segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

FORTITUDE, A CORAGEM MORAL

Artigo publicado originalmente no Portal Academia Médica


 Você já viu alguém corajoso? Aquele que diante de uma ameaça à sua integridade física resiste ao impulso de simplesmente correr ou se entregar? Cada dia fica mais raro, obviamente, mas não é no campo físico que atua a fortitude ou resiliência, o equivalente moral da coragem.

No campo físico da coragem, o médico atua quando enfrenta guerras e condições inóspitas para ajudar o próximo (médico sem fronteiras), quando auxiliar pessoas com doenças infecciosas e mortais e quando opera pacientes com doenças transmissíveis pelo sangue, colocando sua vida em risco em prol do bem para o paciente.

Exemplos de coragem médica atravessam os séculos, com relatos de médicos que enfrentaram a peste - mesmo sem saber como era transmitida -, relatos de médicos que não fugiram de grandes tragédias e “ficaram para trás” junto aos feridos e muitas outras situações heroicas. É claro que tal atitude heroica não se pode cobrar de ninguém, embora se espere em certa medida daquele que diz ser médico.

Já a fortitude é a capacidade de lidar com problemas e desafios de ordem moral sem se abalar, sem ceder, sem perder a compostura. É resistir à pressão do grupo, à pressão da sociedade ou à covardia moral para buscar acima de tudo o que é certo para o paciente.

Mas assim como a coragem física, seu excesso pode significar problema! No caso da coragem, seu excesso pode simplesmente traduzir-se em ousadia irresponsável e estupidez, levando o indivíduo a enfrentar obstáculos desnecessários e situações impossíveis, beirando a loucura. No caso da fortitude, o médico precisa abalar-se pelo menos o pouco suficiente para criar um vínculo empático eficaz com o seu ambiente, evitando ceder no terreno moral mas compreendendo que não habita um mundo paradisíaco em meio a anjos e, sim, um mundo repleto de problemas, conflitos, dúvidas, sofrimento e múltiplas necessidades cobrando decisões difíceis.

“Médicos precisam da fortitude para fazer a coisa certa que é esperada e exigida que ele faça, dada sua opção de vida.[1]” É fazer o que deve ser feito mesmo que os outros estejam fazendo o errado. É negar, numa linguagem teológica, a influência do “mundo”.
Outro sinal de fortitude – a coragem moral – é simplesmente negar a forte tendência de mediocridade de nossos dias, de impessoalidade crescente na prática médica.

Há uma grande pressão para orientar nossa profissão rumo a protocolos, procedimentos quase que automáticos, cotas, limites de atendimento, tratamento impessoal – muitas vezes disfarçado sob o nome de igualdade de prestação de serviços, só que ao invés de prestar um serviço igualmente valioso, presta-se um serviço igualmente medíocre – e aderência à moral minimalista.

Lembro do fantástico título da obra de Robert Musil: O Homem sem Qualidades[2]. O médico sem fortitude é um médico sem qualidades. É um burocrata. Ele está seco e morto, é um cadáver ambulante. Qualquer um lhe dirige, pois sua consciência já não habita nele. Ele tombará para onde o vento soprar.




[1] PELLEGRINO, Edmund D.; THOMASMA, David C. The Virtues in Medical Practice. Oxford: Oxford University Press, 1993
[2] MUSIL, Robert. O Homem sem Qualidades. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira – Sinergia, 2006.