quinta-feira, 15 de junho de 2017

HUMANISMO E CONSERVAÇÃO

Humanismo e Conservação

Serão as Humanidades Médicas um empreendimento conservador?


Antes de tentar responder, é preciso refletir sobre os termos e conceitos a serem utilizados. Tal passo deveria ser básico para qualquer um que queira abrir a boca para opinar, algo a ser feito preferencialmente após longos estudos e muita reflexão.

A expressão humanismo é utilizada no sentido de práticas humanas de engajamento na sociedade por meio da cultura de alta qualidade. Daí se entende que existe uma cultura de alta qualidade, denominada Alta Cultura, e uma cultura de baixa qualidade, hoje chamada indiscriminadamente de cultura, sendo que provavelmente jamais seria chamada de cultura em outros tempos. 

O elemento gerador dessa Alta Cultura nas grandes civilizações, sem dúvida nenhuma, é a religião. Logo, falar de humanismo não significa falar de empreendimento humanístico secularizado, mas de empreendimento humanístico de caráter geral, incluindo a perspectiva religiosa, originadora dos grandes símbolos que alimentam as artes em geral.

Também é preciso entender o significado das palavras “Conservação”, “Conservador” e “Conservadorismo”. Talvez seja mais fácil compreender esses termos falando primeiro sobre aquilo que o conservadorismo não é.

Conservar não é nutrir um sentimento de apreço ufanista pelo passado distante, denegrindo tudo o que hoje existe. O nome disso é saudosismo utópico. O conservador entende que no passado existiram coisas terríveis, e que muito do que hoje temos é fantástico, belo e bom. Ignorar as conquistas do presente é inaceitável.

Conservar também não é nutrir um sentimento de que no futuro teremos um destino perfeito e paradisíaco aqui nesta terra, no qual todo o mal será exterminado pelo esforço humano. O nome disso é progressismo utópico. O conservadorismo tampouco é o inverso do progressismo, este papel cabe ao saudosismo utópico.

Conservar não é a oposição sistemática à mudança. O nome disso é reacionarismo, uma forma de estacionar no tempo e evitar progressos ou retrocessos. O Conservador entende que retroceder e avançar fazem parte da vida.

Conservar não é uma ideologia, é uma forma de sentimento, de apreço pelo que deu certo e pelo que é seguro, sem trancar-se à realidade sempre mutável e, ao mesmo tempo, imutável em certos aspectos.

As Humanidades Médicas são conservadoras no sentido de que buscam recuperar e utilizar o que há de melhor no legado cultural da humanidade sem abrir mão dos aprimoramentos de cada dia. O antigo homem, de milênios anteriores, ainda é em termos humanísticos o homem de hoje. Possui sentimentos e experiências semelhantes em moldes novos. E o profissional da saúde deve compreender a essência humana se deseja ajudar ao próximo.

Apreender o passado é compreender o próximo de outras eras e de outras culturas, é humanizar-se.

Embora muitos liguem o projeto de humanização com base no legado cultural clássico com a idéia de intolerância ou reacionarismo, devo alertar que essa é uma mentira deslavada, pura difamação dos incompetentes e ignorantes que prefeririam morrer a ter que ler mais de vinte livros num ano (o recomendável é mais de cinquenta livros para quem deseja estudar as Humanidades Médicas).

Outros dirão que esse projeto de Humanidades Médicas ligadas ao legado da Alta Cultura pertence ao estudioso da torre de marfim, que se tranca longe do público em meio a seus livros. Outra mentira sem vergonha. Aos livros soma-se a experiência com o próximo. Todo profissional “humanizado” é um comunicador, um ouvinte atento de histórias da vida alheia, um entusiasta apaixonado pela experiência chamada de vida humana.

Com base nesses conceitos, afirmo que não existem Humanidades Médicas sem o empenho conservador corretamente compreendido. Pena que, no Brasil e em boa parte do mundo, a “novafala orwelliana” tenha transformado o termo conservador em tudo aquilo que ele realmente não é.


O paciente idoso, sentindo-se incapaz e sofrido com a aproximação da morte, ganhará muito mais de um profissional experiente que tenha lido Rei Lear de Sheakespeare, O Velho e o Mar de Hemingway, A Morte de Ivan Illitch de Tolstói e A Montanha Mágica de Thomas Mann do que ganharia com um ouvinte de funk carioca e leitor assíduo de quadrinhos da Marvel. Nada contra os ícones da cultura pop, mas nem tudo é uma simples questão de gosto, é uma questão de qualidade real e aplicabilidade.

Literatura e Imaginação Empática

A imaginação permite olhar para o paciente que veio em busca de auxílio e enxergar o mundo através de seus olhos. O médico se coloca no lugar do paciente e, de repente, está com câncer, será pai, encontra-se curado de uma doença grave ou apresenta um transtorno psiquiátrico. A imaginação é, de fato, um prodígio. Ela ergue pontes entre diferentes pessoas. Une mundos e enriquece vidas.

O médico, o enfermeiro ou o assistente social são capazes, por meio da experiência, do diálogo e da imaginação, de entrar no mundo alheio e compreender valores e perspectivas diferentes da sua. Como alguém ousa debater Bioética e Humanidades Médicas sem ter uma boa experiência de vida e uma larga intimidade com a cultura?

O crítico literário canadense, Northrop Frye, oferece em sua coletânea de ensaios preciosas observações sobre como a literatura enriquece nossa imaginação e promove a participação positiva e qualificada na sociedade.


Uma das utilidades mais óbvias (de se estudar o mundo da imaginação), penso eu, é o incentivo à tolerância: na imaginação as nossas próprias crenças são simples possibilidades, e ainda enxergamos as crenças das possibilidades alheias. Fanáticos e preconceituosos raramente tentam tirar algum proveito da arte – estão obcecados demais por suas crenças e ações para enxergá-las como talvez simples possibilidades.

O que produz a tolerância é o poder do distanciamento imaginativo, que nos permite tirar as coisas do alcance da ação e da crença. [1]

O médico que mergulha nas Humanidades vê muitas vidas nas páginas dos livros, nos lares e nos leitos das enfermarias hospitalares. Atende a um rico burguês ou a um presidiário escoltado com dedicação e excelência. Sabe que está lá para servir, não para julgar. Consegue imaginar-se na pele de um santo ou de um pecador, pois sabe que guarda elementos de ambos em sua alma, nutrida pela vida e pela Alta Cultura.

As construções da imaginação contam-nos coisas sobre a vida humana que não poderíamos saber de nenhum outro jeito.[2]

Hoje, no Brasil, as cadeiras relacionadas às humanidades parecem remar contra a maré milenar da Alta Cultura, censurando opiniões divergentes, apelando para o autoritarismo acadêmico e para a espiral do silêncio, proibindo certos nomes e obras, transformando o discurso erudito numa monótona cacofonia de poucos tons. Pessoas são divididas em classes ou grupos abstratos enquanto suas identidades, sua individualidade, são desacreditadas por sociólogos do Gulag.

Nos consultórios, postos de saúde e hospitais estão pacientes sofridos, ameaçados em sua integridade, gritando por socorro àqueles que verão um indivíduo, jamais um número numa pauta ou um objeto numa casuística. Pessoas sofridas não querem ser, de regra, burgueses, proletários ou revolucionários, eles querem ser a Dona Maria, o Seu João ou o Arthurzinho.

Como compreender uma individualidade sem imergir em incontáveis individualidades, pensamentos e emoções? Tais experiências são providas pela boa formação humanística, incluindo a boa literatura.

E, tantas vezes, fica a comunicação impedida ou restrita, pois a carência cultural omite significados, emudece sofrimentos. O médico precisa compensar a dificuldade de comunicação de seu paciente por meio do próprio crescimento cultural e imaginativo.

Ninguém é capaz de manifestar liberdade de expressão a menos que saiba usar a linguagem, e este conhecimento não é uma dádiva: precisa ser aprendido e trabalhado.

Não se pode cultivar o discurso para além de certo ponto a menos que se tenha algo a dizer, e o fundamento do que temos a dizer é a nossa visão da sociedade.[3]

A propaganda enganosa que tenta convencer o jovem de que liberdade é abandonar a “cultura ocidental” nada mais é do que oferecer as correntes espirituais que subjugarão a juventude, a imaginação e a verdadeira liberdade de seus corações. As Humanidades Médicas bem aplicadas oferecerão os recursos culturais mais elaborados de todas as eras com o intuito de permitir a livre e qualificada ação da imaginação.

Mas a tentação de ceder ao discurso mesmerizante dos ideólogos é grande.

Há em todos nós algo que quer se deixar levar ao encontro de uma turba, onde podemos todos dizer a mesma coisa sem precisar pensar no assunto, porque ali somos todos iguais, exceto aqueles que podemos odiar ou perseguir. A cada vez que usamos as palavras, estamos enfrentando essa tendência ou cedendo a ela. Ao enfrentá-la, tomamos partido da genuína e permanente civilização humana.[4]

A verdadeira liberdade das Humanidades Médicas é poder falar como um pobre nordestino do agreste, Fabiano em Vidas Secas de Graciliano Ramos, ou como Mário, médico de A Mulher que Fugiu de Sodoma de José Geraldo Vieira. É poder ser irônico e sutil como Machado de Assis, divertido e culto como Monteiro Lobato ou hiperbólico e veemente como Nelson Rodrigues.

Só quem busca e mergulha na alta cultura pode realmente pensar com qualidade e compreender o próximo com a verdadeira empatia compassiva, tão necessária para a medicina e para a convivência em sociedade, hoje e sempre.

E como buscar a Alta Cultura sem recorrer aos blocos fundamentais, já prescritos há eras? O próprio William Osler já recomendava a mesma leitura aos seus alunos de medicina, assim como recomenda também Northrop Frye:

Se não conhecemos a Bíblia e as histórias centrais da literatura grega e romana, por mais que leiamos livros e frequentemos o teatro, o nosso conhecimento da literatura não cresce, assim como não cresce o nosso conhecimento da matemática se não aprendemos a tabuada da multiplicação. Esbarramos aqui num problema educacional – o que se deve ler e quando.[5]

O Aspecto Conservador das Humanidades Médicas

Utilizarei alguns trechos do conservador Roger Scruton para tratar do aspecto conservador das Humanidades Médicas.


Na natureza tudo tende ao caos, à desorganização. Contudo, há a possibilidade de inserir um elemento regenerador na realidade.

A entropia está sempre crescendo e qualquer organismo, qualquer sistema ou qualquer ordem espontânea irá no longo prazo sofrer a dissolução. No entanto, mesmo se isso for verdade, tal fato não torna o conservadorismo fútil como prática política, assim como não se torna fútil a medicina simplesmente porque no longo prazo todos morreremos, como Keynes sabidamente colocava a questão. Ao invés disso, devemos reconhecer o conciso resumo da filosofia de Lorde Salisbury e aceitarmos que “procrastinar é viver”. O conservadorismo é a política da procrastinação, cujo propósito é manter a existência, por tanto tempo quanto seja possível, da vida e da saúde de um organismo social.

Além do mais, a termodinâmica também nos ensina que a entropia pode indefinidamente ser resistida no nível local, injetando nova energia e excluindo a dissolução (o caos).

Enquanto o socialismo e o liberalismo são inerentemente globais em seus objetivos, o conservadorismo é essencialmente local: uma defesa de um capital social recôndito contra as forças da mudança anárquica.[6]

Fala-se muito em multiculturalismo no ambiente das humanidades e jovens estudantes são treinados dia após dia a exercerem uma crítica destrutiva contra a civilização ocidental e a cultura da própria sociedade como se isso fosse sinal de grande inteligência e capacidade de independência. Como papagaios, destinam as mesmas críticas a autores que nunca foram lidos ou a textos que mal foram compreendidos. É como se todos fossem pequenos Nietzsches com analfabetismo funcional.

Como entender a perspectiva do próximo se alguém não é capaz de entender nem mesmo a civilização em que vive? Se alguém não entende sua comunidade e seu passado, como deseja entender o paciente à sua frente? Como ambiciona entender seus antecedentes, sua biografia? Ou até mesmo o próprio passado?

Essa reconstrução cordial do passado e da cultura é elemento essencial ao esforço de humanização não só em saúde, mas em todas as áreas da sociedade.

Criticar a própria sociedade com bons olhos somente para o que vem de fora é como comparar um Shopping ocidental com uma belíssima mesquita oriental. Por que não comparar o elemento religioso da cultura oriental com uma majestosa catedral gótica em sua plena glória? 

Sobre a postura diante do próximo, a tradição conservadora também tem muito a oferecer em termos de cordialidade e compreensão.

O entendimento conservador da ação política é formulado, portanto, como uma regra em termos de confiança ao invés de empreendimento, de conversação ao invés de comando, de amizade ao invés de solidariedade.[7]

Nesse contexto, como não visualizar uma relação médico-paciente saudável?

Também é típica do conservador uma atitude cautelosa diante da realidade e do inesperado, tão bem demonstrada pelo pensador Hans Jonas em sua obra Princípio Responsabilidade. Há que se temer a capacidade humana diante de certas perspectivas e utilizar de prudência ao avançar.[8]

Um grande avanço social hoje apregoado, se avanço for tomado por modificação somente, é a tentativa de liberar a eutanásia e o abortamento voluntário.

É claro que tais práticas são antiquíssimas, e poder-se-ia muito bem acusá-las de retrógradas ao invés de alardear sua pretensa vanguarda.

Quando o assunto é bioética, modificações no cuidado com a saúde podem anteceder ou sinalizar grandes mutações civilizacionais, como alerta o conservador Sir Roger:

Abolir a lei contra eutanásia poderá trazer benefícios àqueles que sofrem com doenças dolorosas e incuráveis, assim como poderá trazer benefícios aos que cuidam desses pacientes. Mas também irá mudar nossa percepção coletiva acerca da morte. Isso irá diminuir o espanto com o qual é visto o extermínio deliberado do ser humano; irá instilar um hábito calculista onde antes somente os absolutos guiavam nossas condutas; e, de forma geral, isso fará com que seja mais fácil lidar com a morte e que também seja mais fácil providenciá-la.[9]

Ter essa cautela acerca das possíveis mutações de grande porte na cultura de nossa civilização e ter a imaginação necessária para compreender onde isso pode nos levar é algo oferecido pelas Humanidades Médicas.

Excelente literatura está disponível para nos alertar, ou fazer-nos sonhar, a respeito das incríveis possibilidades do ser humano. Do Admirável Mundo Novo de Huxley ao terrível 1984 de Orwell, a riqueza imaginativa ofertada parece inesgotável.

Assim como a eutanásia, muita coisa do que nossa civilização representará depende das escolhas feitas sobre como valorizamos a vida de nossos filhos atuais ou futuros.

Logo, quando as pessoas pressionam para que haja uma reforma na lei concernente ao aborto, de forma a legalizar o abortamento nas três primeiras semanas da gravidez, nenhuma tentativa para alcançar um entendimento consensual acerca de nossos deveres em relação às crianças nos úteros foi feita; nenhuma tentativa foi realizada para verificar qual o impacto da legalização do abortamento durante os três primeiros meses sobre nossas atitudes concernentes a abortamentos posteriores na gravidez; nenhuma tentativa foi feita de verificar as mudanças de longo prazo nas atitudes das pessoas em relação às crianças, atitudes essas induzidas pela prática de livrar-se das mesmas crianças de forma tão fácil antes mesmo de ter a chance de olhá-las nos olhos. Todas as questões profundas, difíceis e importantes foram deixadas de lado.[10]

A falta da consciência dessas delicadas questões pode culminar num dos problemas mais graves para os atuais cuidados médicos: a falta de respeito e valorização em relação ao ser humano.

Para respeitar verdadeiramente, é preciso compreender com compaixão. Para compreender, é necessária imaginação. Para imaginar, é preciso ter experiência de vida e cultura de altíssima qualidade. Para ganhar essa cultura, um dos requisitos primários é o diálogo entre gerações distantes, é a compreensão do passado e de nossa biografia, de muitas biografias.

A crença essencial ao conservadorismo moderno é a crença no contrato Burkeano entre os vivos, os mortos e os ainda não nascidos. E, como Burke afirma, somente aqueles que podem ouvir os mortos são capazes de proteger os não nascidos. A teoria complexa de tradição de Eliot fornece sentido e forma a essa idéia. Pois ele deixa claro que o mais importante legado que as futuras gerações podem herdar de nós é o cultural. A cultura é o depositário de uma experiência que é ao mesmo tempo local e que permeia todos os locais, presente e atemporal, é a experiência de uma comunidade santificada pelo tempo. Só passaremos isso adiante se nós também herdarmos essa cultura. Para isso, deveremos escutar as vozes dos mortos e apreender seu sentido (...)[11]

Considerando esses aspectos, posso afirmar que o projeto adequado de humanização da medicina e das demais áreas da saúde precisa de uma perspectiva conservadora no melhor sentido da expressão.


Hélio Angotti Neto, 15 de junho de 2017.



[1] FRYE, Northrop. A Imaginação Educada. Campinas, SP: Vide Editorial, 2017, p. 68.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem, p. 128.
[4] Ibidem, p. 132.
[5] Ibidem, p. 61.
[6] SCRUTON, Roger. A Political Philosophy. Arguments for Conservatism. London; New Delhi; New York; Sydney: Bloomsbury, 2006, p. ix.
[7] Confiança está associada com Burke, Moser e Gierke; conversação com Oakeshott; amizade com Aristóteles. Ibidem, p. 34.
[8] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaios de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio & Contraponto, 2011.
[9] SCRUTON, Roger. A Political Philosophy. Arguments for Conservatism. London; New Delhi; New York; Sydney: Bloomsbury, 2006, p. 68.
[10] Ibidem, p. 69.
[11] Ibidem, p. 207.