sexta-feira, 2 de junho de 2023

NIILISMO MÉDICO

 O cenário científico na medicina e na indústria farmacêutica está tão catastrófico em termos morais e metodológicos que tem elicitado alguns comentários nada elogiosos. John Ioannidis, um dos grandes epidemiologistas da atualidade, publicou um artigo cujo título é: “Por que a maior parte dos achados de pesquisa são falsos.”[1]

John Ioannidis

 

Horton, editor científico de um dos grandes periódicos, afirma que a ciência médica contemporânea está “caminhando rumo às trevas”, “afligida por estudos com amostraas pequenas (baixo poder estatístico), pequenos efeitos, análises exploratórias inválidas e conflitos de interesse flagrantes, junto com uma obsessão pela busca de tendências da moda de importância questionável.”[2]

 

Jacob Stegenga

Jacob Stegenga, professor do Departamento de História e da Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge que se dedica ao estudo da medicina, aborda a ideia do niilismo médico em sua obra Medical Nihilism[3], que compõe uma interessante trilogia não intencional sobre falcatruas da ciência médica junto com as obras de Peter Gøtzsche e Jon Jureidini e Leemon McHenry.

Segundo Stegenga, ao longo da história observa-se três tendências que marcam o niilismo médico: o fato de muitas doenças não terem tratamento, a inefetividade de muitos tratamentos médicos e a influência corruptora do dinheiro na medicina.

 

Niilismo Médico, de Stegenga

 

Stegenga mostra como, por causa do interesse da indústria e de médicos e pesquisadores corrompidos, a metodologia científica na saúde é sutilmente deturpada para comprovar o improvável. Nem mesmo o padrão máximo de qualidade das evidências científicas, que são as meta-análises, escapa do olhar aguçado de Stegenga, que denuncia elementos de subjetividade incontornáveis na execução desses estudos e, portanto, sujeitos a segundas intenções e conflitos de interesse.

O autor também aborda como distorções podem ocorrer ao medir efetividade de um medicamento, verificar riscos à segurança do paciente e publicar artigos manipulados e enviesados.

Não há método científico que sobreviva ao fenômeno demasiadamente humano da corrupção, e quando essa corrupção atinge a saúde e a ciência, obtém-se a terrível mistura de autoridade científica e medo do adoecimento, gerando um enorme poder coercitivo.

A ênfase nos desvios da pesquisa científica em saúde pode ser vista por muitos como um traço pessimista, que nega os grandes avanços e benefícios da medicina ao longo dos séculos e, principalmente, nos últimos dois séculos com o avanço da ciência e da técnica. Nenhum desses autores já citados assume uma postura pessimista de fato, pois todos reconhecem a evolução da medicina.  Contudo, não se pode negar que o realismo necessário para lidar com o sofrimento alheio e com a realidade dos fatos requer uma visão bem atenta para os crimes da indústria farmacêutica, dos médicos e demais profissionais da saúde que venderam suas almas no altar da ganância e da crueldade.

A percepção das falhas do ser humano e de como elas podem destruir a vocação médica nos acompanha desde os primórdios.

Não é por acaso que um dos apóstolos do próprio Cristo lamenta profundamente o estado da humanidade ao exclamar que 

“Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está em seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos.”[4]

E mesmo séculos antes de Cristo, os médicos hipocráticos já se preocupavam com a ganância demasiada que poderia destruir o caráter humanístico da profissão médica, como se pode deduzir da leitura de um dos trechos da obra Preceitos:

“(...) se começar por tratar dos honorários você dará a impressão a quem está sofrendo de que, se não houver acordo, irá embora e o abandonará, ou que o negligenciará e não oferecerá algo para a situação presente. Não é preciso, portanto, cuidar da fixação dos honorários, pois consideramos sem utilidade tal preocupação para quem está atormentado, principalmente no caso de doença aguda. Ela não estimula o bom médico a buscar o que é vantajoso: adquiri mais reputação. É melhor, portanto, censurar quem está salvo do que extorquir dinheiro dos que estão em perigo de morte.”[5]

É curioso como até os dias de hoje, é boa prática médica o atendimento emergencial imediato, independente do estado financeiro do paciente.

Além da crítica à ganância e à corrupção maldosa de muitos homens, não era rara a crítica da distorção da profissão médica em específico, como se observa na obra Libre de Contemplació de Raimundo Lúlio, no século XIII:

“Vemos que os médicos do corpo, Senhor, andam bem vestidos e bem montados em cavalos, e juntam riquezas e tesouros graças aos grandes enganos que causam a seus doentes, os quais enganam de todas as maneiras, pois se gabam de conhecer a doença que não conhecem. Além disso, eles prolongam, Senhor, as doenças nos doentes, para que tenham mais ganhos. E eles dão aos doentes, Senhor, xaropes, letovaris e outras coisas, para que tenham parte do lucro do que fazem os especialistas nas coisas que vendem aos doentes.”[6]

Portanto, não há que se falar em um pessimismo com o nosso tempo, mas sim, de um realismo responsável e prudente com o caráter do ser humano que, de posse de instrumentos científicos e técnicos de grande impacto, pode causar enormes danos à vida caso se entregue à corrupção e à destruição de sua consciência. Uma indústria farmacêutica corrompida foi somente o instrumento que tornou possível a manifestação da maldade que já habitava o coração apodrecido de muitos falsos médicos, pois quem trabalha contra a vida humana, jamais poderá ser realmente chamado de médico por alguém em sã consciência.

Diante desse realismo responsável, cabe ao estudante e ao profissional da área da saúde se preparar para de fato analisar a ciência de forma crítica, e jamais ler a literatura preparada por laboratórios do riquíssimo mercado farmacêutico com olhos ingênuos e com a mente despreparada.

O livro de Jacob Stegenga é uma dessas obras capazes de tirar escamas de nossos olhos e nos fazer a vida como ela é, por meio de uma saudável suspeição científica e filosófica.

 

PREPARANDO O TERRENO

Como se preparar para enfrentar um ambiente tão enganoso e repleto de conflitos de interesse?

Do ponto de vista intelectual eu sugiro a leitura e o estudo de livros que podem ser considerados introdutórios, metodológicos, filosóficos e, por fim, críticos.

Os livros introdutórios têm o objetivo de apresentar ao leitor os conceitos mais básicos da Medicina Baseada em Evidências e, normalmente, são abordados no nível de graduação.

Epidemiologia Clínica do Fletcher, que está em sua sexta edição, pode ser considerado o livro básico para graduações em saúde, oferecendo ao leitor um arcabouço básico de conhecimentos e conceitos. Seus capítulos são centrados em questões clínicas como Diagnóstico, Prevenção, Tratamento e Prognóstico, além de assuntos ligados à reflexão sobre Causalidade, Resumo de Evidências e Gestão da Informação. Nos capítulos, os diversos estudos possíveis na saúde são abordados junto aos conceitos que os amparam.

Delineando a Pesquisa Clínica do Hulley, estrutura-se sobre o desenho de estudo propriamente dito, com capítulos sobre coorte, ensaios clínicos randomizados e testes (Diagnóstico) entre outros, além de uma seção inicial sobre instrumentos básicos e uma terceira seção sobre implementação dos estudos incluindo questões éticas, financiamento etc.

Como Ler Artigos Científicos de Trisha Greenhalg é um aintrodução ao assunto voltado para a leitura e compreensão dos artigos, oferecendo também alguns conceitos básicos.

Além da leitura desses livros básicos, algumas ações podem ajudar a consolidar os conhecimentos e fundamentá-los para voos mais altos.

Fazer um curso básico de bioestatística, focado nos conceitos essenciais, sem a necessidade de realizar cálculos avançados, mas abordando os cálculos que permitem a compreensão da lógica por trás dos números, é um excelente começo. Hoje, com tantas opções na internet e em diversas pós-graduações, não será difícil encontrar conteúdo.

Todavia, talvez o ponto mais importante seja participar regularmente de um clube de revista para discussão a fundo e crítica de artigos científicos. Precisa colocar a “mão na massa” e praticar a crítica, colocando em ação todas as ferramentas e conceitos estudados ao lado de pesquisadores e médicos mais experientes e, acima de tudo, não comprometidos com algum esquema de corrupção científica, o que talvez seja um dos elementos mais difíceis de determinar no começo da caminhada de estudos.

Oportunidades de fazê-lo surgirão ao longo da trajetória de estudos em escolas médicas, cursos de Mestrado e Doutorado e Programas de Residência Médica com bons professores e preceptores. 

Se esses passos iniciais forem bem executados, o próximo passo poderá ser dado com relativa facilidade: continuar aprofundando os estudos e as práticas ao longo do tempo ao buscar leituras sobre metodologia, filosofia da medicina e crítica científica, que se complementarão formando um amplo cenário intelectual e enriquecendo o imaginário.

Os livros metodológicos têm o objetivo de aprofundar os conhecimentos obtidos nos livros e nas práticas mais básicas. Devem ser estudados em paralelo com os livros filosóficos e de crítica, ao longo de alguns anos. Alguns dos muitos livros metodológicos incluem: The Cochrane Handbook for Systematic Reviews; Evidence-Based Healthcare and Public Health, do Muir Gray; Diretrizes para Utilização da Literatura Médica, do Journal of the American Medical Association; Introdução à Pesquisa Qualitativa, do Fink e Compreendendo a Pesquisa Clínica, de Lopes e Harrington. Outras leituras importantes incluem artigos diversos sobre Medicina Baseada em Evidências publicados em séries nos periódicos científicos mais renomados (embora não livres de certos conflitos de interesse), como um artigo relativamente recente abordando o uso de estudos observacionais em revisões sistemáticas na falta de evidências adequadas obtidas por meio de Ensaios Clínicos Randomizados.

Os livros filosóficos têm o objetivo de fundamentar a aplicação prática das evidências e enriquecer o panorama ético da profissão, indispensável para que o esforço científico não vire um pesadelo imoral de venda de evidências enviesadas. Alguns dos livros têm o objetivo de causar uma reflexão séria sobre o que é realmente a ciência, e até onde ela chega, e claramente desfazem certas expectativas religiosas mal direcionadas para a ciência. Alguns que eu indico incluem: A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn; A Lógica da Pesquisa Científica, de Karl Popper; Contra o Método, de Paul Feyerabend; Filosofia das Ciências, de Pascal Nouvel; O que é Ciência, Afinal?, de Allan Chalmers; O Princípio Responsabilidade, de Hans Jonas; Diagnosis: Interpreting the Shadows, de Pat Croskerry; Care & Cure, de Jacob Stegenga e as obras de Edmund Pellegrino: Para o Bem do Paciente, The Virtues of Medical Practice, The Christian Virtues in Medical Practice e The Philosophy of Medicine Reborn.

Por fim, as obras de crítica científica, cultural e metodológica aguçam a capacidade analítica e tiram algumas escamas dos olhos. Algumas sugestões incluem: Medicamentos Mortais e Crime Organizado, de Peter Gøtzsche; The Illusion of Evidence-Based Medicine, de Jon Jureidini e Leemon McHenry; Anatomia de uma Epidemia, de Robert Whitaker; Medical Nihilism, de Jacob Stegenga; Common Mistakes in Meta-Analysis and How to Avoid Them, de Borenstein; e Falso Positivo, de Theodore Dalrymple.

Pessoalmente, comecei a escrever livros em algumas áreas após vários anos estudando Filosofia e Bioética, além de Medicina Baseada em Evidências e Medicina. O que provocou a necessidade de começar a escrever e publicar foi um artigo de 2012 sobre o que os autores chamaram de “Abortamento Pós-Nascimento”, que nada mais é do que assassinato infantil com palavras elegantes. Era de uma sutileza e de um horror tão grandes que eu me senti compelido a responder. Foi o meu primeiro livro: A Morte da Medicina, que tem uma ênfase de crítica cultural. Outros livros de crítica cultural que publiquei incluem Ética & COVID: Ciência, Bioética e Liberdade em Tempos de Pandemia; Disbioética Volume I: Reflexões sobre uma estranha ética; Disbioética Volume II: Novas Reflexões sobre uma estranha ética; e Disbioética Volume III: O Extermínio do Amanhã.

Mas é preciso ir além do trabalho negativo da crítica. Outra vertente do que publiquei trata justamente do resgate cultural, e inclui os livros A Tradição da Medicina e A Arte Médica: De Hipócrates a Cristo.

Por fim, escrevi um livro que apresenta minha perspectiva inicial sobre Bioética e Filosofia da Medicina, Bioética: Vida, Valor e Verdade.

Se o ambiente editorial está repleto de erros, o mínimo que temos que fazer é apontar o que ainda guarda certa qualidade e tentarmos todos fazer a nossa parte, mudando esse cenário.

Deixo o convite para que leiam, compreendam melhor a ciência médica e apliquem o conhecimento na prática, pois, se adquirimos o conhecimento na solidão do estudo, é no convívio e na batalha que enfrentaremos no mundo que nosso caráter é forjado. E Deus sabe que, diante da derrocada que se observa, precisamos de muitas pessoas com um caráter forte como poucas vezes se viu em nosso país.

 




[1] John J. Ioannidis. Why most published research findings are false. PLoS Med, 2005; 2(8): e124.

[2] R. Horton. Offline: what is medicine’s 5 sigma? The Lancet. 2015; 385: 1380.

[3] Jacob Stegenga. Medical Nihilism. Oxford: Oxford University Press, 2020.

[4] Romanos 3.9-18.

[5] Wilson A. Ribeiro Jr. Preceitos. In: Henrique F. Cairus; Wilson A. Ribeiro Jr. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, p. 212.

[6] Ramon Llull. Libre de Contemplació. In: Obres Essencials II. Barcelona: Editorial Selecta: 1960, p. 347.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O crime perdura porque compensa

Como é que em tempos de ciência avançada – ou pelo menos assim os pesquisadores que gastam suas vidas pesquisando e recebendo polpudas verbas gostam de anunciar e pensar, sempre colocando-se como protagonistas desse mesmo tempo iluminado – tantas falcatruas e distorções podem prosperar?

Temos informação, temos comunicação, temos métodos estatísticos, temos teorias e temos tecnologias fantásticas! O ideal de controle da natureza pela ciência moderna parece cada dia mais real e mais concreto, difundido e efetivo.

O que nem todos realmente percebem – ou se percebem, calam-se pelo receio de atrair descrença, pois a realidade é grotesca e esdrúxula demais – é que o mesmo poder da técnica e da ciência que controla a natureza também controla o ser humano, diretamente por meios coercivos ou indiretamente por meio da influência ideológica e econômica.

Os avançados instrumentos da técnica e da ciência são exatamente isso que propõem ser: instrumentos. Um instrumento altamente efetivo em mãos cruéis será altamente efetivo em causar o mal, e os maus jamais receiam em aumentar o próprio poder e se impor descaradamente sobre o próximo.

As técnicas utilizadas para mentir utilizando estatísticas e metodologias científicas na saúde são refinadas e muito bem elaboradas. Exigem intelectos e preparo avançados. Ouso dizer que a maioria dos médicos não está preparada para analisar criticamente e profundamente um artigo científico, mas que a totalidade ou quase totalidade daqueles médicos que trabalha para a indústria farmacêutica é extremamente bem preparada.

E como alerta o próprio Cristo, se nossos olhos forem trevas, que grandes trevas serão. O preparo científico e técnico utilizado para ocultar, mentir e distorcer gera um produto quase que impermeável à crítica da maioria dos médicos, por mais bem-intencionados que sejam.

O livro de Peter Gøtzsche traz uma série de denúncias e bastidores do jogo tantas vezes imundo da indústria farmacêutica, mas não é o único. Na verdade, há todo um mercado literário muito técnico e específico que explora as falcatruas da ciência. Um livro mais recente que enriquece a leitura de Gøtzsche foi escrito por Jon Jureidini e Leemon McHenry, e se chama “A Ilusão da Medicina Baseada em Evidências: expondo a crise de credibilidade na pesquisa clínica”. 

Jureidini é médico professor universitário de psiquiatria e pediatria na Austrália e trabalha com pesquisa. McHenry é um filósofo americano. Juntos eles ousam remexer no monstro sagrado da medicina contemporânea: a medicina baseada em evidências.

Prof. Dr. Jon Jureidini

Somos lembrados de fatos perturbadores. Medicamentos são lançados no mercado ainda com muitas dúvidas e, no fim das contas, todos nos tornamos cobaias de fase IV da pesquisa clínica, onde é feita a vigilância farmacêutica pós-comercialização. Não são tão raros os exemplos de medicamentos aprovados e vendidos aos milhões que geraram mortes e deformidades e tiveram que ser removidos do mercado ou ter suas indicações clínicas completamente revistas.

As próprias narrativas da sociedade são compradas e manipuladas, pois representantes de pacientes são muito bem pagos para explicar o sofrimento dos pacientes, pressionando justamente a prescrição deste ou daquele medicamento “milagroso”, e médicos especialistas tratados como referências de determinados assuntos – ou doenças – introduzem novos tratamentos em eventos patrocinados pela indústria que reúnem milhares de médicos ávidos por notícias; são os famosos Keynote Speakers da indústria.

Surfando na crista de uma onda de credibilidade conquistada por grandes descobertas que revolucionaram a saúde mundial, como o antibiótico, a imunização, os transplantes auxiliados pelo uso de imunossupressores e as cirurgias minimamente invasivas, hoje a indústria tem pleno sucesso em lucrar, mas muitas vezes falha completamente em gerar valor para a humanidade.[1]

Assim como ocorre no livro de Gøtzsche, Jureidini e McHenry trazem diversos exemplos de medicamentos que geraram grandes multas, mas lucros estrondosos. Paroxetina, por exemplo, da Glaxo Smith Kline já levou a uma multa de 3 bilhões de dólares por falhar em demonstrar eficácia e gerar sérias dúvidas acerca da segurança de seu uso, mas foi bem vendida graças em parte a um artigo encomendado pela própria indústria e escrito por um ghostwriter, um escritor fantasma especializado em redigir artigos científicos de forma agradável aos interesses da farmacêutica. É claro que o artigo é oficialmente assinado por um daqueles médicos especialistas famosos que dá palestras em congressos e recebe uma enormidade de incentivos, leia-se dinheiro, por sua “consultoria”.[2]

Técnicas semelhantes, incluindo uso de redatores fantasmas, dados distorcidos, interpretações estatísticas errôneas, ocultação de dados incluindo efeitos adversos graves e mortes e seleção indevida de desfechos clínicos, foram utilizadas em outras situações, segundo os autores, incluindo medicamentos como citalopram e escitalopram para depressão em adolescentes, rofecoxib para controle da dor em pacientes com artrite, gabapentina para condições psiquiátricas e dor, fenfluramina e fentermina para perder peso, estrogênio e progesterona para combater o envelhecimento, rosiglitazona para diabete não insulino-dependente e oxicodona para controle da dor.

Gøtzsche também exibe uma série de exemplos, que denomina de Hall da Vergonha das grandes empresas farmacêuticas. O problema não consiste nas pesadas multas pagas, mas sim, no fato de que o lucro supera em muito a penalidade. Logo, o crime compensa!

A Pfizer, por exemplo, pagou 2,3 bilhões de dólares em 2009 por fazer propaganda enganosa a respeito do antibiótico Zyvox, entre outras coisas. A Novartis pagou 423 milhões de dólares em 2010, por pagar propina para que médicos prescrevessem seus medicamentos. A Sanofi-Aventis pagou mais de 95 milhões de dólares para encerrar acusação de fraude em 2009. A Glaxo-Smith-Kline pagou 3 bilhões de dólares em 2011 por ocultar dados de segurança e pagar propinas a médicos. A AstraZeneca pagou 520 milhões de dólares e, 2010 para encerrar um caso de fraude por comercialização ilegal. A Johnson & Johnson foi multada em 1,1 bilhão de dólares em 2012. Por ocultar riscos de seu medicamento risperidona. A Merck pagou 670 milhões de dólares por fraude contra o Medicaid em 2007, incluindo propinas a médicos. Eli Lily pagou 1,4 bilhão de dólares em 2009 e Abbott pagou 1,5 bilhão de dólares em 2012. Os métodos criminosos são repetitivos, embora elaborados e muito organizados, e revelam que:

“O crime corporativo é comum e que os delitos são implacavelmente executados, com gritante desrespeito pelas mortes e outros danos sérios causados por eles. (...) o crime corporativo mata as pessoas e também envolve roubos expressivos do dinheiro dos contribuintes.”[3]

Os autores Jureidini e McHenry ressaltam o perigo em se permitir o controle dos dados de pesquisa e sua propriedade pelos grandes laboratórios, interessados diretamente no lucro gerado pelas pesquisas que permitem vender medicamentos após seus registros em agências reguladoras. Essa posse dos dados leva a situações em que os médicos pesquisadores devem se calar sobre os resultados que a indústria não deseja que sejam conhecidos. Chega-se a uma situação na qual o médico precisa decidir se honrará o pacto hipocrático de beneficiar o paciente e protegê-lo do mal, ou se honrará o pacto comercial com a indústria e se calará, permitindo muitas vezes por omissão a morte e o sofrimento de incontáveis pacientes.

Uma das soluções possíveis apontadas por Jureidini e McHenry é investir na pesquisa "independente" realizada pelas universidades, como se pudessem servir de controle comparativo para o trabalho realizado pela indústria farmacêutica.

Infelizmente, a Academia está longe de ser um poço de pureza, e foi cooptada há tempos por uma chuva de recursos da indústria farmacêutica, submetendo-se aos mesmos interesses tantas vezes obscuros daqueles que querem lucrar com a doença, prometendo a saúde e vendendo ilusões.

O poder de destruição do imbecil coletivo na saúde dentro das instituições universitárias é largamente subestimado.

Até mesmo prestigiadas revistas científicas, editadas por autoridades acadêmicas internacionalmente respeitadas, pisam na jaca dos conflitos de interesses.

Empresas fazem singelas ligações para os editores de revistas científicas dando aquele aviso camarada de que comprarão reimpressões do artigo enviado caso o mesmo seja publicado.[4]

Deixar de publicar os artigos da indústria, carinhosamente preparados com tanto esmero pelos escritores fantasmas e assinados por autoridades acadêmicas que vendem seus nomes como grifes famosas no topo dos trabalhos, pode gerar enorme impacto financeiro para uma revista. O Brittish Medical Journal, por exemplo, que é reconhecido como um “osso duro de roer” pela indústria[5], após dedicar uma edição inteira aos conflitos de interesse retratando em sua capa vários médicos vestidos como porcos gulosos em um banquete ao lado de representantes da indústria farmacêutica vestidos como lagartos, recebeu a ameaça de perder 75 mil libras em anúncios. Talvez essa fama “ruim” do Brittish Medical Journal ainda perdure, pois recentemente publicou um extenso comentário intitulado “O declínio da ciência no FDA se tornou incontrolável”, de autoria do Professor de Medicina David Ross, da George Washington University School of Medicine and Health Sciences.[6] Não é por acaso que esse periódico tenha apenas quatro por cento de sua renda derivada de reimpressões, enquanto outras revistas como o The Lancet cheguem a impressionantes 41% de toda a sua renda derivada de gulosas compras da indústria farmacêutica de seus próprios artigos publicados.[7] Afinal de contas, é sempre legal desovar um artigo impresso no consultório de um médico desavisado que nada ou pouco sabe de crítica científica.

Além de lucros multimilionários para revistas acadêmicas e seus editores, a publicação de um artigo especialmente desenhado e encomendado pela indústria farmacêutica ainda rende uma chuva de citações, aumentando o impacto da revista acadêmica e, portanto, inflacionando seu prestígio e retroalimentando a imagem de autoridade daqueles autores que emprestam seus nomes para figurar entre os pesquisadores de um laboratório.

A própria indústria arregimenta uma caterva de escritores fantasmas que se dedicam a publicar trabalhos em revistas secundárias citando profusamente os artigos publicados pela mesma indústria nos grandes periódicos.[8] Gotzsche cita um estudo de 2012 que revela dados interessantes: “o custo mediano e o maior das encomendas de reimpressão para o The Lancet era de 287.353 e de 1.551.794 libras, respectivamente.”[9] Até mesmo um dos editores da The Lancet, Richard Horton, reconheceu, talvez naquele momento de sinceridade que só pode ser inspirado por um arroubo quase suicida de consciência, que “os periódicos evoluíram para operações de lavagem de informação para a indústria farmacêutica.”[10]

Tudo isso culmina em um esquema bilionário no qual incontáveis médicos perfazem as fileiras de guerra da indústria farmacêutica, aceitando desde pequenos agrados – pois muitos se vendem por muito pouco, incluindo canetas elegantes, passagens para congresso e envelopinhos com poucos milhares de dólares – até polpudas verbas de consultoria. São editores de revistas, agentes de agências reguladoras, professores catedráticos, escritores fantasmas e prescritores vendidos que alimentam o ciclo extremamente lucrativo da Bigpharmaum verdadeiro sistema que tem seus próprios headhunters em constante vigilância sobre novos talentos promissores até mesmo dentro de cursos de graduação.

Se, apesar das multas multibilionárias pagas pela indústria, essas práticas perduram de forma sistemática, só há uma resposta plausível: o crime compensa. Só não compensa para a vida daqueles pacientes e suas famílias que ao invés de adquirirem um medicamento realmente efetivo, nada mais conseguiram do que uma amarga ilusão gloriosamente coberta pela nuvem de fumaça em que se transformou a Medicina Baseada em Evidências a serviço de interesses escusos.



[1] Jon Jureidini; Leemon B. McHenry. The Illusion of Evidence-Based Medicine: exposing the crisis of credibility in clinical research. South Australia: Wakefield Press, 2020, p. 13.

[2] Ibid., p. 14.

[3] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., 2016, p. 21-40.

[4] Richard Smith. The Trouble with Medical Journals. London: Royal Society of Medicine, 2006.

[5] Kamran Abbasi. Editor’s choice: a tough nut to crack. Brittish Medical Journal. 2005; 330: 7485.

[6] David B. Ross. The decline of Science at the FDA has become unmanageable. Brittish Medical Journal 2023; 381: p. 1061.

[7] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., p. 65.

[8] Ibid., p. 63.

[9] Handel AE; Patel SV; Pakpoor J; et al. Hight reprint orders in medical journals and pharmaceutical industry funding: case-control study. Brittish Medical Journal. 2012; 344: e4212.

[10] Richard Horton. The dawn of McScience. New York Rev Books. 2004; 51: p. 7-9.




terça-feira, 23 de maio de 2023

MEDICINA À VENDA, MORTE À VISTA

 Há livros que nos abrem os olhos para a dura realidade. Um desses livros, sem dúvida nenhuma, pertence a Peter Gøtzsche, médico pesquisador e ex-diretor de um dos centros da Cochrane, uma organização que se dedica a analisar de forma crítica as evidências científicas que movem o mundo da medicina.

O livro se chama “Medicamentos Mortais e Crime Organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica” e é de leitura obrigatória.


Em palavras diretas, sinceras e, às vezes, irônicas – pois como não utilizar um pouco de ironia diante de uma realidade tão amarga como aquela produzida pela gigantesca e trilionária indústria farmacêutica –, o autor expõe fatos de extrema gravidade e, obviamente, de quase total desconhecimento do público e até mesmo de médicos, eu diria.


Nem todos entendem que aquilo que para uns é uma busca pela sobrevivência e pela saúde, para outros nada mais é do que um lucrativo mercado a ser explorado, não importa a que custo moral.

Gøtzsche alerta, logo no início da obra:

Quando pesquisas importantes demonstram que um produto é perigoso, diversos estudos abaixo do padrão são produzidos dizendo o contrário, o que confunde o público pois – como jornalistas dirão a você – “os pesquisadores discordam.” Essa indústria da dúvida é muito eficaz ao distrair as pessoas para ignorarem os danos; a indústria ganha tempo enquanto as pessoas continuam a morrer.[1]

Vidas nada mais são do que empecilhos no caminho do lucro exorbitante dessa indústria, que superou em muito a margem de lucro existente no mercado de forma geral.[2] Pessoas, incluindo médicos, burocratas e técnicos de agências reguladoras, jornalistas, políticos e até mesmo cidadãos em associações de pacientes portadores de determinadas doenças, são comprados sistematicamente, com o intuito de mover esse mercado extremamente poderoso.

De forma muito dura, Gøtzsche sentencia que “a principal razão pela qual ingerimos tantos medicamentos é que as empresas farmacêuticas não vendem medicamentos: elas vendem mentiras sobre medicamentos.”[3]

Durante a pandemia, não foi diferente, eu diria. Foi até mesmo pior, pois o medo abriu brechas perigosíssimas e suplantou a racionalidade e a moral de incontáveis pessoas no mundo inteiro, e a mercantilização da medicina, inevitavelmente ligada à despersonalização e perda da dignidade humana, avançou a largos passos.

Medicamentos caros foram empurrados de todas as formas possíveis, enquanto medicamentos baratos que poderiam ter sido reposicionados e melhor pesquisados foram combatidos com uma fúria assanhada que eu jamais presenciara.

Gøtzsche teve a coragem de “abrir o bico” e falar o que muitos queriam que jamais fosse falado e outros não gostariam nunca de ter ouvido, pois junto com a denúncia gravíssima dos fatos, que falam por si mesmos, imediatamente vem à consciência a acusação grave contra aqueles que abriram mão de seu caráter e de sua personalidade para se tornarem objetos imorais de uma máquina de corrupção, morte e engano. Como todo aquele que ousa falar de moral com moralidade, Gøtzsche ameaça, desagrada e se expõe ao opróbio dos medíocres e vendidos.

Contudo, cabe a nós reconhecer uma antiga verdade, já enunciada por Goethe: “O talento molda-se na solidão; o caráter na convivência.” Se é na leitura e na Academia que forjamos o nosso saber, é no ringue da realidade, lidando com ameaças reais e com a perseguição promovida pelos mercadores da morte, que forjaremos nossa personalidade e mostraremos ao mundo e, principalmente, a nós mesmos e a Deus, a que viemos.

Ler os fatos horrorosos descritos por Gøtzsche, compreendê-los e voltar a olhar a realidade da saúde, da pesquisa e da medicina após esse mergulho nas trevas, é tarefa para os mais corajosos.



[1] Peter C. Gøtzsche. Medicamentos Mortais e Crime Organizado. Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Porto Alegre: Bookman, 2016, p. 2.

[2] Angell M. The Truth about the Drug Companies: how they deceive us and what to do about it. New York: Random House, 2004.

[3] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., 2016, p. 2.