Este breve trabalho foi escrito há alguns anos. Analisei o fenômeno da guerra em rede. Reproduzo aqui considerando sua validade para a compreensão de certos fenômenos históricos contemporâneos.
Quando o assunto gira ao redor do poder, das formas de exercê-lo e de seus resultados, um dos componentes óbvios da discussão é saber como se organizam aqueles que entram em situações de conflito e de exercício de tal poder.
Atualmente, uma forma de organização denominada “rede” tem encontrado um ambiente extremamente fértil para sua ação e seu sucesso. Mas o que são as redes? Quais são suas características? Quais os seus objetivos? Como atuam? Quais são seus pontos fortes e seus pontos fracos? E por que se pode considerar que ela está em seu apogeu estratégico? Neste breve estudo tentarei fornecer respostas adequadas, assim como utilizarei uma situação política contemporânea como breve estudo de caso para aplicação concreta das informações exibidas.
Como base deste estudo recomendo a leitura do relatório estratégico Advent of Netwar, produzido pela RAND (Research and Development Corporation), assim como é extremamente recomendável revisar os conceitos descritos por Olavo de Carvalho em suas análises sobre o Poder, incluídos no debate com Dugin, em seu Seminário de Filosofia e em seu curso sobre Teoria do Estado.
Quando se fala em Redes e, principalmente, quando se fala da Guerra em Redes (Netwar), remete-se a um conceito prévio de organizações denominado SPIN. Organização Segmentada (S), Policêntrica (P), com uma Ideologia Integradora (I), formando uma rede (Network). Estão resumidas aí as principais características das Redes. Vale lembrar que as Redes não são uma exclusividade dos tempos contemporâneos, mas é na atualidade que seu potencial de ação amadureceu.
Também vale lembrar que o conceito de Guerra em Redes é diferente daquele de Guerra Virtual (Netwar não é Cyberwar); é perfeitamente compreensível que uma organização hierarquizada e monolítica possa participar de uma Guerra Virtual, por exemplo.
Redes podem então ser definidas como organizações descentralizadas - isto é: sem uma figura ou um núcleo de comando claramente no topo de uma hierarquia - cujos membros possuem uma afinidade ideológica em comum e se distribuem por diversos locais ou nichos formando verdadeiras redes de contatos e trocas de comandos e informações. Tais características garantem uma grande liberdade de ação.
As outras formas de organização que tiveram seu apogeu no passado e que hoje se encontram em relativa desvantagem são as seguintes:
- a organização tribal, composta de núcleos ligados por laços familiares e constituindo grupos relativamente pequenos ou clãs. É a forma mais primitiva, incapaz de gerir grandes recursos, sem apelar para uma hierarquização mais rígida dentro de sua estrutura, e de pouca capacidade de concentrar poder;
- a organização hierárquica, composta por uma chefia formal e clara que coordena grandes esforços e números grandes de membros, normalmente agindo focalizada em objetivos específicos com grande intensidade. Depende, porém, da figura do líder, e sua centralização de comando pode ser fonte de uma grande fraqueza ao perder muito da capacidade de improviso e de inovação;
- a organização de células competitivas, composta por pequenos núcleos que competem entre si sem uma figura de autoridade hierárquica superior clara. Um exemplo clássico encontra-se no mercado liberal.
Mas por que a organização em redes está em seu apogeu?
Algumas características da atualidade ajudam a explicar o sucesso das redes. A grande facilidade de comunicação, praticamente a qualquer distância e em qualquer volume, por meios tecnológicos avançados, explica a enorme capacidade de troca de informações entre células distantes que compartilham de uma mesma ideologia.
A diluição das fronteiras e o avanço progressivo da globalização, promovendo uma redução da soberania dos Estados, podem explicar a infiltração de redes internacionais nos mais distantes recantos do globo, assim como a facilidade em se obter transporte rápido e eficaz.
E por que não falar da degeneração da alta cultura e da fragilização das mentes, alimentadas e movidas por radicalismos tão característicos dos últimos dois séculos e por uma cultura de massa, agora espalhada instantaneamente por todo o globo em poucos segundos por meio de satélites?
Nunca a comunicação foi tão rápida e o volume de informações foi tão grande e tão fútil. Em meio à balbúrdia da modernidade (ou pós-modernidade, como querem alguns), tem-se o ambiente preparado para o surgimento e o florescimento das redes. Redes estas movidas por fortes laços ideológicos que conferem sentimentos de irmandade e comunhão capazes de suprir o vácuo criado pela ausência de um líder hierárquico com o mesmo poder de comando que teria em qualquer outra forma de organização.
A rede pode exercer praticamente todos os tipos de poder, conforme a tipologia explicada por Olavo de Carvalho, que coincide parcialmente com outra tipologia menos completa utilizada nos estudos de Relações Internacionais.
Poder é entendido aqui como a capacidade de fazer com que outra pessoa, ou grupo de pessoas, realize algo que você deseja.
Incluído na definição de Hard Power dos estudiosos de Relações Internacionais está o Poder Bélico. Redes podem se organizar em guerrilhas e exercer claramente o poder de intimidação e coerção. Já ao se falar de Soft Power, pode-se subentender as duas outras modalidades de poder: o Poder Comercial, baseado na capacidade de permutar, de convencer alguém ou algum grupo a realizar alguma coisa em troca de um benefício; e o Poder Espiritual, ou Intelectual, no qual se busca convencer outros a fazer algo por meio de uma impressão de realidade e necessidade que geram uma adesão à “causa” ou “cosmovisão” de quem exerce a influência.
Uma rede pode exercer, e de fato exerce, todos os tipos de poder anteriormente explicados. Pode exercer inclusive os três ao mesmo tempo, como se vê no caso de redes que possuem uma fachada legal atuando dentro da guerra cultural, angariando recursos financeiros e agindo dentro da política na forma de partidos e organizações não governamentais, e que possuem ao mesmo tempo uma ou mais células de ação ilegal ou subterrânea.
Quando se fala de Redes, se fala de células e de suas ligações. Cada célula é um bloco que forma
o complexo da rede, e diferentes tipos de ligações podem ocorrer:
Redes em Corrente
Suas células possuem pouco ou nenhum contato entre si, a não ser quando se considera um fluxo linear de influência e recursos. Derruba-se uma célula e a corrente está quebrada, porém pode ser reformada com a enxertia de novas células ou a absorção de células antigas em outras redes. Um exemplo clássico é o do tráfico de drogas, onde a mercadoria segue um trajeto específico do vendedor até o produtor, muitas vezes ignorados pela maior parte de seus componentes.
Redes em Estrela
Possuem núcleos com capacidade hierárquica um pouco maior, embora não alcancem a concentração de poder de uma estrutura claramente hierarquizada. As células secundárias se reportam diretamente à célula central, e podem substituí-la com relativa facilidade em caso de destruição da mesma. Um exemplo tradicional pode ser encontrado nas diversas máfias encontradas pelo globo. Diversas estrelas podem se fundir e gerar sindicatos e coligações diversas, com divisões de poder conforme áreas de atuação ou de influência, tornando-se estruturas muito mais complexas.
Redes Complexas
As mais características da atualidade e as que encarnam melhor as vantagens e as características particulares deste tipo de organização humana. As células não possuem uma estrutura hierárquica clara, não possuem um fluxograma organizacional fixo e se ligam de forma aparentemente caótica e extremamente complexa, com diferentes graus de intensidade e possuindo um alto grau de liberdade. Sua grande “cola unificadora” é a ideologia, a cosmovisão ou a causa. Pode integrar dentro de suas estruturas diversas outras redes e até mesmo outras formas de organização como hierarquias, clãs e instituições teoricamente competitivas e independentes.
Tendo como modelo as redes complexas, claramente adaptadas aos instrumentos da modernidade, quais são as principais qualidades e as principais fraquezas numa situação de conflito?
A força das Redes depende muito da força coesiva de sua ideologia ou de seu propósito. A semelhança de propósitos pode fornecer o sentimento de coesão que compensará a falta de hierarquia rígida e de organização eficaz e centralizada. Se uma célula for derrubada, outras surgirão e serão estimuladas a contra-atacar, de forma praticamente automática. A resposta combativa das redes pode gerar o fenômeno conhecido com “swarming” (enxame), no qual um evento ou uma palavra de ordem aciona inúmeros focos de combate (em todas as esferas, sejam elas armadas, políticas, intelectuais ou comerciais, ou todas ao mesmo tempo). A aparente espontaneidade e os números expressivos garantem um fator surpresa difícil de ser garantido no contexto de uma estrutura hierárquica. Uma vez dentro do conflito, as ligações entre as células podem ocorrer de forma sutil, ou até mesmo serem inexistentes no aspecto oficial; ligadas por idéias fortes e por uma comunicação de fácil acesso e alta eficácia, podem agir com alto grau de liberdade, e no caso de uma ser apreendida, capturada, desmascarada ou destruída, o efeito dominó que se seguiria numa estrutura hierarquizada não ocorrerá.
Mas alguns pontos fracos também podem ser observados. Se é no plano das idéias em que reside muito da força das Redes, ali também é o local de suas maiores fraquezas. Enquanto uma organização tribal, por exemplo, possui laços praticamente inquebráveis de sangue, de parentesco e de lealdade pela união das famílias, uma Rede poderá ter seus laços rompidos por crises de identidade e por mudanças na cosmovisão. Se a Rede é forte na comunicação, é na mesma comunicação que novas idéias podem alcançar seus membros e causar sua dispersão. A falta de uma chefia centralizada também gera imprevisibilidade nas suas ações, uma falta de coordenação que pode comprometer seriamente a eficácia ao se combater uma estrutura hierarquizada que está muito bem informada.
Numa situação de conflito, a rede atua sempre de forma descentralizada e até mesmo caótica para muitos que observam acriticamente. Muitas vezes, inclusive, uma célula pode atuar diretamente contra outra da própria rede à qual pertence, o que em longo prazo não será, necessariamente, um fator de enfraquecimento da estrutura como um todo. A imprevisibilidade, a descentralização, o grande espaço ao improviso, o acesso à comunicação e a diluição de fronteiras, aliada à maior eficácia dos meios de transporte, transformaram as Redes num desafio estratégico considerável.
Analisando as diferentes formas de exercer poder, a estratégia de ação das redes fica mais clara.
Poder de Coerção ou Político-Militar
Partidos que comungam de ideais semelhantes formam coligações e usam seus aliados em grandes manobras para manipular eficazmente as decisões de um governo. Organizações internacionais, como o Foro de São Paulo, podem agregar desde partidos políticos até organizações de guerrilheiros traficantes de droga e articular “informalmente” decisões de nível continental. Grupos de guerrilha agem em diferentes pontos geográficos movidos por líderes locais, cuja eliminação não repercutirá de forma direta em outras células que continuarão combatendo.
Poder Comercial ou de Permuta
Redes podem garantir maior poder de fogo dentro do mercado ao gerar alianças formais ou informais, formando monopólios ou agindo em conjunto para destruir um oponente ou um grupo de orientação contrária. Células ilegais que se beneficiam de doações feitas por células legais da mesma rede podem, inclusive, utilizar o dinheiro “limpo” para financiar atividades proscritas, como o tráfico de drogas.
Poder Espiritual ou Intelectual
Células legais agem dentro da sociedade criando figuras de linguagem e símbolos autoexplicativos que tentam dar legitimidade à ideologia defendida pela Rede. Num grau mais avançado, a defesa intelectual da ideologia pode até mesma partir para a engenharia social mais radical, tornando factível a atividade de atos claramente ilegais ou idéias absolutamente criminosas.
Em todas as esferas, as células públicas, legais por definição ou aceitas pela sociedade, podem atuar com ou sem o conhecimento da ação simultânea de células ilegais, aceitando totalmente ou parcialmente as ações das mesmas. Em alguns casos existem conflitos entre algumas células legais e ilegais, mas no conjunto, a ideologia moverá a Rede num determinado caminho e se retroalimentará de forma positiva.
Para ilustrar, pode-se imaginar um conflito envolvendo uma organização hierárquica como o jogo de xadrez, tanto no agir quanto no pensar. O objetivo será a derrubada do rei. Com a eliminação da hierarquia do oponente, a batalha está vencida.
Quando se fala em redes, a estratégia muda completamente. O paralelo pode ser traçado com o GO, um jogo no qual o objetivo é cercar as peças do oponente tomando os territórios e delimitando suas bordas. Princípio básico na guerra cultural e na discussão intelectual, onde a delimitação de conceitos, de idéias e de limites pode garantir a vitória antes mesmo do primeiro embate.
Mas como combater uma rede?
Estruturas hierarquizadas como os Estados, por exemplo, podem realizar convênios em troca de informações e maior liberdade de ação entre fronteiras. Mas cria-se uma situação paradoxal como já foi descrito anteriormente no Seminário de Filosofia - a atenuação da soberania estatal deve ser mediada por uma estrutura supra estatal - o que gera, por sua vez, uma nova concentração de poder, englobando uma área ainda maior, e permitindo uma maior infiltração por células inimigas.
O combate na arena cultural, por outro lado, pode ser eficaz minando as bases mesmas de sustentação de Redes ilegais ou prejudiciais. Mas é claro que o poder intelectual, embora seja eficaz em longo prazo, direcionando os rumos até mesmo de grandes civilizações, tem um período de maturação muito amplo e lento, e pode demandar algumas gerações de espera para se mostrar eficaz. Talvez seja um dos preços a ser pago para se obter o sucesso na guerra contra uma rede corruptora e insidiosa.
Filho do Hamas – um estudo de caso
Lendo o livro “Filho do Hamas”, de Mosab Hassam Yousef, todo o esquema de funcionamento de uma rede se torna mais claro. De um ponto de vista pessoal, mais emotivo, o livro conta a história do jovem Mosab, filho de um dos líderes ideológicos do Hamas. O jovem, que tinha tudo para se tornar um grande líder islâmico dentro da rede do Hamas, foi capturado pelos israelenses e se tornou um espião para o serviço de inteligência interno de Israel. Durante o conflito recheado de atrocidades, o jovem participa do perigoso jogo político e militar entre palestinos e israelenses.
Confuso e repleto de dúvidas existenciais e religiosas, Mosab encontra novamente o rumo de sua vida ao se converter ao cristianismo.
Mas o objetivo aqui é traçar os paralelos entre a descrição do fenômeno de guerra em redes e a descrição da estrutura interna do Hamas oferecida por Mosab.
Algumas das principais características:
- ausência de uma liderança fixa. O próprio protagonista usa a figura mitológica da hidra para descrever a organização (corte uma cabeça e outras duas surgem);
- a liberdade de ação das células, gerando ações muitas vezes contraditórias, mas quase sempre garantindo o elemento surpresa;
- as múltiplas frentes de ação, incluindo ações pacíficas e de cunho intelectual e espiritual, como aquelas exercidas pelo pai de Mosab, um influente homem santo do Islã (Imãn); ações de guerrilha e destruição, mesmo que desagradáveis a alguns membros, ainda assim toleradas; e ações políticas, agindo até mesmo contra as vidas do povo palestino, mas orquestradas dentro de um contexto estratégico maior;
- a força da cosmovisão como cola ideológica de uma rede;
- a extrema dificuldade em se eliminar uma rede, mesmo quando células volumosas e influentes são derrubadas.
Independentemente do conteúdo histórico e experiencial, o livro Filho do Hamas é um estudo interessante do funcionamento de uma rede vista por dentro. Vale como ilustração do que foi discutido aqui.