quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O NOVO JURAMENTO DOS MÉDICOS - A DECLARAÇÃO DE GENEBRA

A NOVA DECLARAÇÃO DE GENEBRA

Hélio Angotti Neto

1. A Nova Declaração de Genebra

Apresento uma tradução pessoal livre da nova Declaração de Genebra e a comparo com a versão anterior e com o antigo Juramento de Hipócrates, tecendo alguns comentários que julgo pertinentes para o entendimento do texto, para a reflexão aprofundada e para o ganho pessoal do profissional ligado à saúde, principalmente do médico.

Na primeira parte, compararei as duas últimas versões da Declaração de Genebra. Na segunda parte, compararei a esfera dos valores contidos na atual declaração com a respectiva esfera de valores do antigo Juramento de Hipócrates e com outros trechos que denotaram o profissionalismo hipocrático no distante passado para contextualizar o âmbito no qual esses valores foram manifestados.[1]

Apresento a seguir o texto original, de livre acesso:

AS A MEMBER OF THE MEDICAL PROFESSION: I SOLEMNLY PLEDGE to dedicate my life to the service of humanity; THE HEALTH AND WELL-BEING OF MY PATIENT will be my first consideration; I WILL RESPECT the autonomy and dignity of my patient; I WILL MAINTAIN the utmost respect for human life; I WILL NOT PERMIT considerations of age, disease or disability, creed, ethnic origin, gen-der, nationality, political affiliation, race, sexual orientation, social standing, or any other factor to intervene between my duty and my patient; I WILL RESPECT the secrets that are confided in me, even after the patient has died; I WILL PRACTISE my profession with conscience and dignity and in accordance with good medical practice; I WILL FOSTER the honour and noble traditions of the medical profession; I WILL GIVE to my teachers, colleagues, and students the respect and gratitude that is their due; I WILL SHARE my medical knowledge for the benefit of the patient and the advancement of healthcare; I WILL ATTEND TO my own health, well-being, and abilities in order to provide care of the highest standard; I WILL NOT USE my medical knowledge to violate human rights and civil liberties, even under threat; I MAKE THESE PROMISES solemnly, freely, and upon my honour.

Abaixo, reproduzo minha tradução livre.

Na qualidade de membro da Profissão Médica, solenemente empenho minha vida ao serviço da humanidade. A saúde e o bem-estar de meu paciente serão minhas prioridades; respeitarei a autonomia e a dignidade de meu paciente; sempre manterei o supremo respeito à vida humana; não permitirei que fatores como a idade, a doença, a deficiência, a crença, a origem étnica, o gênero, a nacionalidade, a afiliação política, a raça, a orientação sexual, a classe social ou qualquer outro fator intervenha entre meu dever e meu paciente; respeitarei os segredos confiados a mim, mesmo após a morte de meu paciente; praticarei minha profissão de forma consciente e digna, de acordo com a boa prática médica; promoverei a honra e as nobres tradições da profissão médica; darei aos mestres, colegas e estudantes o respeito e a gratidão merecida; compartilharei o conhecimento médico para o benefício do paciente e para o aprimoramento do cuidado com a saúde; cuidarei de minha própria saúde, de meu bem estar e de minhas habilidades com o fim de prover o melhor padrão de cuidados com a saúde; não usarei o conhecimento médico para violar os direitos humanos e as liberdades civis, mesmo que seja ameaçado. Prometo de forma solene e livre e empenho minha honra.

2. As Modificações na Nova Declaração de Genebra

A mais recente versão da Declaração de Genebra foi publicada em 14 de outubro de 2017, destinada pela Associação Mundial de Medicina a substituir, de certa forma, o tradicionalíssimo Juramento de Hipócrates.[2]

Em relação à versão anterior, publicada em 2006, houve diversas modificações.

Logo no começo, observa-se uma mudança sutil. O texto original abria com a expressão “no momento em que sou admitido à profissão médica”.[3] Agora, simplesmente enuncia “na qualidade de membro da profissão médica”.[4] O título é mais abrangente, sendo que a versão mais antiga parecia denotar o compromisso somente no momento da formalização do vínculo profissional, talvez na formatura, ao fim do curso, para alguns. Na versão recente, pode-se interpretar que mesmo os estudantes estão submetidos aos ideais honrados da profissão, pois, de certa forma, são membros da profissão e devem ser cobrados pela sociedade por essa privilegiada posição.

A segunda modificação é o uso da expressão “empenho” ou “dedico” ao invés de “consagro”.[5] Há uma certa redução no escopo da expressão utilizada, uma perda do aspecto sagrado ou divino do que se convencionou chamar de vocação (chamado). A medicina é uma profissão predominantemente secular, o que não impede que pessoas de diferentes religiões a exerçam. Contudo, a sutil troca de expressões indica uma representação mais próxima de nossa realidade, na qual não se vê mais o exercício da profissão como algo “sagrado”, embora continue como um empreendimento nobre e de suma importância. A expressão anteriormente utilizada evocava justamente esse aspecto divino, essa dedicação pessoal a um elevado ideal percebido como sagrado. A versão atual assume uma postura mais secularizada, condizente com o perfil contemporâneo do médico e da medicina.

A expressão “bem-estar” é acrescentada à expressão “saúde do paciente”, intimamente ligadas ao que se chama de qualidade de vida.[6] À primeira vista, o acréscimo parece ser redundante, já que saúde é utopicamente definida como o “completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças”. Porém, a ênfase no bem-estar pode abrigar diversos efeitos ideológicos que serão levados em conta no cálculo do risco contra o benefício de certas terapias. Pessoalmente, acredito que a qualidade de vida, obviamente, é um importante aspecto no tratamento médico. Contudo, pode ser mal utilizada para a justificação de condutas controversas em bioética, como o abandono de pacientes caros ou o estímulo à eutanásia, ao abortamento e ao suicídio assistido. Como qualquer texto que lida com valores, seu conteúdo pode variar em termos morais conforme a moralidade dos olhos de quem vê, e um bom exercício hermenêutico é interpretar dialeticamente de ambas as formas, com o intuito de abranger as possibilidades textuais.

Fala-se hoje em encerrar o sofrimento com dignidade, ou em viver e morrer com qualidade. Em um contexto benevolente em que se valoriza de fato a vida humana, tais expressões podem denotar um cuidado especial e caridoso com o paciente sofrido. Em um contexto utilitarista e desmerecedor do valor da vida humana, são perigosos eufemismos utilizados pelo que denomino Disbioética.

Todavia, falo de uma declaração que invoca nobres fins e, logo após, no próprio texto, exibe uma cláusula de supremo respeito à vida humana. Opto por entender o trecho em questão sob um viés beneficente.

A seguir, há uma inclusão de um trecho inteiro, completamente ausente da declaração anterior: “respeitarei a autonomia e a dignidade de meu paciente”.[7] Tal inclusão demonstra a importância dada no presente ao que poderíamos chamar de respeito pelo paciente. A vontade do paciente, adequadamente informado e livre para escolher seus rumos, tornou-se oficialmente reconhecida no ambiente Bioético com a Declaração de Belmont, sob a expressão que descreve um dos seus três princípios: respeito ao paciente. Do respeito, a escola mais famosa de bioética, chamada de principialista, retira a inspiração para nomear o princípio da autonomia. O aparecimento desta expressão ligada à dignidade humana na Declaração de Genebra não somente reconhece a necessidade de se fazer uma medicina mais deliberativa[8], na qual o paciente participa de forma ativa, como também reconhece a restituição da autonomia ao paciente como um dos principais alvos da terapia médica, como é descrito por Eric Cassel na obra em que trata dos objetivos da profissão.[9]

A quinta modificação é uma inclusão. Ao antigo trecho “praticarei minha profissão de forma consciente e digna” se soma o novo trecho “de acordo com a boa prática médica”.[10] Esta inclusão reconhece o valor de se manter constantemente atualizado conforme o estado da arte e as mais recentes publicações e descobertas. A medicina muda rapidamente, e cabe ao médico zelar por sua atualização em prol do paciente.

Esta quinta alteração também pode ser entendida sob a perspectiva de se cobrar do médico uma postura mais técnica, de maior qualidade, evitando situações nas quais determinados profissionais agiam ao arrepio das normas profissionais mais recentes, porque acreditavam que o melhor a fazer era o que desejavam executar conforme seus entendimentos e experiências particulares, e não conforme os mais excelentes critérios prezados pela reunião dos membros mais capacitados de sua especialidade ou sociedade.

A sexta modificação é uma troca de expressões. Onde antes se lia “manterei, por todos os meios em meu poder, a honra e as nobres tradições da profissão médica”, agora se lê “promoverei a honra e as nobres tradições da profissão médica”.[11] O novo escrito remove uma afirmação absoluta e a relativiza um pouco, reconhecendo, talvez, o perigo hipotético de colocar a profissão médica e sua nobre tradição acima do bem do paciente. A percepção de que a profissão médica só é nobre enquanto beneficia o próximo é mais compatível com a discreta relativização promovida no novo documento.

A sétima modificação é a exclusão total de um antigo trecho anacrônico, “meus colegas serão minhas irmãs e meus irmãos”[12], para a inclusão de colegas e estudantes no seguinte trecho: “darei aos mestres, colegas e estudantes o respeito e a gratidão merecida”. Antes, somente lia-se “aos mestres”. Com essa modificação, noto uma busca pela maior simetria entre as partes, incluindo todos os membros da profissão médica na relação de respeito anunciada, enquanto se abandona um tom mais arcaico, mesmo que elegante ou inspirador.

A oitava alteração é a inclusão de dois importantes trechos ligados ao cuidado com a profissão e ao cuidado consigo mesmo.

O primeiro dos dois trechos incluídos no final preza a transmissão de conhecimento e a transparência nas pesquisas, elementos importantíssimos para a manutenção da ética nas terapias e pesquisas a nível mundial. O compartilhamento do conhecimento gerará progresso da arte médica e divulgará problemas que poderão nos ajudar a evitar perigos maiores para a saúde do paciente. Na redação da declaração recente, o trecho fica da seguinte forma: “compartilharei o conhecimento médico para o benefício do paciente e para o aprimoramento do cuidado com a saúde”.[13]

O último trecho acrescentado trata do cuidado com o próprio médico, muitas vezes negligenciado ao ponto de colocar em risco a vida do próprio paciente: “cuidarei de minha própria saúde, de meu bem-estar e de minhas habilidades com o fim de prover o melhor padrão de cuidados com a saúde”.[14] Além do cuidado com a saúde, cabe ao médico zelar pelo bom desempenho de sua prática, cuidando de sua habilidade e tendo consciência de seus limites, evitando colocar em risco a qualidade de um procedimento cirúrgico ou de um atendimento clínico.

A versão nova da Declaração de Genebra previsivelmente acompanha as discussões éticas mais recentes, e aborda pontos de grande importância. Considero que atualiza a linguagem utilizada quando comparada com a versão anterior e presta-se a ser uma boa forma de juramento para as atuais instituições de caráter não confessional instaladas em nações laicas, sem desrespeitar ou menosprezar as religiões tradicionais.

3. O Juramento Antigo e a Nova Declaração

Ao olharmos para o antigo Juramento de Hipócrates, em comparação, a primeira impressão, destituída de um trabalho hermenêutico adequado, provavelmente será a de total inadequação aos nossos dias.[15]

Eis o Juramento original.[16]

Juro por Apolo médico, Asclépio, Hígia, Panacéia e todos os deuses e deusas, e os tomo por testemunhas que, conforme minha capacidade e discernimento, cumprirei este juramento e compromisso escrito: considerar igual a meus pais aquele que me ensinou esta arte, compartilhar com ele meus recursos e se necessário prover o que lhe faltar; considerar seus filhos meus irmãos, e aos do sexo masculino ensinarei esta arte sem remuneração ou compromisso escrito, se desejarem aprendê-la; compartilhar os preceitos, ensinamentos orais e todas as demais instruções com os meus filhos, os filhos daquele que me ensinou, os discípulos que assumiram compromisso por escrito e prestaram juramento conforme a lei médica, e com ninguém mais; utilizarei a dieta para benefício dos que sofrem, conforme minha capacidade e discernimento, e além disso repelirei o mal e a injustiça; não darei, a quem pedir, nenhuma droga mortal, nem recomendarei essa decisão; do mesmo modo, não darei a mulher alguma pessário para abortar; com pureza e santidade conservarei minha vida e minha arte; não operarei ninguém que tenha a doença da pedra, mas cederei o lugar aos homens que fazem essa prática; em quantas casas eu entrar, entrarei para benefício dos que sofrem, evitando toda injustiça voluntária e outra forma de corrupção, e também atos libidinosos no corpo de mulheres e homens, livres ou escravos; o que vir e ouvir, durante o tratamento, sobre a vida dos homens, sem relação com o tratamento, e que não for necessário divulgar, calarei, considerando tais coisas segredo. Se cumprir e não violar este juramento, que eu possa desfrutar minha vida e minha arte afamado junto a todos os homens, para sempre; mas se eu o transgredir e não o cumprir, que o contrário aconteça.

Reforço que há necessidade de um trabalho hermenêutico adequado tendo em vista a óbvia dificuldade de transpor significados de uma época tão distante como a antiga Grécia para nossos dias.

Tal dificuldade pode ser enxergada de diversas formas. Uns diriam que não é possível compreender verdadeiramente os valores de outras épocas, afirmando que todas as verdades, incluindo as verdades morais, são relativas ao próprio tempo e à própria cultura vivida. Mas cairíamos no paradoxo do relativismo, destruindo a afirmação que acaba de ser feita, pois afirmar que toda verdade é relativa é uma afirmação absoluta em si mesma, como são afirmações absolutas todas as tentativas de transmitir significados.[17]

A posição mais próxima da verdade, prudente e útil é a de quem busca a ponte de contato entre as realidades distintas no tempo e no espaço com base no fundo comum e universal da experiência humana, elemento ontológico que fundamenta e permite as aproximações hermenêuticas e fenomenológicas que tornarão possível a reconstrução dos significados.

O filósofo brasileiro Ernildo Stein afirma em seu livro que “a reconstrução consiste em nos aproximarmos de um texto com a pressuposição de que existe uma história dos conceitos que nos dá possibilidade de converter o texto num texto atual. Isto quer dizer, reconstruir através de processos interpretativos o texto e dar-lhe uma forma contemporânea”.[18]

Essa aproximação é um dever a ser cumprido por todos aqueles que se dedicam ao esforço cultural empático, verdadeiro e de qualidade.

Como nos lembra Olavo de Carvalho na memorável conferência proferida durante o Simpósio Internacional “Formas e Dinâmicas da Exclusão”, da UNESCO, em 1997,

“Reencontrar o diálogo com o passado é reconquistar o sentido da unidade da espécie humana, e seria loucura pretender reintegrar na humanidade este ou aquele grupo que estejam hoje entre os excluídos e os discriminados, sem antes revogar a discriminação de toda a humanidade que nos precedeu”.[19]

Justificada essa aproximação com o passado, descrevo alguns pontos de similaridade entre a nova declaração e o antigo juramento.

Em ambos, há um profundo compromisso pessoal implicado. No juramento, o médico se empenha conforme sua capacidade e discernimento enquanto busca uma vida de pureza e santidade, aspectos virtuosos de sua personalidade que qualificam tanto a capacidade quanto o discernimento. Na declaração, o médico se compromete a exercer sua profissão com consciência e dignidade, mantendo-se atualizado em relação às boas práticas profissionais. Embora, no juramento, essas boas práticas não sejam expressamente mencionadas, há diversos trechos na obra hipocrática que tratam da necessidade de o aprendiz se aplicar aos estudos e a conhecer a bagagem teórica e empírica de seus antecessores, para tornar-se apto a evoluir progressivamente.

Na obra hipocrática Medicina Antiga,[20] lê-se um dos trechos que ilustram essa necessidade de seguir as boas práticas:

II. Aqueles treinados na arte médica por longo tempo têm seus meios à disposição, e descobriram tanto um princípio quanto um método, por meio dos quais as descobertas feitas ao longo de muito tempo são muitas e excelentes. E novas descobertas serão feitas se o inquiridor for competente, se conduzir suas pesquisas sobre o conhecimento já adquirido, tomando-os como ponto de partida. Mas qualquer um que deseja inquirir de forma alternativa ou seguindo outra orientação, deixando de lado e rejeitando tais meios, e afirma que encontrou algo, é e foi vítima do engano. Sua afirmação é impossível; e as causas dessa impossibilidade eu me esforçarei para expor por uma declaração e exposição do que a Arte é.

O cerne desses aspectos ressaltados é um compromisso individual com a prática capaz de alterar positivamente o ser do médico.

O respeito entre mestres a aprendizes continua presente, fornecendo o laço pessoal que reforça a transmissão de valores e conhecimentos ao longo das gerações. No juramento, a linguagem é arcaica e os costumes estão desatualizados, porém, a Declaração de Genebra consegue sintetizar o sentimento de respeito e gratidão em linguagem acessível e clara.

Também são pontos comuns entre os dois documentos a inclinação benevolente para atender ao próximo, evitando o mal e promovendo a justiça. O bem do paciente está ligado a termos atuais como bem-estar e saúde. A justiça é descrita em termos de Direitos Humanos e liberdades civis.

A defesa da vida humana também se encontra presente, apontada indiretamente no juramento ao prometer não abortar ou matar pacientes e diretamente na declaração ao dedicar supremo respeito à vida humana.

O exercício da medicina destituído de preconceitos em relação a classes sociais e sexo dos pacientes, presente no antigo juramento, é expandido consideravelmente na nova declaração, detalhando melhor as situações que podem se tornar fontes de discriminação durante a prática profissional.

O segredo profissional continua presente, com a ênfase na proteção, inclusive, da memória do paciente na nova declaração, ao declarar que será mantido o sigilo mesmo após sua morte.

E, por fim, o encerramento do juramento responsabiliza o médico em termos de sua vida e honra, como também o faz a declaração recente.

Há também diferenças reais ou aparentes importantes a serem notadas. O Juramento de Hipócrates possui um teor explicitamente sagrado, invocando deuses pagãos. A nova Declaração de Genebra possui uma linguagem bem mais secularizada e menos simbólica.

Embora alguns possam apontar a inegável origem civilizacional religiosa dos valores elevados contidos em ambos os documentos, é fato que vivemos em uma sociedade laica na maior parte do mundo.[21] Também é importante lembrar que a invocação dos deuses mitológicos no juramento grego aponta não somente as divindades da época, mas também aponta possibilidades da vida humana e da prática profissional. Neste sentido, Apolo representa a capacidade de o médico raciocinar e prognosticar, Hígia aponta a necessidade de cuidar dos bons hábitos de vida, Panacéia aponta o uso de fármacos para o tratamento enquanto Esculápio demonstra, com sua vida, diversas características desejáveis ao médico.[22]

Outra diferença marcante é a ênfase na autonomia do paciente, presente na declaração recente. Embora muitos bioeticistas critiquem o paternalismo hipocrático e a falta de autonomia delegada ao paciente no Juramento de Hipócrates, há diversos apontamentos ao longo da obra hipocrática e em outros textos da época que exibem o paciente como elemento importante na decisão terapêutica e agente ativo da relação médico-paciente. Trato especificamente esta questão em outros locais.[23]

Outro elemento de diferença que sobressai é a recusa hipocrática – bem anacrônica, na superfície - em realizar um procedimento cirúrgico, denotando conhecimento dos próprios limites e a necessidade de encaminhar o paciente nos casos em que não se pode atuar. Tais aspectos são contemplados, em parte e de forma indireta, na promessa de priorizar o bem-estar do paciente.

A tradição hipocrática prezava que o bom médico não deveria se furtar a obter a ajuda de seus colegas e mesmo a ajuda de leigos quando fosse preciso para o benefício do paciente. Quando se prioriza o bem do paciente, não há espaço para vaidades e arrogância.

4. A Interpretação Contextual da Declaração

Como já é bem sabido em Bioética, o simples fato de termos princípios de ação não garante a resolução de nossos problemas éticos. Tais princípios podem se chocar e gerar aparentes contradições e difíceis aporias.[24]

A colocação do supremo respeito à vida ao lado de princípios diretamente relacionados à autonomia do paciente, por exemplo, funciona mais como explicitação de um conflito do que como amplificação simples das ferramentas resolutivas em relação à versão anterior da declaração.

Como lidar com um paciente que não deseja viver com determinada doença e solicita o suicídio assistido num país onde há permissão para tal? Como balancear e priorizar a proteção respeitosa da vida humana em relação à autonomia do paciente? Qual princípio deve prevalecer? A Declaração de Genebra em si não responde essa questão.

Como lidar com a contradição inerente entre prometer respeitar a vida humana e realizar um abortamento? Este cruel dilema não se encontra explicitado na declaração, mas se apresenta claramente para o leitor de determinados códigos como o Código de Ética Médica da Associação Americana de Medicina, no qual os autores prescrevem a proibição da eutanásia e do suicídio assistido por serem atos que caminham contra a vocação de cura do médico, mas também prescrevem a permissão ética para o abortamento.[25] Como conciliar a permissão para o abortamento contida em novos códigos éticos com a percepção de que o médico não deve ser um entregador da morte e sim, um protetor da vida e da saúde?

A separação entre saúde e bem-estar também é um curioso ponto da declaração, reforçando um conceito que às vezes é utilizado para relativizar o valor absoluto da vida humana e graduar sua importância ou a pertinência de sua manutenção. Em uma sociedade cada vez mais afeita à eutanásia, ao abortamento e ao suicídio assistido, essa pode ser uma importante brecha.

Um ponto que merece destaque é a preocupação com o cuidado pessoal. Alertas importantes, sem dúvida, para nossos tempos repletos de casos de intensa fadiga e esgotamento nervoso de tantos médicos.
A preocupação com o aprimoramento da profissão também é uma adição bem-vinda, numa delicada profissão tão importante e tão central em diversos projetos de sociedade.

É claro que a Declaração de Genebra possui um elevado valor simbólico, embora não tenha a pompa e a pesada carga histórica e emocional do Juramento de Hipócrates. Todavia, é um documento que pode ser repetido durante uma formatura contemporânea sem causar o constrangimento daqueles que escutam as antigas e estranhas proposições hipocráticas sem o devido preparo cultural.

Como já dizem por aí, não faz realmente muito sentido anunciar o Juramento de Hipócrates em sua forma original. Contudo, é de suma importância estudar sua carga simbólica e seus significados mais profundos para compreender não somente a vocação médica e o rico legado cultural e moral da arte da cura, mas também para ajudar na compreensão de documentos éticos contemporâneos como a Declaração de Genebra, cuja raiz cultural está nas distantes civilizações de nosso passado.




[1] Essa linguagem para expressar a esfera moral da realidade foi baseada na obra de Alfonso López-Quintás. LÓPEZ-QUINTÁS, Alfonso. O Conhecimento dos Valores. Introdução Metodológica. São Paulo, SP: É Realizações, 2016.
[2] PARSA-PARSI, Ramin Walter. ‘The Revised Declaration of Geneva. A Modern-Day Physician’s Pledge’. JAMA. Published online October 14, 2017. doi:10.1001/jama.2017.16230
[3] “AT THE TIME OF BEING ADMITTED AS A MEMBER OF THE MEDICAL PROFESSION. ”
[4] “AS A MEMBER OF THE MEDICAL PROFESSION. ”
[5] Versão antiga: “SOLEMNLY PLEDGE to consecrate my life to the service of humanity.” Versão nova: “I SOLEMNLY PLEDGE to dedicate my life to the service of humanity.”
[6] Versão antiga: “THE HEALTH OF MY PATIENT will be my first consideration”. Versão nova: “THE HEALTH AND WELL-BEING OF MY PATIENT will be my first consideration”.
[7] Versão nova: “I WILL RESPECT the autonomy and dignity of my patient”.
[8] Um dos autores que melhor aborda a questão da deliberação em saúde e de como realmente promovê-la é Diego Gracia, em suas diversas obras na área de Bioética. GRACIA, Diego. Procedimientos de decisión en ética clínica. Madrid: Triacastela, 2008; GRACIA, Diego. Fundamentos de Bioética. Madrid: Triacastela, 2008.
[9] CASSEL, Eric J. The Nature of Suffering and the Goals of Medicine. Second Edition. New York, Oxford University Press, 2004.
[10] Versão antiga: “I WILL PRACTISE my profession with conscience and dignity”. Versão nova: “I WILL PRACTISE my profession with conscience and dignity and in accordance with good medical practice”.
[11] Versão antiga: I WILL MAINTAIN by all the means in my power, the honour and the noble traditions of the medical profession. Versão nova: I WILL FOSTER the honour and noble traditions of the medical profession.
[12] Versão antiga: “MY COLLEAGUES will be my sisters and brothers”.
[13] Versão nova: “I WILL SHARE my medical knowledge for the benefit of the patient and the advancement of healthcare”.
[14] I WILL ATTEND TO my own health, well-being, and abilities in order to provide care of the highest standard
[15] Faço uma extensa interpretação do Juramento em minha obra “A Tradição da Medicina”. ANGOTTI-NETO, Hélio. A Tradição da Medicina. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2016.
[16] Ibidem.
[17] O grande filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos percebeu tal fato muito claramente, e se propôs a realizar uma filosofia que denominou positiva no sentido de ser propositiva, provando, inclusive, a capacidade de enunciarmos verdades. SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia Concreta. São Paulo: É Realizações, 2009.
[18] STEIN, Ernildo. Aproximações Sobre Hermenêutica, 2ª edição. Porto Alegre, RS: ediPUCRS, 2010.
[19] “Les plus exclus des exclus: Le Silence des morts comme modèle des vivants defendus de parler”, Conferece at the UNESCO International Symposium “Forms and Dynamics of Exclusion, Paris, June 22-26, 1997. In: Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro: Estudos sobre o nosso lugar no mundo, 2a. edição, Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade Editora, 1997, pp. 82-111. Internet,http://www.olavodecarvalho.org/textos/mais_excluidos.htm#nota1
[20] HIPPOCRATES. Ancient Medicine. Airs, Waters, Places. Epidemics 1 and 3. The Oath. Precepts. Nutriment. JONES, W. H. S. (tradutor). Loeb Classical Library 147. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923, p. 14-15.
[21] O que não significa que a maioria da população não seja religiosa.
[22] ANGOTTI NETO, Hélio. Op. cit.
[23] ANGOTTI NETO, Hélio. Arte Médica Volume 1: Hipócrates e Cristo. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.
[24] Todos os interessados em aprender mais sobre princípios em bioética devem consultar a obra tradicional a esse respeito: BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Edições Loyola, 2011; BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics Seventh Edition. New York; Oxford: Oxford University Press, 2009.
[25] AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION. Code of Medical Ethics of the American Medical Association. Council on Ethical and Judicial Affairs. 2014-2015 Edition. American Medical Association, 2015.