Espantalhos, Nazistas e Coerência
Ética
Alguns seres humanos têm a capacidade de nos
surpreender ao tornarem realidades as mais estapafúrdias hipóteses.
Explico melhor...
O que era hipótese grotesca e chocante virava
realidade da noite para o dia.
Mas quando acho que posso tomar fôlego, eis que
um novo fato surpreende. Em um dos melhores periódicos médicos do mundo é
publicado um comentário no mínimo curioso, demonstrando certa indignação com a
indignação alheia, reclamando dos incoerentes defensores da dignidade da vida humana[1].
Mas fico surpreso porque o artigo inteiro nada mais é do que uma série de
proposições falaciosas ao redor de um grande espantalho[2]
inventado pela autora Alta Charo, importante bioeticista da Universidade de
Wisconsin, nos Estados Unidos.
A autora começa reclamando sobre as grandes “vias
de esperança” (avenues of hope) que
poderão ser destruídas pelo ativismo de grupos politiqueiros. Segundo ela:
“(…) essas vias de
esperança [para pacientes atuais e futuros por causa da pesquisa com tecido
fetal] são ameaçadas [por meio do corte de verbas federais para a Planned
Parenthood] por uma luta política pura – um aluta que, neste caso, não vai
afetar de forma alguma o número de fetos abortados ou trazidos a termo,
objetivo alegado pelos ativistas envolvidos.”
"(...)
those avenues of hope [for current and future patients because of fetal tissue
researching] are being threatened [by the Federal defunding of Planned
Parenthood] by a purely political fight – one that, in this case, will in no
way actually affect the number of fetuses that are aborted or brought to term,
the alleged goal of the activists involved.”
Há vários erros no raciocínio exposto.
Declarar que tudo não passa de uma briga política
é cometer um dos grandes crimes filosóficos dos quais se tem notícia:
reducionismo. Reduzir à politicagem uma questão que toca no valor da vida
humana e na dignidade da vida e nos limites de definição do que é digno,
correto ou errado fazer é, no mínimo, uma barbaridade. É ignorar, ou preferir
não reconhecer, que há sim elementos políticos na discussão, mas que esta
discussão é algo muito mais sério, amplo e profundo do que a política, é uma
questão que aborda diretamente a cosmovisão de toda uma nação, senão de uma
civilização. É uma questão essencial para a definição de quem são afinal os
norte-americanos.
Alta Charo também parece melindrada sobre
bagunçar esperanças alheias em grandes descobertas num futuro hipotético. Mas,
desde que Hans Jonas publicou sua obra chamando a atenção da comunidade mundial
de bioeticistas sobre o princípio da Responsabilidade e do Temor[3] -
sendo acusado por muitos incautos de conservador justamente por não advogar o
progresso científico acima do bem do indivíduo concreto e real de nosso tempo
-, analistas prudentes perceberam que nenhuma esperança em algo hipotético e,
portanto, opcional, no futuro, pode justificar uma falha ética no presente.
Logo, não há razões para melindres a respeito de expectativas futuras se houver
razões para melindres a respeito de falhas éticas graves no presente.
E verdade seja dita: o que mais se tem quando se
fala em Células Tronco Embrionários é esperança.
Dizer também que o número de abortos não
diminuirá por meio do ativismo político e social de defensores da vida de fetos
e bebês também não é uma proposição muito adequada. Há que se ter um pouco mais
de cautela, pois numa situação relativamente nova no conhecimento geral e pouco
pesquisada e analisada, não se sabe se a disponibilização de um mercado de
pedaços de bebês e fetos não geraria um grande aumento do número de abortos. Da
mesma forma, não se pode afirmar que a proibição da destinação de verbas
federais à Planned Parenthood não geraria uma redução no número de abortos.
Quem sabe? Eu não sei, e creio sinceramente que Alta Charo também não pode
afirmar saber.
A seguir ela diz que:
“Ao ver de perto a
pesquisa em tecido fetal, observa-se o dever de usar esse precioso tecido na
esperança de encontrar formas de prevenir ou tratar doenças devastadoras.
Virtualmente qualquer pessoa neste país se beneficiou da pesquisa com tecido
fetal. Todas as crianças que foram poupadas dos riscos e sofrimentos da
catapora, rubéola ou pólio podem agradecer aos ganhadores do Prêmio Nobel e
outros cientistas que usaram tal tecido para produzirem a vacina que nos
protege.”
“A
closer look at the ethics of fetal research, however, reveals a duty to use
this precious resource in the hope of finding new preventive and therapeutic
interventions for devastating diseases. Virtually every person in this country
has benefited from research using fetal tissue. Every child who’s been spared
the risks and misery of chickenpox, rubella, or polio can thank the Nobel Prize
recipients and other scientists who used such tissue in research yielding the
vaccines that protect us.”
Realmente o número de pessoas que se beneficiou
com o uso de tecido fetal é incontável em quase um século de vacinas. Mas do
fato que se pode utilizar tecido fetal para beneficiar o próximo não se
depreende que tal tecido tenha que ser colhido de ações eticamente questionáveis.
Por que não colher apenas tecido fetal decorrente de situações eticamente
inquestionáveis como aquelas em que ocorre aborto espontâneo ou traumático
acidental? Por que não investir em meios de pesquisa mais avançados para
proliferar o tecido obtido por meios menos controversos e fornecer material
suficiente para pesquisa sem incorrer em questões existenciais que podem
comprometer os valores de todo um povo?
Ou por que não investir em novos tecidos e novas
técnicas capazes de evitar problemas éticos?
Acomodar-se, cobrar coerência e continuidade em
relação a determinada linha de pesquisa e ridicularizar um dos lados da questão
não parece ser realmente o melhor caminho. E se eu quiser fazer o meu
espantalho também, parece algo bem reacionário dentro de um contexto
progressista, se é que vocês me entendem...
Há também a cobrança de uma coerência por parte
dos defensores enragé da vida:
“Críticos apontam para os abortos por trás da
pesquisa, afirmam que são antiéticos, e argumentam que a sociedade não pode
endossá-los ou até mesmo beneficiar-se deles, sob o risco de encorajar mais
abortos ou tornar a sociedade cúmplice com o que eles veem como um ato imoral.
No entanto, eles têm se utilizado sobremaneira das vacinas e tratamentos
derivados da pesquisa com tecido fetal, e não dão indicação de que irão abrir
mão de benefícios obtidos. Justiça e reciprocidade sugerem que eles têm o dever
de apoiar o trabalho, ou ao menos, não o atrapalhar. ”.
“Critics
point to the underlying abortions, assert that they are evil, and argue that
society ought not implicitly endorse them or even indirectly benefit from them,
lest it encourage more abortion or make society complicit with what they view as
an immoral act. Yet they have overwhelmingly partaken of the vaccines and
treatments derived from fetal tissue research and give no indication that they
will forswear further benefits. Fairness and reciprocity alone would suggest
they have a duty to support the work, or at least not to thwart it.”
Alta Charo cobra um determinado tipo de coerência
no mínimo questionável. Exemplifico com uma analogia.
Suponhamos que a medicina nazista, utilizando
judeus, prisioneiros de guerra ou crianças com retardo mental, tenha produzido
um avançado medicamento no passado que salvou muitas vidas arianas e não
arianas até os dias de hoje. Utilizar tal medicação e reconhecer seu benefício
não quer dizer que, automaticamente, há que se assumir um compromisso em seguir
fazendo pesquisa e medicina nos moldes nazistas, ou utilizando judeus, crianças
deficientes ou prisioneiros.
É muito mais coerente cobrar que, ao ser
descoberta uma ameaça à ética, tal ameaça seja imediatamente avaliada e que
chances de perpetuar um erro sejam suspensas até que se saiba melhor qual
caminho tomar. Parar com a “venda” de fetos ou suspender temporariamente o
aporte de novos espécimes para pesquisa não implicará imediatamente no fim das
pesquisas com os tecidos fetais já colhidos, ou até mesmo na coleta de novos
tecidos à medida em que novos abortos espontâneos ou sob condições mais seguras
do ponto de vista ético continuem acontecendo.
A autora prossegue menosprezando a perspectiva
alheia e declara que:
“(...) parece óbvio que as necessidades de pacientes
de hoje e do futuro superam o que só podem ser gestos simbólicos ou políticos
de preocupação. ”
“(...)
it seems clear that the needs of current and future patients outweigh what can
only be symbolic or political gestures of concern.”
Só parece óbvio, mas não é. Nesse esquema lógico,
uma premissa não bate. Há uma falta de empatia mortal ao debate intelectual. O
pressuposto de que se está ao lado da verdade e do bem, e que o próximo é um
hipócrita interesseiro ou um simplório incapaz de sentimentos genuínos e
profundos não parece contribuir para o ambiente respeitável de diálogo e
compreensão que a Bioética exige.
Dra. Charo também observa uma ironia, que
descreve como o fato de que:
“reduzir o acesso à contracepção [ao deixar de
custear com verbas do governo a Planned Parenthood, que também atua na
distribuição de anticoncepcionais] é o caminho mais certo para aumentar o
número de abortos.”
“reducing
access to contraception is the surest way to increase the number of abortions.”
Mas antes de ser uma ironia há uma possibilidade
em jogo. Pode muito bem ser possível que outras organizações sem entraves
éticos como a Planned Parenthood tomem para si o papel de orientar acerca da
contracepção. Pode ser que novos serviços surjam. Pode ser que o número de
abortos até diminua, afinal de contas, quem faz o aborto e o defende pode, de
uma hora para outra, não estar lá. Não é possível afirmar que tirar verbas do
contribuinte norte americano da megaempresa abortista aumentará de fato o
número de abortos. Isso seria brincar de prever o futuro sem muita
fundamentação em exemplos históricos.
Por fim, o artigo encerra com um tom fortemente
retórico e emocional, tentando exibir a feiura moral daqueles que discordam:
“Esse ataque representa uma traição Às pessoas
cuja vida poderia ser salva pela pesquisa, e uma violação do dever mais
fundamental da medicina e da política de saúde, o dever de cuidar.”
“This
attack represents a betrayal of the people whose lives could be saved by the
research and a violation of that most fundamental duty of medicine and health
policy, the duty of care.”
Se o ataque é uma traição a pessoas do futuro,
porque a venda de órgãos de fetos e bebês não seria uma traição aos seres
humanos do presente? Se o dever fundamental da medicina e das políticas de
saúde é cuidar do próximo, onde está o cuidado com as vidas interrompidas, ou
com a sua dignidade?
A preocupação da doutora Charo é plenamente
compreensível e respeitável dentro de uma perspectiva progressista e cientificista.
O mínimo que se espera de alguém de sua importância como figura pública,
bioeticista e educadora, é um esforço genuíno para compreender que a postura
daqueles que ela chama de traidores e politiqueiros também é respeitável dentro
de suas próprias perspectivas.
Criar espantalhos ou menosprezar problemas éticos
nessa altura do campeonato não ajudará em nada ao debate bioético de qualidade.
Hélio Angotti Neto
Dean of UNESC Medical School
Seminar of Philosophy Applied on Medicine
www.medicinaefilosofia.blogspot.com.br
[1]
CHARO, Alta. Fetal Tissue Fallout. New England Journal of Medicine, 373(10), September 3, 2015, p.
890-891.
[2]
Evocar um espantalho numa discussão, debate ou argumentação é criar uma versão
estereotipada de seu “adversário” e passar a atacar a própria criação ao invés
de abordar a pessoa real com quem se relaciona.
[3]
JONAS, Hans. Princípio Responsabilidade
– Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, RJ: Editora
Contraponto, 2006.