Resenha 21: A tradição da Medicina (Hélio Angotti Neto)
Este livro foi uma das mais gratificantes leituras que fiz em 2017. Desde o seu lançamento, ano passado, eu tive a curiosidade de saber por que o Felipe Sabino resolvera publicar uma obra sobre a tradição médica numa editora mais voltada para escritos teológicos. Foi então que resolvi ler a obra e descobri o porquê!
O autor é Hélio Angotti Neto, um médico oftalmologista, doutor em Ciências Médicas pela USP. Ele é professor e coordenador do curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo; vem desenvolvendo estudos e pesquisas sobre Bioética e áreas afins e criou o SEFAM (Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina), voltando sua atenção para o preparo holístico do médico, com ênfase para a sua formação em Humanidades. Recentemente, organizou o I Seminário Capixaba de Filosofia (20 de maio de 2017, em Vitória – ES), um evento voltado para a análise da Filosofia de Olavo de Carvalho, e palestrou sobre “O Jardim das Aflições e a Responsabilidade Intelectual”. Hélio Angotti Neto é uma das poucas pessoas de grande estatura acadêmica que fala de Olavo de Carvalho abertamente, sem medo de retaliações e coisas do gênero. Eis um dos pontos em comum que possui com Felipe Sabino, editor da Academia Monergista, além de serem presbiterianos e altamente engajados com a literatura erudita. Isto não quer dizer que sejam Olavetes, mas que sabem apreciar, admirar e se beneficiar de mentes privilegiadas como a do professor Olavo de Carvalho.
O objetivo da obra é educar o imaginário e mesmo tratando da tradição médica, levando em conta principalmente o juramento hipocrático, o livro não é voltado meramente para o público médico, mas pode ser de grande valia para outros profissionais da área de saúde, pacientes e, nas palavras do autor, é voltado “para qualquer um que deseja enriquecer sua visão do passado e aprender na prática alguns instrumentos de como interpretar textos antigos que fundaram nossa civilização”. Trata-se de “uma rara oportunidade de realizar uma meditação num único grande fôlego de todas as suas partes e de enriquecer o próprio imaginário com imagens da antiga Grécia e da herança cultural e moral atemporal que herdamos.”[i]
O livro conta com o prefácio de Eduardo Luiz Santos Cabette, autor de Aborto legal e direito de não ser pai, o qual enaltece o labor e a escrita de Hélio Angotti Neto. Ele salienta que a belíssima abordagem do Juramento Hipocrático visa responder os relativistas morais que tentam suprimir a importância do Juramento para os nossos dias (pp. 10,11) e que o autor da presente obra salienta a “urgente necessidade de recuperação dos três grandes pilares culturais (ou raízes) do Ocidente: a moral e a religião judaico-cristã, a filosofia grega e o Direito Romano” (p. 11).
Na Introdução, Hélio Angotti Neto afirma que esta obra está em paralelo com seu livro anterior A Morte da medicina (Campinas: Vide Editorial, 2014), onde tratou como alguns valores contidos no Juramento de Hipócrates foram subvertidos e menosprezados pela medicina vigente. Na obra passada, Hélio Angotti Neto tratou de maneira negativa os pilares do Juramento Hipocrático. Nesta,ele trata de maneira positiva os princípios do Juramento, apresentando a importância da recuperação do imaginário, de aplicar a nossa cultura e geração os princípios basilares da riquíssima tradição do Juramento Hipocrático. A obra é dividida em três livros: no primeiro, ele comenta e faz anotações sobre o Juramento Hipocrático de um aspecto positivo [ quando falo positivo, simplesmente quero dizer que ele apresenta de maneira direta em que consiste a aplicação na prática do Juramento. Quando falo, aspecto negativo, não estou querendo dizer que ele traga alguma depreciação do Juramento, mas que apresenta as deturpações e maneiras errôneas de se exercer a Medicina em contrariedade ao Juramento Hipocrático]; no segundo livro, ele trata de algumas virtudes essenciais a todos os médicos. Por fim, no terceiro livro, ele apresenta sua proposta acadêmica de estudo de Humanidades & Medicina, o SEFAM (Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina).
Quem nunca ouviu falar do Juramento Hipocrático? Os médicos sempre são advertidos, seja por colegas, pacientes, amigos ou parentes: “Doutor, você fez o juramento! Olhe lá, heim!”. Se você não conhece o Juramento Hipocrático, transcrevo-o abaixo:
[1 a] Juro por Apolo médico, Asclépio, Hígia, Panaceia e todos os deuses e deusas, e os tomo por testemunhas que, conforme minha capacidade e discernimento, cumprirei este juramento e compromisso escrito:
[1 b] considerar igual a meus pais aquele que me ensinou esta arte, compartilhar com ele meus recursos e se necessário prover o que lhe faltar; considerar seus filhos meus irmãos, e aos do sexo masculino ensinarei esta arte sem remuneração ou compromisso escrito, se desejarem aprendê-la; compartilhar os preceitos, ensinamentos orais e todas as demais instruções com os meus filhos, os filhos daquele que me ensinou, os discípulos que assumiram compromisso por escrito e prestaram juramento conforme a lei médica, e com ninguém mais;
[2] utilizarei a dieta para benefício dos que sofrem, conforme minha capacidade e discernimento, e além disso repelirei o mal e a injustiça;
[3] não darei, a quem pedir, nenhuma droga mortal, nem recomendarei essa decisão; do mesmo modo, não darei a mulher alguma pessário para abortar;
[4] com pureza e santidade conservarei minha vida e minha arte;
[5] não operarei ninguém que tenha a doença da pedra, mas cederei o lugar aos homens que fazem essa prática;
[6] em quantas casas eu entrar, entrarei para benefício dos que sofrem, evitando toda injustiça voluntária e outra forma de corrupção, e também atos libidinosos no corpo de mulheres e homens, livres ou escravos;
[7] o que vir e ouvir, durante o tratamento, sobre a vida dos homens, sem relação com o tratamento, e que não for necessário divulgar, calarei, considerando tais coisas segredo.
[8] Se cumprir e não violar este juramento, que eu possa desfrutar minha vida e minha arte afamado junto a todos os homens, para sempre; mas se eu o transgredir e não o cumprir, que o contrário aconteça.[ii]
“Exercer a medicina sem a cultura adequada e sem o compromisso com a responsabilidade intelectual é algo temerário.” As primeiras páginas do livro nos saúdam com esta pequena advertência de Hélio Angotti Neto, remetendo à frase de Letamendi: “O médico que só sabe medicina, nem medicina sabe”. É para abalar as estruturas daqueles que se bitolaram no estudo da profissão e que, mesmo sendo grandes profissionais, não conseguem ter uma visão de mundo ampliada pelo estudo das Humanidades. Por outro lado, o médico que só sabe muito o que não é medicina está longe do ideal do exercício profissional. Faz-se aqui o equilíbrio entre o domínio da arte médica e a interação com os escritos clássicos de Humanidades, para criação de um imaginário que habilite o médico a lidar com situações existenciais que transcendam o mero domínio de sua ciência.
Neste contexto, é de fundamental importância observar o valor imaginário, tradicional, moral e literário do Juramento Hipocrático. Porém, muitos criticam o uso de um texto tão antigo que evoca deuses que nem mesmo os cristãos, muçulmanos ou budistas acreditam, quanto mais os ateus! Um destes críticos é o famoso médico Dráuzio Varela e, em certo sentido, a primeira parte deste livro visa refutar o relativismo moral que está por trás do desmerecimento do Juramento.[iii]
Uma coisa que me chamou a atenção dentre os princípios deontológicos da escola hipocrática foi o seguinte: “ter completo do domínio da arte médica.” Quem é suficiente para afirmar isto? A ideia é não se envolver com um exercício medíocre da profissão. É necessário entender a arte médica, dominando o conhecimento anatômico, fisiológico, embriológico, semiológico, patológico, cirúrgico, clínico, pediátrico, obstétrico, preventivo, etc. Os médicos antigos tinham um intenso cuidado de revisar a literatura disponível à época. Hoje, mais que nunca, precisamos estar pelo menos inteirados do mínimo que se pode extrair do Hobbins, Guyton e Hall, Celmo Celeno Porto, Sabiston, Cecil, Harrison, Rezende, Veronesi, Kaplan & Sadock, dos consensos, das atualizações, dos manejos clínicos, dos cursos de atualizações, etc. Este pequeno aforisma me fez repensar a Medicina que eu venho praticando. Lidar com a complexidade da vida exige uma seriedade no estudo que no mínimo beire a superficialidade somática. Isto já está implícito! Quem é médico deve dominar a Medicina. Mas não só! Na prática, esta poderia ser a tese do livro. Para lidar com a Psiquê é preciso muito estudo de Humanidades, Literatura, a fim de conseguir criar um sistema no mínimo viável e de aplicabilidade no mundo real e não em um mundo encapsulado chamado Medicina.
O Juramento certamente aponta para a Mitologia Grega, mas isto não é fator suficiente para excluir a sua utilidade para o século XXI. A Mitologia envolve o imaginário e apesar de ela ter criado “deuses à imagem dos homens”, certamente ela traz grandes insights e percepções para a nossa cultura atual. Por exemplo, “Apolo representa a cura, a razão e a profecia, isto é, o prognóstico, o entendimento do que está por vir na vida do paciente” (p. 50). Hígia representa os bons constumes de higiene e Medicina Preventiva, Panaceia representa a arte de lidar com as ervas e fármacos diversos e Asclépio representa a censura ao desejo desmedido por lucro. Afinal, por que boa parte da população deseja exercer a Medicina? É por causa da benevolência e da assistência que pode ser prestada aos mais necessitados? Não é de hoje que o desejo pelo lucro excessivo assedia os médicos. Observe esta descrição da medicina praticada na antiga Roma:
Em minhas viagens tive que vivenciar diversos atos fraudulentos de médicos, sejam eles relacionados às minhas doenças, sejam às de meus parentes. Alguns médicos vendiam remédios imprestáveis a preços horrendos; outros, por causa da ganância, prestavam-se a tratar condições para as quais não conheciam a cura. De fato, tenho o conhecimento de alguns médicos que agiam prolongando a doença que poderia ser extirpada em poucos dias ou até mesmo horas, com o fim de obter do paciente mais dinheiro por mais tempo, revelando-se mais selvagens que a própria doença. (p. 51)
Vale destacar que apesar desta relação com os deuses nas várias escolas médicas, a medicina grega não era regulamentada pelo Estado. Infelizmente, para muitos médicos e estudiosos, a real condição de melhoria da saúde está no aparelhamento burocrático da profissão, num patrocínio quase exclusivo da Medicina pelo Estado. Para estes, o grande Deus é o Estado. Curiosamente, o SUS já vem demonstrando na prática que o modelo intervencionista estatal aplicado à Medicina é um fracasso total. Não bastasse isto, o PT tentou acabar com a moral dos médicos brasileiros. Hélio Angotti Neto é enfático ao afirmar:
Hoje, até alguns governos maculam a imagem do médico, como ocorreu no Brasil sob o comando do Partido dos Trabalhadores, que quebrou a autoridade moral da classe médica, tradicionalmente importante em nossa sociedade, e jogou os médicos contra as demais classes de profissionais de saúde, irmãos na busca pelo bem dos pacientes que sofrem. (p. 65)
Na verdade, nossa profissão foi achincalhada pelo governo da presidente Dilma Rousseff, que com o Programa Mais Médicos para o Brasil, desprestigiou os médicos brasileiros, enquanto abria vagas para médicos cubanos, sem nenhum cuidado com a avaliação de seus conhecimentos, alocando-os no Brasil, em troca de favores políticos com Cuba. Hélio é cirúrgico em sua descrição:
Ao ver a Medicina sofrer nas mãos de um governo maquiavélico com o da ex-presidente Dilma Rousseff – o do Partido dos Trabalhadores -, capaz de acusar os médicos do Brasil de serem corporativistas mafiosos, de inventarem doenças para lucrar com o tratamento, de não se importarem com os pacientes, de tratarem os doentes de forma inferior à dos cubanos importados pelos programas eleitoreiros governamentais, e de racistas que deixam pacientes negros morrerem, percebo que os políticos de má estirpe continuarão batendo com tranquilidade em tão nobre profissão, que atingiu graus de excelência técnica invejáveis no Brasil. A medicina brasileira continuará difamada com tranquilidade porque continuará a curar, aliviar e auxiliar a restaurar a saúde dos seus detratores, considerados dignos de um bom tratamento por serem humanos. E eles sabem disso e usam essa segurança. É uma guerra assimétrica. (p. 108)
Hélio Angotti Neto pontua bem e faz excelentes aplicações do Juramento Hipocrático para a realidade da Medicina vigente em nosso país. Sobre o sustento dos professores de Medicina, ele afirma:
Hoje não há a obrigação de sustentar seus mestres e obedecê-los como a seus pais, mas o sentimento de pertencer a uma família – a antiga família de Asclépio – sobrevive na camaradagem entre médicos e no respeito profissional. Se não na prática de todos, pelo menos no ideal de muitos. (p. 61)
Sobre o uso da Medicina como benefício ao próximo e senso de sacralidade da profissão, o autor é contundente em afirmar que:
Médicos vão a congressos e compartilham seus achados, médicos atendem pacientes por caridade, e ensinam a nova geração com um senso de dever sagrado presente na manutenção de sua arte. Não são todos os que o fazem e o desserviço de alguns nos faz crer que a cada dia o número dos bons médicos se reduz; mas ouso afirmar que muitos ainda conservam os ideais originários.
É triste ver médicos sem o mínimo de consideração pela pessoa; médicos meramente interessados em mais um caso interessante a ser apresentado em um Congresso; outros já exercem a profissão de maneira descompromissada, de forma negligente, sem perícia e sem prudência. Mas como dá gosto observar um médico que domina sua arte e que a desenvolve com altruísmo e senso de chamado! Eu conheço alguns médicos assim!
Sobre o respeito ao paciente, um extrato da obra é muito oportuno. Pacientes de uma UTI não são bonecos intubados; não são menos “humanos” por estarem inconscientes; a pessoalidade deles é a mesma dos parentes que vêm visita-los. Nas palavras do nosso escritor:
Um exemplo concreto do tratamento de respeito nos dias de hoje pode ser visto em uma UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), onde o paciente em estado de coma profundo deve ser tratado com o mesmo respeito e deferência devidos ao paciente consciente. Ele deve também, por exemplo, ser coberto com o lençol, cuidado singelo com o pudor do paciente. (p. 83)
No capítulo intitulado “Medicina de virtudes”, um suposto etilismo profissional da categoria médica parece depreender-se das palavras do autor, quando afirma:
Ser médico não é direito de todos, jamais. Ser médico é um prêmio que atribui nobres deveres ou responsabilidades. Ele deve ser dado só aos que se mostrem capazes e merecedores, tendo em vista o real objetivo de tudo: beneficiar o ser humano. (p. 96)
Não nos precipitemos em julgar o autor. A ideia aqui é evitar a banalização do acesso e do usufruto da prática médica. Não se trata de elitismo, mas de evitar a ideia de inclusivismo vocacional. Não é tanto que qualquer um pode escolher ser, mas que alguns se descobrirão sendo. É necessário o rigor da tradição de recepção dos conhecimentos restritos aos que adentram uma Faculdade de Medicina. Porém, envolve mais que isso. Visar o ser humano é necessário para não se tornar um mercenário; continuar estudando e se atualizando para a Medicina por baixo não ir nivelando; querem tornar a profissão um grande bolsão de mentecaptos vestidos de jaleco e com um estetoscópio prontos para uma “selfie”. Difícil é requerer excelência, incentivo à pesquisa e rigor metodológico que a boa Medicina preserve.
À medida que vai descortinando o Juramento Hipocrático para nós, Hélio Angotti Neto interage com referências ao Código de Ética Médica e com os escritos do grande teórico da Ética Médica Edmund Pellegrino. Ele demonstra que o grande problema de muitos é que chegam com os pressupostos e motivações errados já na faculdade de Medicina. Se a formação erudita em Humanidades já fizesse parte do aluno do Ensino Médio e se ao longo do Curso de Medicina, os médicos fossem despertados para o estudo das Humanidades aplicadas à Medicina, certamente, far-se-ia valer que:
O médico de bom caráter inevitavelmente amará a arte médica e trabalhará sempre a favor do paciente. Essa é, sem dúvida, a lição mais preciosa e que deve preceder qualquer ensino técnico ou científico ainda nos dias de hoje. (p. 138).
Com o arcabouço do Juramento Hipocrático esmiuçado (mas não esgotado), o livro dá prosseguimento em sua segunda parte, alertando os médicos para o desenvolvimento de virtudes pertinentes à profissão. Tomando como base os estudos de Edmund Pellegrino, o autor elenca algumas dessas virtudes: confiabilidade, compaixão, prudência, justiça, fortitude, temperança, integridade e dignidade médica.
A confiabilidade, por exemplo, pode ser ilustrada por meio de uma pergunta: você acha que o médico deve ocultar um diagnóstico de câncer em estádio avançado ao paciente? Aqui estamos lidando com a confiabilidade do médico e a autonomia do paciente. Observe a resposta de Hélio Angotti Neto:
Negar a realidade ao paciente autônomo significa privá-lo do conhecimento necessário sobre sua vida para que ele programe de forma adequada suas prioridades. Se o diagnóstico e a informação do prognóstico demorarem muito, tempo precioso pode ser perdido, e danos irreversíveis acrescidos à situação já difícil do paciente. (p. 153)
Sobre a compaixão, a ideia básica é “sofrer junto com o paciente”, é colocar-se no lugar dele. É não olhá-lo meramente como uma peça cirúrgica, um caso interessante, uma patologia rara ou uma doença incurável. Não precisa sofrer na pele o mesmo sofrimento do paciente, se não poucos se interessariam pela Oncologia, mas também não se deve ser alheio e indiferente ao sofrimento do indivíduo, tratando-o como “um simples caso de DNV”. É nos mínimos detalhes que se percebe a compaixão: em olhar nos olhos, em ouvir o paciente, etc. Na experiência do autor, ele afirma: “recentemente escutei algo que me deixou triste ao cumprimentar um paciente da rede pública: ‘Doutor, você dá a mão?’” (p. 157). Um simples aperto de mão ou um abraço não lhe diminuirão como indivíduo ou lhe transmitirão doenças (é certo, que ninguém será tão intenso no tratamento afetivo diante de um paciente com Meningite Meningocóccica), mas um mínimo de comunicação demonstra um espírito compassivo. Infelizmente, “os maus exemplos gritam enquanto os bons exemplos sussurram” (p. 157). Continue com seus pequenos sussurros; eles farão bem a muita gente e não serão obscurecidos pela conveniência burocrática e desumana do atendimento feito às pressas no afã de correr para outra fonte empregadora atender outras pessoas com pressa, para poder dar conta de um salário rechonchudo no final do mês (e uma consciência agrilhoada)!
O médico justo buscará conceder a cada um o que lhe é devido (como já dizia Platão em A República). É ter o discernimento de agir de maneira adequada em cada situação. Mas boa parte dos médicos não querem tecer juízos adequados sobre os seus pacientes. Como nos diz o autor:
É muito triste e decadente observar a profissão médica entrar na fase da degeneração conhecida como burocrática – o médico cumpre apenas a obrigação contratual, o papel social, o protocolo ou a peça na engrenagem impessoal que lida com o ser humano de forma mecânica e fria. (p. 164)
Deixo as demais virtudes para sua pesquisa in loco, quando da leitura da obra, mas ainda falarei da fortitude, aquela capacidade de ser resiliente, de não se deixar levar pelos apelos do paciente quanto ao que é melhor para ele (aliás, se o paciente soubesse qual a melhor conduta médica a ser tratada, então ele nem precisaria de uma consulta) ou das entidades em que trabalhos, que quase nos impõem uma conduta padronizada a partir de protocolos, cotas, limites de atendimento e de materiais. Quando não há fortitude, o médico torna-se um burocrata. “Ele está seco e morto, é um cadáver ambulante. Qualquer um lhe dirige, pois, a consciência já não habita nele. Ele tombará na direção que o vento soprar” (p. 169). Que baita chachoalhada, heim!
No último livro, o autor apresenta seu projeto pessoal intitulado SEFAM (Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina) e os frutos derivados desse projeto. Alunos voluntariamente estudam Humanidades Médicas e aprendem a teoria dos quatro discursos aristotélicos (Poética, Retórica, Dialética e Lógica), aplicando-as à Medicina (anamnese, prescrição, pesquisa científica, apresentação de uma temática em congressos, aulas, etc).
O SEFAM vem tendo bom êxito e por meio dele vários eventos, publicações e livros já tem sido alcançados. Antes, eu estudava Medicina e Humanidades isoladamente (no padrão dos dois andares descrito por Francis Schaeffer). Nunca imaginei esta interação entre a Filosofia Aristotélica e a Medicina, intermediada pela teoria dos quatro discursos de Olavo de Carvalho!
A leitura deste livro mudou minha perspectiva de lidar com a Medicina. Volto-me novamente para a prática médica, levando em conta o Juramento Hipocrático em suas nuances mais sutis e em seu aparato universal. Indico a leitura da Tradição da Medicina a todos os colegas médicos. É um daqueles livros, valendo-me do bordão de Jonas Madureira, que você não pode passar dessa para outra sem tê-lo lido. Creio que esta leitura lhe estimulará a ser um melhor médico, posto que equilibra Humanidades e conhecimentos médicos numa boa dose de ética, valor da tradição, apego ao virtuosismo e estímulo à extensão voluntária, despretensiosa e carregada de frutos. A leitura serve para todos aqueles que se identificam com a figura de um médico virtuoso, perito, culto e humano. Que Deus abençoe a vida do Dr. Hélio Angotti Neto. Já aguardando a leitura de A Morte da Medicina e Disbioética Volume I.
[iii] No capítulo 19 do livro I, o autor faz uma contundente réplica ao famoso bioeticista Robert Veatch, o qual à semelhança de Dráuzio Varella não percebe a necessidade de utilizar o Juramento Hipocrático como um modelo para nossa geração de médicos. Hélio Angotti Neto de maneira muito profunda e simples refuta os argumentos relativistas de Veatch.