Humanismo
e Conservação
Serão as Humanidades Médicas um
empreendimento conservador?
Antes
de tentar responder, é preciso refletir sobre os termos e conceitos a serem
utilizados. Tal passo deveria ser básico para qualquer um que queira abrir a
boca para opinar, algo a ser feito preferencialmente após longos estudos e muita reflexão.
A expressão humanismo
é utilizada no sentido de práticas humanas de engajamento na sociedade por meio
da cultura de alta qualidade. Daí se entende que existe uma cultura de alta
qualidade, denominada Alta Cultura, e uma cultura de baixa qualidade, hoje
chamada indiscriminadamente de cultura, sendo que provavelmente jamais seria
chamada de cultura em outros tempos.
O elemento gerador dessa Alta Cultura nas
grandes civilizações, sem dúvida nenhuma, é a religião. Logo, falar de
humanismo não significa falar de empreendimento humanístico secularizado, mas
de empreendimento humanístico de caráter geral, incluindo a perspectiva
religiosa, originadora dos grandes símbolos que alimentam as artes em geral.
Também
é preciso entender o significado das palavras “Conservação”, “Conservador” e
“Conservadorismo”. Talvez seja mais fácil compreender esses termos falando primeiro sobre
aquilo que o conservadorismo não é.
Conservar
não é nutrir um sentimento de apreço ufanista pelo passado distante, denegrindo
tudo o que hoje existe. O nome disso é saudosismo utópico. O conservador
entende que no passado existiram coisas terríveis, e que muito do que hoje
temos é fantástico, belo e bom. Ignorar as conquistas do presente é
inaceitável.
Conservar
também não é nutrir um sentimento de que no futuro teremos um destino perfeito
e paradisíaco aqui nesta terra, no qual todo o mal será exterminado pelo
esforço humano. O nome disso é progressismo utópico. O conservadorismo tampouco é o
inverso do progressismo, este papel cabe ao saudosismo utópico.
Conservar
não é a oposição sistemática à mudança. O nome disso é reacionarismo, uma forma
de estacionar no tempo e evitar progressos ou retrocessos. O Conservador
entende que retroceder e avançar fazem parte da vida.
Conservar
não é uma ideologia, é uma forma de sentimento, de apreço pelo que deu certo e
pelo que é seguro, sem trancar-se à realidade sempre mutável e, ao mesmo tempo,
imutável em certos aspectos.
As
Humanidades Médicas são conservadoras no sentido de que buscam recuperar e
utilizar o que há de melhor no legado cultural da humanidade sem abrir mão dos
aprimoramentos de cada dia. O antigo homem, de milênios anteriores, ainda é em
termos humanísticos o homem de hoje. Possui sentimentos e experiências semelhantes em
moldes novos. E o profissional da saúde deve compreender a essência humana se
deseja ajudar ao próximo.
Apreender
o passado é compreender o próximo de outras eras e de outras culturas, é
humanizar-se.
Embora
muitos liguem o projeto de humanização com base no legado cultural clássico com
a idéia de intolerância ou reacionarismo, devo alertar que essa é uma mentira
deslavada, pura difamação dos incompetentes e ignorantes que prefeririam morrer
a ter que ler mais de vinte livros num ano (o recomendável é mais de cinquenta
livros para quem deseja estudar as Humanidades Médicas).
Outros
dirão que esse projeto de Humanidades Médicas ligadas ao legado da Alta Cultura
pertence ao estudioso da torre de marfim, que se tranca longe do público em
meio a seus livros. Outra mentira sem vergonha. Aos livros soma-se a
experiência com o próximo. Todo profissional “humanizado” é um comunicador, um
ouvinte atento de histórias da vida alheia, um entusiasta apaixonado pela
experiência chamada de vida humana.
Com
base nesses conceitos, afirmo que não existem Humanidades Médicas sem o empenho
conservador corretamente compreendido. Pena que, no Brasil e em boa parte do
mundo, a “novafala orwelliana” tenha transformado o termo conservador em tudo
aquilo que ele realmente não é.
O
paciente idoso, sentindo-se incapaz e sofrido com a aproximação da morte,
ganhará muito mais de um profissional experiente que tenha lido Rei Lear de
Sheakespeare, O Velho e o Mar de Hemingway, A Morte de Ivan Illitch de Tolstói e
A Montanha Mágica de Thomas Mann do que ganharia com um ouvinte de funk carioca
e leitor assíduo de quadrinhos da Marvel. Nada contra os ícones da cultura pop,
mas nem tudo é uma simples questão de gosto, é uma questão de qualidade real e
aplicabilidade.
Literatura e Imaginação Empática
A
imaginação permite olhar para o paciente que veio em busca de auxílio e
enxergar o mundo através de seus olhos. O médico se coloca no lugar do paciente
e, de repente, está com câncer, será pai, encontra-se curado de uma doença
grave ou apresenta um transtorno psiquiátrico. A imaginação é, de fato, um
prodígio. Ela ergue pontes entre diferentes pessoas. Une mundos e enriquece
vidas.
O
médico, o enfermeiro ou o assistente social são capazes, por meio da
experiência, do diálogo e da imaginação, de entrar no mundo alheio e
compreender valores e perspectivas diferentes da sua. Como alguém ousa debater
Bioética e Humanidades Médicas sem ter uma boa experiência de vida e uma larga
intimidade com a cultura?
O
crítico literário canadense, Northrop Frye, oferece em sua coletânea de ensaios
preciosas observações sobre como a literatura enriquece nossa imaginação e
promove a participação positiva e qualificada na sociedade.
Uma das utilidades mais óbvias (de se estudar o mundo da
imaginação), penso eu, é o incentivo à tolerância: na imaginação as nossas
próprias crenças são simples possibilidades, e ainda enxergamos as crenças das
possibilidades alheias. Fanáticos e preconceituosos raramente tentam tirar
algum proveito da arte – estão obcecados demais por suas crenças e ações para
enxergá-las como talvez simples possibilidades.
O que produz a tolerância é o poder do distanciamento
imaginativo, que nos permite tirar as coisas do alcance da ação e da crença.
O
médico que mergulha nas Humanidades vê muitas vidas nas páginas dos livros, nos
lares e nos leitos das enfermarias hospitalares. Atende a um rico burguês ou a
um presidiário escoltado com dedicação e excelência. Sabe que está lá para
servir, não para julgar. Consegue imaginar-se na pele de um santo ou de um
pecador, pois sabe que guarda elementos de ambos em sua alma, nutrida pela vida
e pela Alta Cultura.
As construções da imaginação contam-nos coisas sobre a vida
humana que não poderíamos saber de nenhum outro jeito.
Hoje,
no Brasil, as cadeiras relacionadas às humanidades parecem remar contra a maré milenar da Alta Cultura,
censurando opiniões divergentes, apelando para o autoritarismo acadêmico e para
a espiral do silêncio, proibindo certos nomes e obras, transformando o discurso
erudito numa monótona cacofonia de poucos tons. Pessoas são divididas em
classes ou grupos abstratos enquanto suas identidades, sua individualidade, são
desacreditadas por sociólogos do Gulag.
Nos
consultórios, postos de saúde e hospitais estão pacientes sofridos, ameaçados
em sua integridade, gritando por socorro àqueles que verão um indivíduo, jamais um
número numa pauta ou um objeto numa casuística. Pessoas sofridas não querem
ser, de regra, burgueses, proletários ou revolucionários, eles querem ser a
Dona Maria, o Seu João ou o Arthurzinho.
Como
compreender uma individualidade sem imergir em incontáveis individualidades,
pensamentos e emoções? Tais experiências são providas pela boa formação
humanística, incluindo a boa literatura.
E,
tantas vezes, fica a comunicação impedida ou restrita, pois a carência cultural
omite significados, emudece sofrimentos. O médico precisa compensar a
dificuldade de comunicação de seu paciente por meio do próprio crescimento
cultural e imaginativo.
Ninguém é capaz de manifestar liberdade de expressão a menos
que saiba usar a linguagem, e este conhecimento não é uma dádiva: precisa ser
aprendido e trabalhado.
Não se pode cultivar o discurso para além de certo ponto a
menos que se tenha algo a dizer, e o fundamento do que temos a dizer é a nossa
visão da sociedade.
A
propaganda enganosa que tenta convencer o jovem de que liberdade é abandonar a
“cultura ocidental” nada mais é do que oferecer as correntes espirituais que
subjugarão a juventude, a imaginação e a verdadeira liberdade de seus corações.
As Humanidades Médicas bem aplicadas oferecerão os recursos culturais mais
elaborados de todas as eras com o intuito de permitir a livre e qualificada
ação da imaginação.
Mas a
tentação de ceder ao discurso mesmerizante dos ideólogos é grande.
Há em todos nós algo que quer se deixar levar ao encontro de
uma turba, onde podemos todos dizer a mesma coisa sem precisar pensar no
assunto, porque ali somos todos iguais, exceto aqueles que podemos odiar ou
perseguir. A cada vez que usamos as palavras, estamos enfrentando essa
tendência ou cedendo a ela. Ao enfrentá-la, tomamos partido da genuína e
permanente civilização humana.
A
verdadeira liberdade das Humanidades Médicas é poder falar como um pobre
nordestino do agreste, Fabiano em Vidas Secas de Graciliano Ramos, ou como
Mário, médico de A Mulher que Fugiu de Sodoma de José Geraldo Vieira. É poder
ser irônico e sutil como Machado de Assis, divertido e culto como Monteiro
Lobato ou hiperbólico e veemente como Nelson Rodrigues.
Só
quem busca e mergulha na alta cultura pode realmente pensar com qualidade e
compreender o próximo com a verdadeira empatia compassiva, tão necessária para
a medicina e para a convivência em sociedade, hoje e sempre.
E como
buscar a Alta Cultura sem recorrer aos blocos fundamentais, já prescritos há
eras? O próprio William Osler já recomendava a mesma leitura aos seus alunos de
medicina, assim como recomenda também Northrop Frye:
Se não conhecemos a Bíblia e as histórias centrais da literatura
grega e romana, por mais que leiamos livros e frequentemos o teatro, o nosso
conhecimento da literatura não cresce, assim como não cresce o nosso
conhecimento da matemática se não aprendemos a tabuada da multiplicação.
Esbarramos aqui num problema educacional – o que se deve ler e quando.
O Aspecto Conservador das Humanidades
Médicas
Utilizarei
alguns trechos do conservador Roger Scruton para tratar do aspecto conservador
das Humanidades Médicas.
Na
natureza tudo tende ao caos, à desorganização. Contudo, há a possibilidade de
inserir um elemento regenerador na realidade.
A entropia está sempre crescendo e qualquer organismo,
qualquer sistema ou qualquer ordem espontânea irá no longo prazo sofrer a
dissolução. No entanto, mesmo se isso for verdade, tal fato não torna o
conservadorismo fútil como prática política, assim como não se torna fútil a
medicina simplesmente porque no longo prazo todos morreremos, como Keynes
sabidamente colocava a questão. Ao invés disso, devemos reconhecer o conciso
resumo da filosofia de Lorde Salisbury e aceitarmos que “procrastinar é viver”.
O conservadorismo é a política da procrastinação, cujo propósito é manter a
existência, por tanto tempo quanto seja possível, da vida e da saúde de um
organismo social.
Além do mais, a termodinâmica também nos ensina que a
entropia pode indefinidamente ser resistida no nível local, injetando nova
energia e excluindo a dissolução (o caos).
Enquanto o socialismo e o liberalismo são inerentemente
globais em seus objetivos, o conservadorismo é essencialmente local: uma defesa
de um capital social recôndito contra as forças da mudança anárquica.
Fala-se
muito em multiculturalismo no ambiente das humanidades e jovens estudantes são
treinados dia após dia a exercerem uma crítica destrutiva contra a civilização
ocidental e a cultura da própria sociedade como se isso fosse sinal de grande inteligência e capacidade de
independência. Como papagaios, destinam as mesmas críticas a autores que nunca
foram lidos ou a textos que mal foram compreendidos. É como se todos fossem
pequenos Nietzsches com analfabetismo
funcional.
Como
entender a perspectiva do próximo se alguém não é capaz de entender nem mesmo a
civilização em que vive? Se alguém não entende sua comunidade e seu passado, como
deseja entender o paciente à sua frente? Como ambiciona entender seus
antecedentes, sua biografia? Ou até mesmo o próprio passado?
Essa
reconstrução cordial do passado e da cultura é elemento essencial ao esforço de
humanização não só em saúde, mas em todas as áreas da sociedade.
Criticar a própria sociedade com bons olhos somente para o que vem de fora é como
comparar um Shopping ocidental com uma belíssima mesquita oriental. Por que não
comparar o elemento religioso da cultura oriental com uma majestosa catedral
gótica em sua plena glória?
Sobre
a postura diante do próximo, a tradição conservadora também tem muito a
oferecer em termos de cordialidade e compreensão.
O entendimento conservador da ação política é formulado, portanto,
como uma regra em termos de confiança ao invés de empreendimento, de
conversação ao invés de comando, de amizade ao invés de solidariedade.
Nesse contexto,
como não visualizar uma relação médico-paciente saudável?
Também
é típica do conservador uma atitude cautelosa diante da realidade e do
inesperado, tão bem demonstrada pelo pensador Hans Jonas em sua obra Princípio
Responsabilidade. Há que se temer a capacidade humana diante de certas
perspectivas e utilizar de prudência ao avançar.
Um
grande avanço social hoje apregoado, se avanço for tomado por modificação
somente, é a tentativa de liberar a eutanásia e o abortamento voluntário.
É
claro que tais práticas são antiquíssimas, e poder-se-ia muito bem acusá-las de
retrógradas ao invés de alardear sua pretensa vanguarda.
Quando
o assunto é bioética, modificações no cuidado com a saúde podem anteceder ou
sinalizar grandes mutações civilizacionais, como alerta o
conservador Sir Roger:
Abolir a lei contra eutanásia poderá trazer benefícios
àqueles que sofrem com doenças dolorosas e incuráveis, assim como poderá trazer
benefícios aos que cuidam desses pacientes. Mas também irá mudar nossa
percepção coletiva acerca da morte. Isso irá diminuir o espanto com o qual é
visto o extermínio deliberado do ser humano; irá instilar um hábito calculista
onde antes somente os absolutos guiavam nossas condutas; e, de forma geral,
isso fará com que seja mais fácil lidar com a morte e que também seja mais
fácil providenciá-la.
Ter
essa cautela acerca das possíveis mutações de grande porte na cultura de nossa
civilização e ter a imaginação necessária para compreender onde isso pode nos
levar é algo oferecido pelas Humanidades Médicas.
Excelente
literatura está disponível para nos alertar, ou fazer-nos sonhar, a respeito
das incríveis possibilidades do ser humano. Do Admirável Mundo Novo de Huxley
ao terrível 1984 de Orwell, a riqueza imaginativa ofertada parece inesgotável.
Assim
como a eutanásia, muita coisa do que nossa civilização representará depende das
escolhas feitas sobre como valorizamos a vida de nossos filhos atuais ou
futuros.
Logo, quando as pessoas pressionam para que haja uma reforma
na lei concernente ao aborto, de forma a legalizar o abortamento nas três
primeiras semanas da gravidez, nenhuma tentativa para alcançar um entendimento
consensual acerca de nossos deveres em relação às crianças nos úteros foi
feita; nenhuma tentativa foi realizada para verificar qual o impacto da
legalização do abortamento durante os três primeiros meses sobre nossas
atitudes concernentes a abortamentos posteriores na gravidez; nenhuma tentativa
foi feita de verificar as mudanças de longo prazo nas atitudes das pessoas em
relação às crianças, atitudes essas induzidas pela prática de livrar-se das
mesmas crianças de forma tão fácil antes mesmo de ter a chance de olhá-las nos
olhos. Todas as questões profundas, difíceis e importantes foram deixadas de
lado.
A
falta da consciência dessas delicadas questões pode culminar num dos problemas
mais graves para os atuais cuidados médicos: a falta de respeito e valorização
em relação ao ser humano.
Para
respeitar verdadeiramente, é preciso compreender com compaixão. Para
compreender, é necessária imaginação. Para imaginar, é preciso ter experiência
de vida e cultura de altíssima qualidade. Para ganhar essa cultura, um dos
requisitos primários é o diálogo entre gerações distantes, é a compreensão do
passado e de nossa biografia, de muitas biografias.
A crença essencial ao conservadorismo moderno é a crença no
contrato Burkeano entre os vivos, os mortos e os ainda não nascidos. E, como
Burke afirma, somente aqueles que podem ouvir os mortos são capazes de proteger
os não nascidos. A teoria complexa de tradição de Eliot fornece sentido e forma
a essa idéia. Pois ele deixa claro que o mais importante legado que as futuras
gerações podem herdar de nós é o cultural. A cultura é o depositário de uma
experiência que é ao mesmo tempo local e que permeia todos os locais, presente
e atemporal, é a experiência de uma comunidade santificada pelo tempo. Só passaremos
isso adiante se nós também herdarmos essa cultura. Para isso, deveremos escutar
as vozes dos mortos e apreender seu sentido (...)
Considerando
esses aspectos, posso afirmar que o projeto adequado de humanização da medicina
e das demais áreas da saúde precisa de uma perspectiva conservadora no melhor
sentido da expressão.
Hélio Angotti Neto, 15 de junho de 2017.