Como é que em tempos de ciência avançada – ou pelo menos assim os pesquisadores que gastam suas vidas pesquisando e recebendo polpudas verbas gostam de anunciar e pensar, sempre colocando-se como protagonistas desse mesmo tempo iluminado – tantas falcatruas e distorções podem prosperar?
Temos informação, temos comunicação, temos métodos estatísticos, temos teorias e temos tecnologias fantásticas! O ideal de controle da natureza pela ciência moderna parece cada dia mais real e mais concreto, difundido e efetivo.
O que nem todos realmente percebem – ou se percebem, calam-se pelo receio de atrair descrença, pois a realidade é grotesca e esdrúxula demais – é que o mesmo poder da técnica e da ciência que controla a natureza também controla o ser humano, diretamente por meios coercivos ou indiretamente por meio da influência ideológica e econômica.
Os avançados instrumentos da técnica e da ciência são exatamente isso que propõem ser: instrumentos. Um instrumento altamente efetivo em mãos cruéis será altamente efetivo em causar o mal, e os maus jamais receiam em aumentar o próprio poder e se impor descaradamente sobre o próximo.
As técnicas utilizadas para mentir utilizando estatísticas e metodologias científicas na saúde são refinadas e muito bem elaboradas. Exigem intelectos e preparo avançados. Ouso dizer que a maioria dos médicos não está preparada para analisar criticamente e profundamente um artigo científico, mas que a totalidade ou quase totalidade daqueles médicos que trabalha para a indústria farmacêutica é extremamente bem preparada.
E como alerta o próprio Cristo, se nossos olhos forem trevas, que grandes trevas serão. O preparo científico e técnico utilizado para ocultar, mentir e distorcer gera um produto quase que impermeável à crítica da maioria dos médicos, por mais bem-intencionados que sejam.
O livro de Peter Gøtzsche traz uma série de denúncias e bastidores do jogo tantas vezes imundo da indústria farmacêutica, mas não é o único. Na verdade, há todo um mercado literário muito técnico e específico que explora as falcatruas da ciência. Um livro mais recente que enriquece a leitura de Gøtzsche foi escrito por Jon Jureidini e Leemon McHenry, e se chama “A Ilusão da Medicina Baseada em Evidências: expondo a crise de credibilidade na pesquisa clínica”.
Jureidini é médico professor universitário de psiquiatria e pediatria na Austrália e trabalha com pesquisa. McHenry é um filósofo americano. Juntos eles ousam remexer no monstro sagrado da medicina contemporânea: a medicina baseada em evidências.
Somos lembrados de fatos perturbadores. Medicamentos são lançados no mercado ainda com muitas dúvidas e, no fim das contas, todos nos tornamos cobaias de fase IV da pesquisa clínica, onde é feita a vigilância farmacêutica pós-comercialização. Não são tão raros os exemplos de medicamentos aprovados e vendidos aos milhões que geraram mortes e deformidades e tiveram que ser removidos do mercado ou ter suas indicações clínicas completamente revistas.
As próprias narrativas da sociedade são compradas e manipuladas, pois representantes de pacientes são muito bem pagos para explicar o sofrimento dos pacientes, pressionando justamente a prescrição deste ou daquele medicamento “milagroso”, e médicos especialistas tratados como referências de determinados assuntos – ou doenças – introduzem novos tratamentos em eventos patrocinados pela indústria que reúnem milhares de médicos ávidos por notícias; são os famosos Keynote Speakers da indústria.
Surfando na crista de uma onda de credibilidade conquistada por grandes descobertas que revolucionaram a saúde mundial, como o antibiótico, a imunização, os transplantes auxiliados pelo uso de imunossupressores e as cirurgias minimamente invasivas, hoje a indústria tem pleno sucesso em lucrar, mas muitas vezes falha completamente em gerar valor para a humanidade.[1]
Assim como ocorre no livro de Gøtzsche, Jureidini e McHenry trazem diversos exemplos de medicamentos que geraram grandes multas, mas lucros estrondosos. Paroxetina, por exemplo, da Glaxo Smith Kline já levou a uma multa de 3 bilhões de dólares por falhar em demonstrar eficácia e gerar sérias dúvidas acerca da segurança de seu uso, mas foi bem vendida graças em parte a um artigo encomendado pela própria indústria e escrito por um ghostwriter, um escritor fantasma especializado em redigir artigos científicos de forma agradável aos interesses da farmacêutica. É claro que o artigo é oficialmente assinado por um daqueles médicos especialistas famosos que dá palestras em congressos e recebe uma enormidade de incentivos, leia-se dinheiro, por sua “consultoria”.[2]
Técnicas semelhantes, incluindo uso de redatores fantasmas, dados distorcidos, interpretações estatísticas errôneas, ocultação de dados incluindo efeitos adversos graves e mortes e seleção indevida de desfechos clínicos, foram utilizadas em outras situações, segundo os autores, incluindo medicamentos como citalopram e escitalopram para depressão em adolescentes, rofecoxib para controle da dor em pacientes com artrite, gabapentina para condições psiquiátricas e dor, fenfluramina e fentermina para perder peso, estrogênio e progesterona para combater o envelhecimento, rosiglitazona para diabete não insulino-dependente e oxicodona para controle da dor.
Gøtzsche também exibe uma série de exemplos, que denomina de Hall da Vergonha das grandes empresas farmacêuticas. O problema não consiste nas pesadas multas pagas, mas sim, no fato de que o lucro supera em muito a penalidade. Logo, o crime compensa!
A Pfizer, por exemplo, pagou 2,3 bilhões de dólares em 2009 por fazer propaganda enganosa a respeito do antibiótico Zyvox, entre outras coisas. A Novartis pagou 423 milhões de dólares em 2010, por pagar propina para que médicos prescrevessem seus medicamentos. A Sanofi-Aventis pagou mais de 95 milhões de dólares para encerrar acusação de fraude em 2009. A Glaxo-Smith-Kline pagou 3 bilhões de dólares em 2011 por ocultar dados de segurança e pagar propinas a médicos. A AstraZeneca pagou 520 milhões de dólares e, 2010 para encerrar um caso de fraude por comercialização ilegal. A Johnson & Johnson foi multada em 1,1 bilhão de dólares em 2012. Por ocultar riscos de seu medicamento risperidona. A Merck pagou 670 milhões de dólares por fraude contra o Medicaid em 2007, incluindo propinas a médicos. Eli Lily pagou 1,4 bilhão de dólares em 2009 e Abbott pagou 1,5 bilhão de dólares em 2012. Os métodos criminosos são repetitivos, embora elaborados e muito organizados, e revelam que:
“O crime corporativo é comum e que os delitos são implacavelmente executados, com gritante desrespeito pelas mortes e outros danos sérios causados por eles. (...) o crime corporativo mata as pessoas e também envolve roubos expressivos do dinheiro dos contribuintes.”[3]
Os autores Jureidini e McHenry ressaltam o perigo em se permitir o controle dos dados de pesquisa e sua propriedade pelos grandes laboratórios, interessados diretamente no lucro gerado pelas pesquisas que permitem vender medicamentos após seus registros em agências reguladoras. Essa posse dos dados leva a situações em que os médicos pesquisadores devem se calar sobre os resultados que a indústria não deseja que sejam conhecidos. Chega-se a uma situação na qual o médico precisa decidir se honrará o pacto hipocrático de beneficiar o paciente e protegê-lo do mal, ou se honrará o pacto comercial com a indústria e se calará, permitindo muitas vezes por omissão a morte e o sofrimento de incontáveis pacientes.
Uma das soluções possíveis apontadas por Jureidini e McHenry é investir na pesquisa "independente" realizada pelas universidades, como se pudessem servir de controle comparativo para o trabalho realizado pela indústria farmacêutica.
Infelizmente, a Academia está longe de ser um poço de pureza, e foi cooptada há tempos por uma chuva de recursos da indústria farmacêutica, submetendo-se aos mesmos interesses tantas vezes obscuros daqueles que querem lucrar com a doença, prometendo a saúde e vendendo ilusões.
O poder de destruição do imbecil coletivo na saúde dentro das instituições universitárias é largamente subestimado.
Até mesmo prestigiadas revistas científicas, editadas por autoridades acadêmicas internacionalmente respeitadas, pisam na jaca dos conflitos de interesses.
Empresas fazem singelas ligações para os editores de revistas científicas dando aquele aviso camarada de que comprarão reimpressões do artigo enviado caso o mesmo seja publicado.[4]
Deixar de publicar os artigos da indústria, carinhosamente preparados com tanto esmero pelos escritores fantasmas e assinados por autoridades acadêmicas que vendem seus nomes como grifes famosas no topo dos trabalhos, pode gerar enorme impacto financeiro para uma revista. O Brittish Medical Journal, por exemplo, que é reconhecido como um “osso duro de roer” pela indústria[5], após dedicar uma edição inteira aos conflitos de interesse retratando em sua capa vários médicos vestidos como porcos gulosos em um banquete ao lado de representantes da indústria farmacêutica vestidos como lagartos, recebeu a ameaça de perder 75 mil libras em anúncios. Talvez essa fama “ruim” do Brittish Medical Journal ainda perdure, pois recentemente publicou um extenso comentário intitulado “O declínio da ciência no FDA se tornou incontrolável”, de autoria do Professor de Medicina David Ross, da George Washington University School of Medicine and Health Sciences.[6] Não é por acaso que esse periódico tenha apenas quatro por cento de sua renda derivada de reimpressões, enquanto outras revistas como o The Lancet cheguem a impressionantes 41% de toda a sua renda derivada de gulosas compras da indústria farmacêutica de seus próprios artigos publicados.[7] Afinal de contas, é sempre legal desovar um artigo impresso no consultório de um médico desavisado que nada ou pouco sabe de crítica científica.
Além de lucros multimilionários para revistas acadêmicas e seus editores, a publicação de um artigo especialmente desenhado e encomendado pela indústria farmacêutica ainda rende uma chuva de citações, aumentando o impacto da revista acadêmica e, portanto, inflacionando seu prestígio e retroalimentando a imagem de autoridade daqueles autores que emprestam seus nomes para figurar entre os pesquisadores de um laboratório.
A própria indústria arregimenta uma caterva de escritores fantasmas que se dedicam a publicar trabalhos em revistas secundárias citando profusamente os artigos publicados pela mesma indústria nos grandes periódicos.[8] Gotzsche cita um estudo de 2012 que revela dados interessantes: “o custo mediano e o maior das encomendas de reimpressão para o The Lancet era de 287.353 e de 1.551.794 libras, respectivamente.”[9] Até mesmo um dos editores da The Lancet, Richard Horton, reconheceu, talvez naquele momento de sinceridade que só pode ser inspirado por um arroubo quase suicida de consciência, que “os periódicos evoluíram para operações de lavagem de informação para a indústria farmacêutica.”[10]
Tudo isso culmina em um esquema bilionário no qual incontáveis médicos perfazem as fileiras de guerra da indústria farmacêutica, aceitando desde pequenos agrados – pois muitos se vendem por muito pouco, incluindo canetas elegantes, passagens para congresso e envelopinhos com poucos milhares de dólares – até polpudas verbas de consultoria. São editores de revistas, agentes de agências reguladoras, professores catedráticos, escritores fantasmas e prescritores vendidos que alimentam o ciclo extremamente lucrativo da Bigpharma, um verdadeiro sistema que tem seus próprios headhunters em constante vigilância sobre novos talentos promissores até mesmo dentro de cursos de graduação.
Se, apesar das multas multibilionárias pagas pela indústria, essas práticas perduram de forma sistemática, só há uma resposta plausível: o crime compensa. Só não compensa para a vida daqueles pacientes e suas famílias que ao invés de adquirirem um medicamento realmente efetivo, nada mais conseguiram do que uma amarga ilusão gloriosamente coberta pela nuvem de fumaça em que se transformou a Medicina Baseada em Evidências a serviço de interesses escusos.
[1] Jon Jureidini; Leemon B. McHenry. The Illusion of Evidence-Based Medicine: exposing the crisis of credibility in clinical research. South Australia: Wakefield Press, 2020, p. 13.
[2] Ibid., p. 14.
[3] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., 2016, p. 21-40.
[4] Richard Smith. The Trouble with Medical Journals. London: Royal Society of Medicine, 2006.
[5] Kamran Abbasi. Editor’s choice: a tough nut to crack. Brittish Medical Journal. 2005; 330: 7485.
[6] David B. Ross. The decline of Science at the FDA has become unmanageable. Brittish Medical Journal 2023; 381: p. 1061.
[7] Peter C. Gøtzsche. Op. cit., p. 65.
[8] Ibid., p. 63.
[9] Handel AE; Patel SV; Pakpoor J; et al. Hight reprint orders in medical journals and pharmaceutical industry funding: case-control study. Brittish Medical Journal. 2012; 344: e4212.
[10] Richard Horton. The dawn of McScience. New York Rev Books. 2004; 51: p. 7-9.