sexta-feira, 8 de setembro de 2017

RESENHA: A HISTÓRIA DA IDÉIA DE RAÇA

RESENHA: A HISTÓRIA DA IDÉIA DE RAÇA

Livro de Eric Voegelin



Em seu livro The History of the Race Idea. From Ray to Carus[1] (A História da Idéia de Raça. De Ray a Carus), Voegelin aborda a ideia de raça, que é, sem dúvida nenhuma, um elemento crucial na política de hoje, como demonstrará qualquer conversa que demore mais do que cinco minutos sobre ações do governo envolvendo cotas ou distribuição de renda.

Expressões como racismo, cotas raciais, nazismo, marginalização dos excluídos, discriminação e muitos outros são utilizados sem dó nem piedade, infestando o cotidiano das discussões acadêmicas ou populares. Como ampliar nossa compreensão a respeito de tais expressões e fugir da vulgaridade demencial que se observa?

Voegelin oferece uma contribuição valiosíssima para quem deseja pensar o assunto de forma séria ao rastrear a origem e a evolução da idéia de raça, seguindo o estilo de suas grandes e vastas obras: História das Idéias Políticas e Ordem e História.

Na introdução de seu livro, Eric Voegelin aborda o fenômeno chamado de raça justamente pela constatação de que há uma imagem primordial do homem, sobre a qual se fundamentam juízos, percepções de potenciais e ações. Há diversas formas de se enxergar o ser humano, e tais formas ou imagens mudam entre culturas e com o passar do tempo.

A idéia de raça é buscada no tempo até a concepção antiga dos cristãos primitivos no que diz respeito à raça eleita, uma nova imagem moldada em conformidade com o Cristo-Deus em contraste com a imagem do pagão, destituído do modelo divino e inferiorizado. Tal visão a respeito do homem coloca-o centrado em uma alma imortal e indivisível diante de seu destino igualmente imortal, caminhando para uma nova existência em glória com um corpo modificado na nova terra sob novos céus. Nessa antiga visão, não caberia falar a respeito de uma raça neste mundo, no qual o Evangelho deveria se espalhar a todos os povos, tornando-os irmãos destinados a alcançar a perfeição e a perfeita comunhão no além.

Com a idade moderna e as filosofias seculares, a ideia de perfeição humana é secularizada e transportada para o processo histórico imanente, a tão famosa imanentização do Eskathon. Com Immanuel Kant, fortalece-se a imagem do humano autônomo bipartido entre sua natureza racional e, portanto, boa, e sua natureza sensorial, mentirosa e, portanto, má. Ideias que guardam claras analogias com o antigo gnosticismo. Segundo essa antiga heresia, tudo o que é material é maligno, e foi criado por um tipo de deus inferior, enquanto a pureza destinara-se ao mundo espiritual.

A vida orgânica, para muitos estudiosos, torna-se uma imagem de caráter autônomo entre o reino das coisas mecânicas e o reino da racionalidade. Já não é um veículo de uma alma transcendental.

A imagem da alma indestrutível e eterna, que supera todo o mundo em duração, é substituída pela imagem do homem racional que habita sua máquina irracional. Daí o destino desse homem invariavelmente prender-se à realidade imanente como doadora de propósito. Não havia como harmonizar a imagem da alma rumo à Glória de Deus com a imagem do ser racional que habita um corpo restrito à imanência.

Para os cristãos, a pessoa estava em uma peregrinação, era a imagem de alguém em sua evolução para o destino final. A nova imagem exibiu um organismo humano autônomo, com regras próprias, que progrediu para a imagem mais próxima de nosso tempo: um organismo que respeita uma ordem interna de sua espécie inerente à natureza, não criada, mas evoluída de sucessivas mudanças intracósmicas, isto é, imanentes. É claro que tal perspectiva mais contemporânea é completamente hostil à vida contemplativa do espírito.

Tais imagens primordiais acerca do ser humano, muitas vezes encarnadas por arquétipos que determinam a história e a vida de incontáveis pessoas, tais como o Cristo, Buda ou César, devem ser compreendidas em seu contexto concreto. E são essas imagens extremamente contraídas, repletas de significados que podem ser desdobrados em infinitas vidas, que geram o solo para uma visão antropológica.

A visão antropológica materialista que, por definição, tentará explicar o ser humano em sua imagem fragmentada, pode ser acusada de autocontradição ao tentar reduzir o fenômeno da vida humana ao seu elemento material bruto, visto que a própria explicação do que seria a vida humana, se é que alguém pode oferecê-la, já não seria material.

Eric Voegelin se baseou nessa apreensão da forma de se enxergar a imagem do homem para discorrer sobre a história dessa coisa que chamamos de raça. Utilizando relatos históricos e acadêmicos como lentes para enxergar o mundo, Voegelin realiza um amplo esforço empático de compreensão das ideias que geraram nosso tempo.

Para os modernos - propagadores do racionalismo de Descartes e dos anseios do Iluminismo -, o ser humano era uma junção do espírito ou alma - seu elemento racional - com a matéria ou corpo - seu elemento “natural” ou animal. Embora aqueles pensadores classificassem os seres vivos da natureza, o homem escapava à inclusão plena no mundo natural por possuir um elemento que o aproximava do divino, um elemento racional que tornava a todos os homens irmãos, apesar das diferenças em seus aspectos materiais, tratados não pelo nome de raça, mas por classificações quanto a locais, nações e culturas. Assim foi pensado pelos primeiros que se debruçaram sobre classificações dos elementos da natureza na época moderna, como Lineu, Buffon, Herder e Ray, este último já acreditando no possível surgimento gradual das espécies, não como um projeto evolutivo – conforme o pensamento mais tardio -, mas como um projeto de revelação gradual de Deus por desvelamento de múltiplas camadas potenciais, já presentes desde o primórdio.

Essa visão alterou-se com contribuições posteriores, como aquelas feitas por Wolff, Leibniz, Oken, Blumenbach e Kant. O corpo integrou-se à alma e, progressivamente, o mesmo corpo passou a abarcar a alma e a determiná-la. Tal evolução chegou à etapa na qual uma idéia radicalmente imanente de parentesco entre as formas que evoluíam progressivamente surgiu, depondo contra a idéia criacionista de fixidez das formas.

Por fim, Voegelin acusa a total imanentização da pessoa como elemento que viabilizou a concepção de raça observada no século XX. O corpo passa a limitar e determinar a alma. Em pensadores como Carus, o corpo já não era a parte menos nobre do homem, responsabilizado pela fraqueza, pela limitação e pela sensualidade imposta à alma; o corpo era a fundação sem a qual não haveria a possibilidade de permitir a plena evolução do espírito.

De almas que qualificavam e diferenciavam corpos, chega-se à situação na qual corpos determinam o potencial evolutivo de almas. Dessa percepção, a conclusão óbvia foi a de que havia raças mais evoluídas e que permitiriam a manifestação de seres mais elevados do que outras raças denominadas inferiores.

Essas colaborações feitas por Carus levaram nossa civilização diretamente à idéia da raça como moldadora da realidade política, com todas as suas terríveis consequências para a humanidade e toda a depreciação da condição humana.

A raça, derivada de postulados ideológicos, tornou-se uma ferramenta para interpretar a vida do indivíduo e a vida da sociedade, assim como tornou-se um instrumento de planejamento de ações de grande repercussão na sociedade, projetando um futuro derivado dos potenciais raciais hipoteticamente descobertos no presente.

Copio as palavras do próprio Eric Voegelin, de quem parece a mim impossível discordar sem perder a razão e o coração:

“Olhemos a teoria contemporânea de raça – veremos uma imagem de destruição (...). É um pesadelo imaginar que deveríamos reconhecer as pessoas a quem deveríamos seguir e que deveríamos deixar que se aproximassem de nós não pela sua aparência, pelos seus gestos ou pelas suas palavras, mas pelo seu índice craniano.”

“O homem como substância histórica e como complexo corpo-mente não pode ser explicado por nenhum outro elemento que seja menor do que o próprio homem.”

Hoje observo a criação de verdadeiros tribunais raciais, responsabilizados com a torpe missão de averiguar a pureza da alegação alheia de pertencer a determinada raça para que haja ingresso em cargos públicos ou em vagas universitárias em detrimento de pessoas que nasceram com a cor de pele errada. Eric Voegelin rastreou a idéia de raça e percebeu as bases frágeis que a sustenta, criticando o uso desse conceito tão elástico ao longo da história para hoje fundamentar medidas governamentais. No Brasil hodierno, imagino que Voegelin sentiria um terrível calafrio, uma sensação de iminente perigo diante do ressurgimento de uma antiga mentalidade racista, só que agora vestida em novos matizes, em novos contextos.

A idéia de que tenhamos mérito ou demérito pela cor de nossas peles ou por feitos de antigas pessoas das quais descendemos por causa da raça permanece atual, e a história das idéias sobre a raça ainda progride com novos desenvolvimentos e antigas ameaças.

VOEGELIN, Eric; HEIN, Ruth (Translator); VONDUNG, Klaus (Editor). The History of the Race Idea. From Ray to Carus. The Collected Works of Eric Voegelin Volume 3. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1998, 189p.





[1] The History of the Race Idea. From Ray to Carus The Collected Works of Eric Voegelin Volume 3. HEIN, Ruth (Tradutora); VONDUNG, Klaus (Editor). Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1998.