Publicado originalmente no Portal Academia Médica: http://academiamedica.com.br/justica-como-virtude-medico/
A
virtude da Justiça busca dar a cada um o que lhe é devido. Não é muito
necessário enfatizar como hoje a discussão do que é o justo a fazer se alastra
pela sociedade causando debates intensos e agressivos como um incêndio subindo
o morro sob forte ventania.
Fala-se
do bem comum, do bem para o indivíduo e do bem para a profissão médica.
Mediando essas tensões como horizonte orientador está a Justiça, mesmo que
fragmentada e quase eclipsada pelo relativismo nosso de cada dia.
Na
civilização cristã, um precioso adendo foi ressaltado no contexto da busca pela
Justiça: a Caridade. Em si, a Caridade é uma virtude cristã aliada à compaixão
e, ocasionalmente, ao perdão. Na profissão médica também funciona como a
moduladora da Justiça: não cabe ao médico julgar seu paciente quanto ao
merecimento de algum bem, parte-se do princípio que o médico faz o bem de forma
indiscriminada a todos os que o procuram[1].
Manteve-se uma prática de caridade na
profissão médica ao longo dos séculos e, inclusive, de crítica à falta de
caridade por parte de médicos que traíram seus juramentos e compromissos.
Espera-se do médico uma prática concreta de Justiça temperada pelo amor que a transmuta
e faz com que seja transcendido o mero sentimento legalista[2].
É muito
triste e decadente observar a profissão médica entrar na fase de degeneração
conhecida como fase burocrática de uma profissão[3],
na qual o médico cumpre apenas uma obrigação contratual, um papel social, um
protocolo ou uma peça na engrenagem impessoal que lida com o ser humano de
forma mecânica e fria[4].
Frente à
sociedade, a virtude da Justiça leva o médico a pensar no próximo e em seu
dever como membro de uma sociedade e da comunidade moral terapêutica.
É a
Justiça, inegavelmente ligada ao princípio de não-maleficência, que permite ao
médico quebrar o sigilo profissional se estiver diante de um caso no qual a
vida de um terceiro está sob risco, como no caso de um indivíduo HIV positivo
que se nega a informar e proteger o(a) cônjuge. Há uma certa “intromissão” do
bem coletivo dentro da prática do bem individual, atestando que as divisões
entre as duas modalidades são, por fim, abstrações. Úteis mas, ainda,
abstrações.
É a
Justiça que nos coloca diante de problemas que chocam nossa prática ou os
anseios da sociedade com os valores que sustentam toda a profissão ou com as
exigências de autoridades seculares que nos sãos superioras hierarquicamente;
como é o caso da legalização do abortamento voluntário.
É o
sentimento de Justiça que permite ao médico alegar objeção de consciência,
acusado pela Justiça que transcende o aspecto legalista de regras mortas no
papel, tantas vezes incapazes de traduzir a riqueza de experiências e dilemas
que é a vida humana, inspiradora de tantas poesias e tragédias.
É a
Justiça aliada à Prudência que equilibrará na melhor forma possível o
infindável conflito entre o bem para o indivíduo e o bem para a sociedade. E o
médico só poderá utilizar essas duas virtudes, e todas as outras por fim, se
entregar-se realmente à sua vocação de amigo e bom samaritano: auxiliar o
próximo.
Prof. Dr. Hélio Angotti Neto
Doutorado em Ciências Médicas pela FMUSP
Médico Oftalmologista pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia
Coordenador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina – SEFAM
Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo – UNESC
Diretor Editorial da Mirabilia Medicinae, revista especializada em Humanidades Médicas
[1] Mesmo ao político
petista corrupto e detrator de médicos, como já disse em outro lugar.
[2] PELLEGRINO, Edmund D.; THOMASMA, David C. The Virtues in Medical Practice. Oxford: Oxford University Press, 1993, p.
94-95.
[3] Diego Gracia, em seu
livro que é referência obrigatória em Ética Médica e Bioética – Fundamentos de
Bioética – divide as profissões clássicas em três fases: carismática,
tradicional e burocrática. Alguém tem alguma dúvida sobre em qual fase nos
encontramos? Cf. GRACIA-GUILLÉN, Diego. Fundamentos de Bioética. Madrid,
Espanha: Editorial Triacastela, 2008.
[4] Talvez uma das grandes
tentações do funcionarismo público.