A formação de uma intelectualidade real é dever da atual geração
Em sua aula de número 503 do Curso Online de Filosofia[1], Olavo de Carvalho relembra um artigo escrito em 1999, sobre os equívocos de um dos muitos imbecis coletivos daquele momento. Nesse artigo, Olavo explica o be-a-bá do que é o Trivium e o Quadrivium e a sua importância para a formação intelectual.[2]
O Trivium é a antiga metodologia que iniciava o neófito na vida intelectual por meio do ensino da Gramática, para depois avançar pela Lógica e alcançar a Retórica.[3]
Nessa aula 503 do curso online semanal, que começou em 2009, Olavo de Carvalho explica que há um atual dever de se colocar contra a falsa intelectualidade que vive de pompa e circunstância e carece de real conteúdo cultural e moral. Segundo ele, cabe à atual geração preencher a lacuna criada pelas hostes de imbecis coletivos que utilizaram por décadas sua inteligência para tornar cada vez mais burro e incapaz o ambiente. Aliás, este contexto de incapacidade é o que há de melhor e mais conveniente para que falsos intelectuais possam transmitir a imagem de erudição e pertinência que tanto gostam de emular. Tudo corria muito bem, obrigado, até o momento em que Olavo lançou seu Imbecil Coletivo nos anos noventa, implodindo a credibilidade dos grandes “luminares” da Academia brasileira e expondo o cenário geral de hipocrisia e inépcia.[4]
Fontes para bons estudos não faltam, mesmo que seja difícil encontrar bons mestres contemporâneos. Logo, não há desculpas para quem sinceramente queira se aprimorar intelectualmente. Por aí estão os grandes mestres de todos os tempos, desde Aristóteles[5] e Quintiliano até os muito mais contemporâneos Mortimer Adler e Chaim Perelman.
E também há que se estudar a erística, isto é, a arte de argumentar trapaceando por meio de recursos psicológicos. Afinal de contas, vivemos no Brasil, se é que o leitor me entende, e expressiva fração da Academia não passa de macaqueação maliciosa.
Novas e Antigas Bases para uma Educação Liberal
Hoje, segundo Olavo de Carvalho, a retórica poderia ser estudada como uma ciência da comunicação, unindo o clássico estudo da pessoa, do discurso e da audiência ao estudo das novas informações baseadas em neurociências, por exemplo, formando um rico cenário científico e cultural. Contudo, tal estudo não se faz presente nos currículos brasileiros e, ousaria dizer, tampouco se encontra na enorme maioria dos currículos mundo afora.
E antes mesmo de se aprofundar na retórica, seria necessário adquirir a adequada bagagem cultural para realizar uma boa interpretação textual, em outras palavras, seria necessário deixar o analfabetismo funcional que assola o Brasil para trás.
Tal capacidade interpretativa seria justamente a manipulação dos signos e símbolos, elementos básicos da cultura. Signos seriam todos os elementos representativos da realidade que nos chegam pelos sentidos e são trabalhados pela imaginação. Significados seriam justamente as explicações verbais desses signos, isto é, símbolos que explicam outros símbolos com o intuito de torna-los permeáveis à nossa inteligência. Por fim, para completar a tríade semiótica, existem os referentes, que são justamente aquelas coisas às quais se referem os signos.
Um cientista, um médico ou um escritor destituído de cultura, isto é, desprovido de um rico arsenal simbólico e da capacidade de interpretar tal arsenal, torna-se um idiota, subespécie de analfabeto funcional incapaz de tocar os referentes por meio dos signos presentes na realidade.
Com um rico imaginário povoado de símbolos expressivos capazes de transmitir apreensões verídicas e complexas da realidade, o médico pode ousar compreender o contexto de vida e a história de seus pacientes como pessoas concretas que são. E com tal capacidade, surge de forma qualificada o substrato que poderá ser trabalhado pela boa retórica que, segundo Aristóteles, é a arte de defender o que é justo.
Quando olhamos os currículos médicos e os perfis de egresso atuais – meras cópias das Diretrizes Curriculares, por sua vez produzidas durante o governo do Partido dos Trabalhadores no Brasil para promover um programa de trabalho escravo internacional (Programa Mais Médicos para o Brasil) e repassar dinheiro à ditadura cubana dos Castros –, o que se observa é a justa descrição da necessidade de humanizar a assistência à saúde e promover o ensino de uma comunicação eficaz entre médico e paciente desde a graduação. O grande problema está justamente no como fazer isso.
Quantos professores médicos estudaram não somente a retórica de Aristóteles, mas a Instituição Oratória de Quintiliano e acrescentaram a tudo isso as lições contemporâneas de Perelman e Mortimer Adler? E quem uniu isso tudo ao estudo da Teoria dos Jogos e dos estudos mais recentes de como respondemos a tentativas de manipulação? Quantos professores médicos estudaram a erística descrita por Schopenhauer e os automatismos trabalhados pela Programação Neurolinguística? Ouso dizer que alguns o fizeram, mas não o suficiente para educar de forma minimamente adequada os mais de 30.000 alunos que em breve serão formados por mais de 300 escolas médicas em todo o país.[6]
Apelar para professores da área de humanas tampouco resolve o problema, pois carecem da real vivência junto aos pacientes e seus problemas. Por mais que possam ajudar, não seriam totalmente eficazes em educar uma nova geração de médicos para o ato médico integral. Ademais, uma fração expressiva desses professores não médicos da área de estudos humanísticos encontra-se devotada a projetos ideológicos revolucionários que pouco acrescentam ao bem do paciente, isso quando não são completamente deletérios para a saúde física e mental da humanidade.
E creiam, há sim a necessidade de estudos sérios sobre comunicação e sobre seu uso eficaz e correto, pois como diria Marcos Fábio Quintiliano,
VI. 1. Há também regras próprias para fala e as próprias para quem escreve. A linguagem fundamenta-se num sistema, no tempo, na autoridade e no uso. A analogia e às vezes também a etimologia sustentam o sistema. Certa grandeza antiga e, para dizê-lo assim, uma religiosidade lhe conferem valor.
2. A autoridade costuma ser buscada junto aos oradores e aos historiadores (...): quando na eloquência seguem em vez do sistema, a alternativa dos maiores expoentes, ou ocorre o desvio honesto de acompanhar os grandes mestres.[7]
Isso tudo aponta para o pré-requisito de um bom estudo da retórica: uma aprendizagem profunda da lógica, da dialética e da poética (gramática, conforme os estudiosos do Trivium). Na poética, incluindo as grandes narrativas culturais, estarão presentes os exemplos dos grandes mestres da linguagem e da comunicação.
O Valor de uma Educação Liberal na Medicina
Sem esse arcabouço intelectual, como pode o médico lograr sucesso na compreensão do paciente que está à sua frente pedindo ajuda? Como poderá o médico realmente convencer e educar com qualidade seu paciente, vencendo as barreiras culturais e educacionais? Como poderá promover o bem por meio da linguagem, pois como diria Aristóteles, a retórica é “útil porque a verdade e a justiça são por natureza mais fortes que os seus contrários”.[8]
Nas palavras do filósofo Olavo de Carvalho,
A verdade está nas coisas e fatos. Mesmo não dita, ela nos fala. Já a mentira existe somente na voz humana e pela força da voz humana. Daí a necessidade de gritá-la e repeti-la sob mil formas variadas, revesti-la da autoridade do número, reforçá-la pelo poder do dinheiro e, pelo tom de coisa respeitável, dar-lhe ares de ciência certa.[9]
A verdade dos fatos aliada à uma intelectualidade treinada para sondá-la e um treino discursivo adequado para transmiti-la compõem a essência de um bom discurso retórico, capaz de desmascarar as mais elaboradas falsidades e injustiças.
Se os amargurados relativistas vierem contra argumentar falando mal da retórica, devolve-se a eles a defesa do próprio Aristóteles:
E, se alguém argumentar que o uso injusto desta faculdade da palavra pode causar graves danos, convém lembrar que o mesmo argumento se aplica a todos os bens exceto à virtude, principalmente aos mais úteis, como a força, a saúde, a riqueza e o talento militar; pois, sendo usados justamente, poderão ser muito úteis, e, sendo usados injustamente, poderão causar grande dano.[10]
É claro que a enorme maioria dos médicos aprende a se comunicar na forja da vida, nas inúmeras vivências ao lado de mestres e pacientes. Contudo, tal vivência qualificada e tornada agudamente consciente por meio da cultura, pode intensificar a aprendizagem de uma comunicação realmente eficaz em muito menos tempo, com muito mais qualidade. Eis um papel educacional das Humanidades Médicas que faria muito bem à nossa geração de professores e aprendizes médicos.
Hélio Angotti Neto
27 de janeiro de 2020
Brasília, DF
[1] CARVALHO, Olavo de. Curso Online de Filosofia Aula 504. 25 de janeiro de 2020. Internet, https://www.seminariodefilosofia.org
[2] CARVALHO, Olavo de. “Falsíssimo Veríssimo”. Internet, http://olavodecarvalho.org/falsissimo-verissimo/
[3] JOSEPH, Irmã Miriam. O Trivium. As Artes Liberais da Lógica, Gramática e Retórica. São Paulo, SP: É Realizações, 2002.
[4] CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2018.
[5] ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo, SO: WMF Martins Fontes, 2012.
[6] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Radiografia das Escolas Médicas do Brasil. Internet,http://webpainel.cfm.org.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=Radiografia%20do%20Ensino%20médico%2FRadiografia%20do%20Ensino%20médico.qvw&host=QVS%40scfm73&anonymous=true
[7] QUINTILIANO. Instituição Oratória. Tomos I a IV. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2015, p. 127.
[8] ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo, SO: WMF Martins Fontes, 2012, p. 10.
[9] CARVALHO, Olavo de. Publicado em rede social no dia 25 de janeiro de 2020 (Facebook).
[10] ARISTÓTELES. Op. cit., p. 11