terça-feira, 28 de outubro de 2014

FORMAÇÃO DO MÉDICO – A Comunidade Moral Terapêutica



Antes de falar das virtudes médicas, é preciso falar de algumas obviedades que ajudarão a compreender melhor o que queremos dizer quando falamos de Formação Médica.
A Medicina é uma Comunidade Moral Terapêutica. O que isso quer dizer?
Todos aqueles que se dizem médicos defendem um grupo razoavelmente semelhante de valores e princípios, isto é, a Medicina é eticamente semelhante em diferentes épocas e diferentes sociedades, pois defende praticamente as mesmas “coisas”.
Alguns defendem que você pode ter qualquer cosmovisão ou ideologia e ser um bom médico. É preciso deixar bem claro desde já que isso é mentira ou desinformação.
Um nazista que participou dos experimentos em campos de concentração, como aqueles observados no assustador relato sobre os testes de hipotermia de Dachau[1], jamais poderia afirmar que é um médico. É um monstro pura e simplesmente pelo simples fato de consentir com uma ideologia monstruosa. Da mesma forma um psiquiatra comunista da União Soviética que utilizava sua profissão para realizar controle político e ideológico da população não passava de um monstro moral.
 
Logo, não são todas as ideologias e tendências políticas que são compatíveis com a Medicina. Algumas, inclusive, são completamente deletérias à Medicina e ao bem do ser humano.
 
Como fundamentos para a existência da Medicina, nós podemos listar alguns elementos bem simples e evidentes:
1 – As pessoas morrem e ficam doentes ou limitadas durante um segmento de suas vidas ou por toda a vida;
2 – Quando fragilizadas, as pessoas normalmente buscam auxílio;
3 – Alguns se dispõem a auxiliar quem se encontra fragilizado.
Esses três elementos são reais e independem da cultura em que se vive. Eles fundamentam ontologicamente a relação médico-paciente.
Ao redor dessa realidade de auxílio terapêutico é organizada uma comunidade moral que se ampara em códigos de ética, leis, princípios e virtudes para exercer a prática médica.
Nosso Código de Ética é aquele elaborado pelo Conselho Federal de Medicina traduzindo valores importantes para nossa sociedade no contexto da relação médico-paciente e, inclusive, médico-médico e médico-sociedade.
Os princípios básicos observados pela Bioética contemporânea, principalmente em sua vertente principialista, são: Autonomia, Beneficência, Não-Maleficência e Justiça. Um estudo aprofundado sobre tais princípios pode ser encontrado naquela que, talvez, seja a mais lida obra de Bioética do mundo inteiro, escrita por Beauchamp e Childress[2].
E no íntimo dos médicos estão as virtudes que tornam possíveis a manifestação dos princípios de uma forma sincera e comprometida com o paciente. Tais virtudes, descritas por Edmund Pellegrino, são: Fidelidade (confiabilidade), Compaixão, Sabedoria, Justiça, Fortaleza, Temperança, Integridade e Altruísmo[3].  Pellegrino também acrescenta três virtudes adicionais presentes no ambiente cristão de nossa civilização que, segundo ele, potencializam a atitude do médico: Fé, Esperança e Caridade[4].
Por que a Medicina foi uma profissão em geral tão respeitada no passado, mesmo quando detinha pouca tecnologia, e agora se encontra tão mal falada, mesmo ao oferecer soluções tecnológicas que no passado seriam consideradas milagrosas? Creio que parte da resposta pode ser encontrada na decadência e no desconhecimento da Ética baseada em virtudes e na negligência em cuidar da formação moral dos novos médicos.
Cabe, no presente momento, em que a Medicina no Brasil sofre um pesado ataque de origem política e ideológica, defender o que realmente vale a pena: o bem do paciente e as virtudes e princípios que nos ajudarão a promovê-lo, ao lado da técnica e do conhecimento avançado que alcançamos.
A Medicina possui estatuto filosófico moral próprio. Não deve ceder nem ao mercantilismo, já proibido pelo Código de Ética, e nem tornar-se subserviente ao Estado, assumindo o papel de atravessadora dos cuidados de um aparato burocrático inchado, opressivo e despersonalizado. A Medicina é uma profissão liberal no sentido em que é executada por livres praticantes, capazes de renunciar às pressões estatais e às do mercado em prol daquilo pelo que lutam: o bem do paciente. Pessoas livres para defenderem seus ideais[5].
Prof. Dr. Hélio Angotti Neto
Doutorado em Ciências Médicas pela FMUSP
Médico Oftalmologista pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia
Coordenador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina – SEFAM www.medicinaefilosofia.blogspot.com.br
Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo – UNESC http://www.unesc.br/website/index.php?filtro=Colatina
Diretor Editorial da Mirabilia Medicinae, revista especializada em Humanidades Médicas http://www.revistamirabilia.com/medicinae
 




[1] BERGER, Robert L. Nazi Science – The Dachau Hypothermia Experiments. New England Journal of Medicine, vol. 322, 1990, p. 1435-1440.
[2] BEAUCHAMP, Tom L. & CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics, 7ª edição. New York: Oxford University Press, 2013. No Brasil há um atradução de uma versão antiga do livro, que já ganhou novos capítulos e argumentações diversas frente às contestações que vem sofrendo.
[3] PELLEGRINO, Edmund D. & THOMASMA, David C. The Virtues in Medical Practice. New York: Oxford University Press, 1993.
[4] PELLEGRINO, Edmund D. & THOMASMA, David C. The Christian Virtues in Medical Practice. New York: Oxford University Press, 1996.
[5] Um excelente texto sobre o risco de abandonarmos nossos ideais foi escrito pelo Filósofo Olavo de Carvalho e pode ser encontrado em: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/ideais.htm .

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SEFAM - A Invasão Vertical dos Bárbaros 01

Encontro do SEFAM iniciando a apresentação do livro "A Invasão Vertical dos Bárbaros" de Mário Ferreira dos Santos.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Formando um Bom Médico - O Ensino das Virtudes Médicas

* Texto publicado originalmente no "Academia Médica" em 15/10/2014. 
http://academiamedica.com.br/virtudes-da-medicina-como-formar-um-bom-medico/ 

Prof. Dr. Edmund D. Pellegrino


Como formar um bom médico? Como educar para ser uma boa pessoa e, consequentemente, um bom médico? Não seria pretensioso ousar educar para o certo, para a virtude?

Nos dias contemporâneos, o discurso que se intitula “inteligente” está normalmente ancorado num relativismo que o puxa sempre para baixo, rumo ao lodo da incompreensibilidade e da mediocridade. Não se ousa falar a verdade e instigar a busca pelo que é certo. Quando muito, se ensina um apego à crítica desmedida, destrutiva e pouco sábia feita pelos estúpidos, isto é, os ignorantes e arrogantes[1].
Mas na Medicina não há opção. Não há Medicina moralmente neutra. Aliás, como alguns pensadores de boa estirpe já anunciaram[2], não há nada que envolva a ação humana, incluída a ciência, que não envolva a moralidade.

Mas se algo precisa ser feito, como ensinar a ser um bom médico?

Platão já testava possíveis respostas há tempos, e a pergunta que fazemos se repete desde seu diálogo Mênon[3]: Como ensinar a Virtude? Não a virtude maquiavélica[4], que nada mais é do que uma distorção verbal cujo real significado seria força e iniciativa impetuosa. Isso não é a virtude como era entendida pelos antigos e nem a virtude de que precisamos na Medicina.

Gosto de ressaltar com meus alunos que uma preciosa vivência é trazida de casa. Mas, para ser médico, é necessário aprender mais e fazer mais do que se já tem.

É inegável o valor do exemplo dos bons mestres. Professores que encarnam o papel do médico - do verdadeiro médico - e inspiram seus alunos a buscar a virtude junto ao paciente. Porém também é inegável que existem os maus exemplos, também presentes dentro das escolas médicas. E o exemplo somente não é um fator determinante, pois o mau exemplo pode servir como contraexemplo dialético para um bom acadêmico, e um bom professor pode ser ignorado completamente por um mau acadêmico.

Um código deontológico adequado ajuda na medida em que traduz expectativas éticas em proposições passíveis de julgamento racional. Mas o compromisso de ser médico é muito mais do que assumir um corpo de regras externas, é um compromisso interno, assim como é interna a conversão dos religiosos. Há uma conversão do jovem acadêmico em médico, muitas vezes gradual e lenta, muitas vezes súbita.

Outro recurso capaz de auxiliar na busca da virtude é a aprendizagem de exemplos clínicos junto a professores mais experientes que possam traduzir as vivências morais em cada situação para o acadêmico e demonstrar quais seriam as atitudes desejáveis para a formação de um bom médico. Este estudo das virtudes e atitudes necessárias, junto a um bom professor de Ética Médica e Bioética, pode colaborar sobremaneira na formação médica.

Nessa linha temos Edmund Pellegrino que, ao lado do exemplo de vida, também sistematizou toda sua obra ao redor da formação de médicos virtuosos e do estabelecimento de uma Filosofia Moral adequada e especifica para as profissões que cuidam da saúde do ser humano, em especial da Medicina[5].

Sua obra publicada em livros não encontra nenhuma tradução ainda no Brasil, falha gravíssima que o Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM) começa a remediar. Em geral, sua obra também não encontra penetração nos cursos de Medicina, sendo mais discutida em alguns círculos de estudos bioéticos mais capacitados e avançados. Não há como duvidar da excelência dos centros de formação médica em diversos lugares do Brasil, mas em termos éticos, nossas publicações ignoram aqueles que muitos chamam de o “Pai da Ética Médica Moderna”.

Mas, respondendo às perguntas iniciais, é possível sim formar um bom médico, embora a vontade do indivíduo em formação seja elemento indispensável, obviamente[6]. Os métodos são diversos e, compreendendo a complexidade do ser humano, todas as aproximações são desejáveis em conjunto: bons professores como modelos, casos clínicos comentados, estudo deontológico e estudo da Ética Médica e da Bioética com qualidade. 

Uma vez possível a educação, mesmo que não garantida, jamais seria pretensiosa, mas sim, torna-se obrigação para a Escola Médica, um importante agente moral da sociedade em que está plantada.
Em breve, detalharei as principais virtudes conforme exposição feita por Edmund Pellegrino.


Prof. Dr. Hélio Angotti Neto
Doutorado em Ciências Médicas pela FMUSP
Médico Oftalmologista pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia
Coordenador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina – SEFAM
Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo – UNESC
Diretor Editorial da Mirabilia Medicinae, revista especializada em Humanidades Médicas



[1] Na verdade todo discurso que prega o relativismo forte não passa de uma expressão arbitrária e intolerante. O fato de que muitas mentes ainda se deixam levar pelas peripécias exageradas de alguns céticos e cínicos é um indicativo do estado deprimente de nossos tempos.

[2] JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, RJ: Editora PUC Rio & Contraponto: 2011. JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo, SP: Paulus, 2013.

[3] PLATÃO. Mênon. Rio de Janeiro, RJ: Editora PUC Rio & Edições Loyola: 2009.

[4] MAQUIAVEL, Nicolau. Penguin Companhia: Clássicos. O Príncipe. São Paulo, SP: Editora Shwarcz, 2010. CARVALHO, Olavo de. Maquiavel ou a Confusão Demoníaca. Campinas, SP: Vide Editorial, 2011.

[5] PELLEGRINO, Edmund D. & THOMASMA, David C. The Virtues in Medical Practice. New York: Oxford University Press, 1993. PELLEGRINO, Edmund D. & THOMASMA, David C. Christian Virtues in Medical Practice. Washington, DC: Georgetown University Press, 1996.

[6] Não há um José Monir Nasser ou um Reuven Feuerstein que eduque alguém que não quer aprender. Ambos foram grandes educadores que, infelizmente, faleceram há pouco tempo. Um brasileiro e outro israelense, ambos praticamente desconhecidos nestas terras onde quem impera é o ideólogo Paulo Freire.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A Linguagem do Viver e do Morrer na Cartilha de Direitos e Liberdades do Canadá (Tradução)


 

A Linguagem do Viver e do Morrer na Cartilha de Direitos e Liberdades
Em 14 de outubro de 2014 a Suprema Corte do Canadá terá o trabalho nada invejável de escolher entre duas linguagens éticas bem diferentes. Qual é a linguagem na qual as promessas e proteções contidas na Cartilha de Direitos e Liberdades são melhores compreendidas?

Desde sua assinatura em 1984, a fina escrita da Cartilha tem permanecido não testada. Em “Carter, et al. Versus Advogado Geral do Canadá, et al.”, serão os Juízes chamados a decidir o significado da garantia que consta na Cartilha (seção 7) sobre “vida, liberdade e segurança da pessoa”? E, também, serão eles questionados sobre quais ações chegam ao nível de discriminação proibida (seção 15)? Peticionários e advogados canadenses arguirão com base em diferentes fundamentações éticas que são tão diferentes quanto o Inglês é do Francês. Um dos fundamentos é libertário em sua pressuposição de que a principal meta do governo e, logicamente, da sociedade, é incrementar, jamais impedir, a escolha dos indivíduos. O outro insiste que a linguagem da lei é, em seu cerne, comunal e protetor. Em mais de 20 anos como consultor, conselheiro, pesquisador e escritor nestas questões, tenho visto essas éticas divergirem até se tornarem linguagens totalmente distintas.

Fim da Vida e Finalizando a Vida
Em relatórios judiciais, por exemplo, libertários falam sobre “ajudar a morrer”, “morte assistida” ou “morte assistida por médico” como simples questões de cuidado e conforto requeridas para e por aqueles cuja morte é iminente. Tudo o que está sendo pedido é permissão para que o médico ajude nesse momento inevitável para que haja conforto.

Argumentando de forma similar pelo cuidado, advogados de justiça do Canadá insistirão que nada disso é sobre escolhas no “fim da vida”, mas sim, sobre “finalizar a vida” daqueles que, de outra forma, poderiam viver por semanas, meses ou anos. Cuidado diz respeito a controle da dor, reabilitação e serviços sociais, não diz respeito a terminação da vida autoconsciente por meio da remoção de mecanismos artificiais de sustentação da vida ou por meio da introdução de medicações para interrupção dos batimentos cardíacos. Isso é apenas matar com outro nome – os holandeses chamam isso “terminação” assistida ou dirigida por médicos – e isso é proibido, de forma justa, na lei canadense.

Autonomia
Para libertários, a questão é sobre a autonomia como direito absoluto, e a independência é uma das principais virtudes. Não cabe à sociedade questionar decisões individuais, julgamentos ou preferências. Se a pessoa com limitações crônicas cognitivas, físicas ou sensoriais deseja morrer... é nosso dever como sociedade escutar seu pleito, reconhecê-lo e depois agir de acordo, se necessário. Mas o que está em demanda, ressaltam os oponentes, não é o direito da ação individual. A demanda, ao invés disso, é para que a sociedade aceite a determinação de que algumas vidas não são dignas de serem vividas. Eles então solicitam que os canadenses apoiem tal julgamento por meio da participação de médicos canadenses pagos pelos serviços de saúde locais sustentados pelo Ato de Saúde do Canadá por meio de dólares federais. Individual? Dificilmente.

Pressuposta nessas posições está a crença libertária de que apenas o indivíduo possa julgar sua qualidade de vida. Se alguns a consideram insuportável, então a “terminação” é uma coisa humana a ser feita. Uma variante é o argumento da dignidade. Em seu depoimento, por exemplo, Glória Carter argumentou que sua condição, ELA, resultaria na falência inevitável do controle vesical e intestinal. Isto consistiria numa indignidade que ela não desejaria suportar. E quem, perguntam os libertários, colocaria em cheque o direito dela em julgar a própria qualidade de vida?

Oponentes insistem que qualidade de vida é um conceito que criamos juntos, não é uma condição que suportamos sozinhos. Dignidade está em como vivemos nossas vidas, não nos limites excêntricos da vida que podemos viver. O artista Bill Reid disse que enquanto sua Doença de Parkinson impôs o uso de fraldas ele considerou o fato uma inconveniência menor, não alguma coisa que justificasse sua morte. Num famoso artigo, Harriet McBryde Johnson disse ao filósofo de Princeton, Peter Singer, que somente por ela usar uma cadeira de rodas não significa que ela não gostaria de ir à praia. Que ele não pudesse conceber tais prazeres na vida dela, vivendo numa cadeira de rodas, era problema e limitação dele, não dela. “Dignidade” e “Qualidade de Vida” são buscados por meio do cuidado, da reabilitação e do suporte, McBryde insistiu, não por meio da “Terminação”.
Como insistem os comunicados da justiça canadense, duas décadas de ciências sociais mostraram que, com o passar do tempo, aqueles que enfrentaram condições ou doenças crônicas mudaram suas mentes acerca de coisas como dignidade, vida e qualidade de vida. Enquanto a maioria atravessaria um período inicial de depressão e até mesmo de risco de suicídio por desespero, com o tempo, a maioria descobriria que a vida valia a pena ser vivida. Aprendemos a nos acomodarmos, a redescobrir a dignidade e a alegria de viver em vidas que, embora sejam diferentes, permanecem válidas. Aceitar a terminação da vida durante o período de desespero é negar aos frágeis o direito de ter o tempo necessário para fazer o que deve ser obrigatório: aconselhar, controlar a dor, reabilitar e prestar serviços sociais.

 É justo dizer que as deficiências e os ativistas sociais insistem que suportemos não o indivíduo isolado, mas a pessoa na comunidade. Todos nós precisamos de ajuda, ainda mais quando deparamos com uma crise de saúde. É neste momento em que a garantia da Cartilha de “vida, liberdade e segurança da pessoa” exige proteção e suporte dos frágeis, jamais um rápido consentimento à depressão e ao medo do desconhecido. Os libertários não negam a necessidade de apoio. Eles somente entendem tal coisa de forma diferente.

 
Tom Koch é eticista médico, escritor e geriatra que trabalhou como consultor em casos de terminação da vida dirigida ou assistida por médico. Seu último livro se chama “Thieves of Virtue: When Bioethics stole Medicine” (Ladrões de Virtude: quando a Bioética roubou a Medicina).
Publicado originalmente em inglês no Huffington Post em 05 de Outubro de 2014. Tradução feita e publicada com autorização do autor.


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

REDES EM GUERRA: Estudo de Estratégia Política

Este breve trabalho foi escrito há alguns anos. Analisei o fenômeno da guerra em rede. Reproduzo aqui considerando sua validade para a compreensão de certos fenômenos históricos contemporâneos.


Quando o assunto gira ao redor do poder, das formas de exercê-lo e de seus resultados, um dos componentes óbvios da discussão é saber como se organizam aqueles que entram em situações de conflito e de exercício de tal poder. 

Atualmente, uma forma de organização denominada “rede” tem encontrado um ambiente extremamente fértil para sua ação e seu sucesso. Mas o que são as redes? Quais são suas características? Quais os seus objetivos? Como atuam? Quais são seus pontos fortes e seus pontos fracos? E por que se pode considerar que ela está em seu apogeu estratégico? Neste breve estudo tentarei fornecer respostas adequadas, assim como utilizarei uma situação política contemporânea como breve estudo de caso para aplicação concreta das informações exibidas.

Como base deste estudo recomendo a leitura do relatório estratégico Advent of Netwar, produzido pela RAND (Research and Development Corporation), assim como é extremamente recomendável revisar os conceitos descritos por Olavo de Carvalho em suas análises sobre o Poder, incluídos no debate com Dugin, em seu Seminário de Filosofia e em seu curso sobre Teoria do Estado. 

Quando se fala em Redes e, principalmente, quando se fala da Guerra em Redes (Netwar), remete-se a um conceito prévio de organizações denominado SPIN. Organização Segmentada (S), Policêntrica (P), com uma Ideologia Integradora (I), formando uma rede (Network). Estão resumidas aí as principais características das Redes. Vale lembrar que as Redes não são uma exclusividade dos tempos contemporâneos, mas é na atualidade que seu potencial de ação amadureceu.

Também vale lembrar que o conceito de Guerra em Redes é diferente daquele de Guerra Virtual (Netwar não é Cyberwar); é perfeitamente compreensível que uma organização hierarquizada e monolítica possa participar de uma Guerra Virtual, por exemplo.

Redes podem então ser definidas como organizações descentralizadas - isto é: sem uma figura ou um núcleo de comando claramente no topo de uma hierarquia - cujos membros possuem uma afinidade ideológica em comum e se distribuem por diversos locais ou nichos formando verdadeiras redes de contatos e trocas de comandos e informações. Tais características garantem uma grande liberdade de ação.

As outras formas de organização que tiveram seu apogeu no passado e que hoje se encontram em relativa desvantagem são as seguintes:

- a organização tribal, composta de núcleos ligados por laços familiares e constituindo grupos relativamente pequenos ou clãs. É a forma mais primitiva, incapaz de gerir grandes recursos, sem apelar para uma hierarquização mais rígida dentro de sua estrutura, e de pouca capacidade de concentrar poder;

- a organização hierárquica, composta por uma chefia formal e clara que coordena grandes esforços e números grandes de membros, normalmente agindo focalizada em objetivos específicos com grande intensidade. Depende, porém, da figura do líder, e sua centralização de comando pode ser fonte de uma grande fraqueza ao perder muito da capacidade de improviso e de inovação;

- a organização de células competitivas, composta por pequenos núcleos que competem entre si sem uma figura de autoridade hierárquica superior clara. Um exemplo clássico encontra-se no mercado liberal.

Mas por que a organização em redes está em seu apogeu?

Algumas características da atualidade ajudam a explicar o sucesso das redes. A grande facilidade de comunicação, praticamente a qualquer distância e em qualquer volume, por meios tecnológicos avançados, explica a enorme capacidade de troca de informações entre células distantes que compartilham de uma mesma ideologia. 

A diluição das fronteiras e o avanço progressivo da globalização, promovendo uma redução da soberania dos Estados, podem explicar a infiltração de redes internacionais nos mais distantes recantos do globo, assim como a facilidade em se obter transporte rápido e eficaz.

E por que não falar da degeneração da alta cultura e da fragilização das mentes, alimentadas e movidas por radicalismos tão característicos dos últimos dois séculos e por uma cultura de massa, agora espalhada instantaneamente por todo o globo em poucos segundos por meio de satélites?

Nunca a comunicação foi tão rápida e o volume de informações foi tão grande e tão fútil. Em meio à balbúrdia da modernidade (ou pós-modernidade, como querem alguns), tem-se o ambiente preparado para o surgimento e o florescimento das redes. Redes estas movidas por fortes laços ideológicos que conferem sentimentos de irmandade e comunhão capazes de suprir o vácuo criado pela ausência de um líder hierárquico com o mesmo poder de comando que teria em qualquer outra forma de organização.

A rede pode exercer praticamente todos os tipos de poder, conforme a tipologia explicada por Olavo de Carvalho, que coincide parcialmente com outra tipologia menos completa utilizada nos estudos de Relações Internacionais. 

Poder é entendido aqui como a capacidade de fazer com que outra pessoa, ou grupo de pessoas, realize algo que você deseja. 

Incluído na definição de Hard Power dos estudiosos de Relações Internacionais está o Poder Bélico. Redes podem se organizar em guerrilhas e exercer claramente o poder de intimidação e coerção. Já ao se falar de Soft Power, pode-se subentender as duas outras modalidades de poder: o Poder Comercial, baseado na capacidade de permutar, de convencer alguém ou algum grupo a realizar alguma coisa em troca de um benefício; e o Poder Espiritual, ou Intelectual, no qual se busca convencer outros a fazer algo por meio de uma impressão de realidade e necessidade que geram uma adesão à “causa” ou “cosmovisão” de quem exerce a influência.

Uma rede pode exercer, e de fato exerce, todos os tipos de poder anteriormente explicados. Pode exercer inclusive os três ao mesmo tempo, como se vê no caso de redes que possuem uma fachada legal atuando dentro da guerra cultural, angariando recursos financeiros e agindo dentro da política na forma de partidos e organizações não governamentais, e que possuem ao mesmo tempo uma ou mais células de ação ilegal ou subterrânea.

Quando se fala de Redes, se fala de células e de suas ligações. Cada célula é um bloco que forma
o complexo da rede, e diferentes tipos de ligações podem ocorrer:

Redes em Corrente
Suas células possuem pouco ou nenhum contato entre si, a não ser quando se considera um fluxo linear de influência e recursos. Derruba-se uma célula e a corrente está quebrada, porém pode ser reformada com a enxertia de novas células ou a absorção de células antigas em outras redes. Um exemplo clássico é o do tráfico de drogas, onde a mercadoria segue um trajeto específico do vendedor até o produtor, muitas vezes ignorados pela maior parte de seus componentes.

Redes em Estrela
Possuem núcleos com capacidade hierárquica um pouco maior, embora não alcancem a concentração de poder de uma estrutura claramente hierarquizada. As células secundárias se reportam diretamente à célula central, e podem substituí-la com relativa facilidade em caso de destruição da mesma. Um exemplo tradicional pode ser encontrado nas diversas máfias encontradas pelo globo. Diversas estrelas podem se fundir e gerar sindicatos e coligações diversas, com divisões de poder conforme áreas de atuação ou de influência, tornando-se estruturas muito mais complexas.

 Redes Complexas
As mais características da atualidade e as que encarnam melhor as vantagens e as características particulares deste tipo de organização humana. As células não possuem uma estrutura hierárquica clara, não possuem um fluxograma organizacional fixo e se ligam de forma aparentemente caótica e extremamente complexa, com diferentes graus de intensidade e possuindo um alto grau de liberdade. Sua grande “cola unificadora” é a ideologia, a cosmovisão ou a causa. Pode integrar dentro de suas estruturas diversas outras redes e até mesmo outras formas de organização como hierarquias, clãs e instituições teoricamente competitivas e independentes.
 Tendo como modelo as redes complexas, claramente adaptadas aos instrumentos da modernidade, quais são as principais qualidades e as principais fraquezas numa situação de conflito?

A força das Redes depende muito da força coesiva de sua ideologia ou de seu propósito. A semelhança de propósitos pode fornecer o sentimento de coesão que compensará a falta de hierarquia rígida e de organização eficaz e centralizada. Se uma célula for derrubada, outras surgirão e serão estimuladas a contra-atacar, de forma praticamente automática. A resposta combativa das redes pode gerar o fenômeno conhecido com “swarming” (enxame), no qual um evento ou uma palavra de ordem aciona inúmeros focos de combate (em todas as esferas, sejam elas armadas, políticas, intelectuais ou comerciais, ou todas ao mesmo tempo). A aparente espontaneidade e os números expressivos garantem um fator surpresa difícil de ser garantido no contexto de uma estrutura hierárquica. Uma vez dentro do conflito, as ligações entre as células podem ocorrer de forma sutil, ou até mesmo serem inexistentes no aspecto oficial; ligadas por idéias fortes e por uma comunicação de fácil acesso e alta eficácia, podem agir com alto grau de liberdade, e no caso de uma ser apreendida, capturada, desmascarada ou destruída, o efeito dominó que se seguiria numa estrutura hierarquizada não ocorrerá.

Mas alguns pontos fracos também podem ser observados. Se é no plano das idéias em que reside muito da força das Redes, ali também é o local de suas maiores fraquezas. Enquanto uma organização tribal, por exemplo, possui laços praticamente inquebráveis de sangue, de parentesco e de lealdade pela união das famílias, uma Rede poderá ter seus laços rompidos por crises de identidade e por mudanças na cosmovisão. Se a Rede é forte na comunicação, é na mesma comunicação que novas idéias podem alcançar seus membros e causar sua dispersão. A falta de uma chefia centralizada também gera imprevisibilidade nas suas ações, uma falta de coordenação que pode comprometer seriamente a eficácia ao se combater uma estrutura hierarquizada que está muito bem informada.

Numa situação de conflito, a rede atua sempre de forma descentralizada e até mesmo caótica para muitos que observam acriticamente. Muitas vezes, inclusive, uma célula pode atuar diretamente contra outra da própria rede à qual pertence, o que em longo prazo não será, necessariamente, um fator de enfraquecimento da estrutura como um todo. A imprevisibilidade, a descentralização, o grande espaço ao improviso, o acesso à comunicação e a diluição de fronteiras, aliada à maior eficácia dos meios de transporte, transformaram as Redes num desafio estratégico considerável.

Analisando as diferentes formas de exercer poder, a estratégia de ação das redes fica mais clara.

Poder de Coerção ou Político-Militar
Partidos que comungam de ideais semelhantes formam coligações e usam seus aliados em grandes manobras para manipular eficazmente as decisões de um governo. Organizações internacionais, como o Foro de São Paulo, podem agregar desde partidos políticos até organizações de guerrilheiros traficantes de droga e articular “informalmente” decisões de nível continental. Grupos de guerrilha agem em diferentes pontos geográficos movidos por líderes locais, cuja eliminação não repercutirá de forma direta em outras células que continuarão combatendo.

Poder Comercial ou de Permuta
Redes podem garantir maior poder de fogo dentro do mercado ao gerar alianças formais ou informais, formando monopólios ou agindo em conjunto para destruir um oponente ou um grupo de orientação contrária. Células ilegais que se beneficiam de doações feitas por células legais da mesma rede podem, inclusive, utilizar o dinheiro “limpo” para financiar atividades proscritas, como o tráfico de drogas.

Poder Espiritual ou Intelectual
Células legais agem dentro da sociedade criando figuras de linguagem e símbolos autoexplicativos que tentam dar legitimidade à ideologia defendida pela Rede. Num grau mais avançado, a defesa intelectual da ideologia pode até mesma partir para a engenharia social mais radical, tornando factível a atividade de atos claramente ilegais ou idéias absolutamente criminosas.

Em todas as esferas, as células públicas, legais por definição ou aceitas pela sociedade, podem atuar com ou sem o conhecimento da ação simultânea de células ilegais, aceitando totalmente ou parcialmente as ações das mesmas. Em alguns casos existem conflitos entre algumas células legais e ilegais, mas no conjunto, a ideologia moverá a Rede num determinado caminho e se retroalimentará de forma positiva.

Para ilustrar, pode-se imaginar um conflito envolvendo uma organização hierárquica como o jogo de xadrez, tanto no agir quanto no pensar. O objetivo será a derrubada do rei. Com a eliminação da hierarquia do oponente, a batalha está vencida.


Quando se fala em redes, a estratégia muda completamente. O paralelo pode ser traçado com o GO, um jogo no qual o objetivo é cercar as peças do oponente tomando os territórios e delimitando suas bordas. Princípio básico na guerra cultural e na discussão intelectual, onde a delimitação de conceitos, de idéias e de limites pode garantir a vitória antes mesmo do primeiro embate.


Mas como combater uma rede?

Estruturas hierarquizadas como os Estados, por exemplo, podem realizar convênios em troca de informações e maior liberdade de ação entre fronteiras. Mas cria-se uma situação paradoxal como já foi descrito anteriormente no Seminário de Filosofia - a atenuação da soberania estatal deve ser mediada por uma estrutura supra estatal - o que gera, por sua vez, uma nova concentração de poder, englobando uma área ainda maior, e permitindo uma maior infiltração por células inimigas.

O combate na arena cultural, por outro lado, pode ser eficaz minando as bases mesmas de sustentação de Redes ilegais ou prejudiciais. Mas é claro que o poder intelectual, embora seja eficaz em longo prazo, direcionando os rumos até mesmo de grandes civilizações, tem um período de maturação muito amplo e lento, e pode demandar algumas gerações de espera para se mostrar eficaz. Talvez seja um dos preços a ser pago para se obter o sucesso na guerra contra uma rede corruptora e insidiosa.

Filho do Hamas – um estudo de caso

Lendo o livro “Filho do Hamas”, de Mosab Hassam Yousef, todo o esquema de funcionamento de uma rede se torna mais claro. De um ponto de vista pessoal, mais emotivo, o livro conta a história do jovem Mosab, filho de um dos líderes ideológicos do Hamas. O jovem, que tinha tudo para se tornar um grande líder islâmico dentro da rede do Hamas, foi capturado pelos israelenses e se tornou um espião para o serviço de inteligência interno de Israel. Durante o conflito recheado de atrocidades, o jovem participa do perigoso jogo político e militar entre palestinos e israelenses.

Confuso e repleto de dúvidas existenciais e religiosas, Mosab encontra novamente o rumo de sua vida ao se converter ao cristianismo.

Mas o objetivo aqui é traçar os paralelos entre a descrição do fenômeno de guerra em redes e a descrição da estrutura interna do Hamas oferecida por Mosab.

Algumas das principais características:

- ausência de uma liderança fixa. O próprio protagonista usa a figura mitológica da hidra para descrever a organização (corte uma cabeça e outras duas surgem);

- a liberdade de ação das células, gerando ações muitas vezes contraditórias, mas quase sempre garantindo o elemento surpresa;

- as múltiplas frentes de ação, incluindo ações pacíficas e de cunho intelectual e espiritual, como aquelas exercidas pelo pai de Mosab, um influente homem santo do Islã (Imãn); ações de guerrilha e destruição, mesmo que desagradáveis a alguns membros, ainda assim toleradas; e ações políticas, agindo até mesmo contra as vidas do povo palestino, mas orquestradas dentro de um contexto estratégico maior;

- a força da cosmovisão como cola ideológica de uma rede;

- a extrema dificuldade em se eliminar uma rede, mesmo quando células volumosas e influentes são derrubadas.

Independentemente do conteúdo histórico e experiencial, o livro Filho do Hamas é um estudo interessante do funcionamento de uma rede vista por dentro. Vale como ilustração do que foi discutido aqui.