito conteúdo relacionado ao seu interesse específico. Aborto, Transumanismo, Eugenia, Clonagem, Ética Profissional e Corporativismo, Questões de Autonomia do Paciente, Religião e Saúde, Saúde Pública e o que mais interessar.

Comece elaborando uma abrangente e extensa bibliografia, sabendo de cada obra o autor, quando foi escrita, o principal tema tratado e as conclusões. E leia, mesmo que pouco, todos os dias.

Uma excelente para quem deseja encontrar uma bibliografia prévia dividida por assuntos é o portal do Center for Bioethics and Human Dignity, que oferece uma diversificada e valiosa lista de fontes bibliográficas divididas por assuntos de interesse. Navegue em https://cbhd.org/category/bibliography e descubra por si mesmo!

E, obviamente, nada substitui uma visita à biblioteca de um centro de estudos ou à biblioteca privada de um grande estudioso.

Para manter-se informado nos mais diversos temas, um recurso importante é o portal de notícias bioéticas, www.bioethics.com, também organizado pelo Center for Bioethics and Human Dignity. Creio ser um dos mais atualizados centros de notícias da área.

10. Periódicos

Além de livros e portais especializados em Bioética, há que se buscar as fontes de artigos de maior qualidade no mundo. Alguns dos melhores periódicos seriam os seguintes: Hastings Report, Kennedy Isntitute of Ethics Journal, American Journal of Bioethics e Journal of Medicine and Philosophy. Há muitos outros, específicos para temas como Neuroética, Comitês de Ética em Pesquisa etc.

11. Meta-Estudo

Há livros e cursos que tratam especialmente de como estudar e de como desenvolver uma vida intelectual. Recomendo “A Vida Intelectual”, de Sertilanges; “Como Ler Livros”, de Mortimer Adler; e cursos ministrados por Olavo de Carvalho incluindo: “Como tornar-se um Leitor Inteligente”, “Introdução ao Método Filosófico” e “As Bases da Auto-Educação”.

Em relação ao volume de estudo, uma expectativa adequada seria a de ler pelo menos uns cinquenta livros por ano. Algo bem razoável para atingir um padrão minimamente adequado em cerca de dez anos de estudo.

E antes que alguém comece a achar que a lista está muito grande, é necessário saber que o volume de publicações em Bioética aumenta vertiginosamente a cada ano. Portanto, mãos à obra!

Prof. Dr. Hélio Angotti Neto é Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas), Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, Visiting Scholar da Global Bioethics Education Initiative do Center for Bioethics and Human Dignity em 2016, Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).





[1] SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A Vida Intelectual: Seu espírito, suas condições, seus métodos. São Paulo: É Realizações, 2010.
[2] CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2014.
[3] JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética. Sobre a Prática do Princípio Responsabilidade. São Paulo: Paulus, 2013.