RESENHA: RAÍZES DA CULTURA OCIDENTAL
Herman Dooyeweerd
Em seu livro, Herman Dooyeweerd
distingue as quatro fundações de nossa civilização, declarando-as como
incompatíveis entre si. Afirma que tais fundações são pontos fundamentais de
partida sobre o qual se apoiam todas as visões de mundo que caracterizam nossos
tempos.
A primeira dessas fundações é a
pagã, grega e romana. Baseada no dualismo entre o elemento vital e natural e o
elemento cultural e histórico, gerou uma visão de matéria e forma que foi
mesclada à fé cristã pelo catolicismo romano. Segundo Dooyeweerd, essa síntese
católica comprometeu a visão original de Cristo de integralidade da Criação,
sua Queda e sua Redenção.
A segunda fundação é justamente o
cristianismo, baseado não numa abstração ou numa divisão entre forma e matéria,
mas na concretude do ser humano centrado em seu coração ou alma, dentro de um
cosmos descrito em termos de Criação, Queda e Redenção, afetando todos os
aspectos existenciais ligados ao homem.
A terceira fundação é a tentativa
de síntese entre as duas anteriores, movida pela Igreja Católica Apostólica Romana.
A quarta é o secularismo, que absolutiza um dos polos da fundação pagã.
Um conceito importante para
compreender o pensamento de Dooyeweerd é, sem dúvida, o de soberania das
esferas. Para compreender a criação de Deus, o homem não pode absolutizar um de
seus aspectos ou esferas. Não se pode compreender a realidade somente pelo seu
viés histórico ou lógico. Embora cada um desses aspectos possua uma série de
leis internas e uma soberania própria, todas as perspectivas da realidade
manifestam-se de forma concreta e interligada. Aquele que deseja compreender
melhor a criação, deve se esforçar por adquirir uma ampla visão de todas as
esferas e de suas ligações analógicas (que Dooyeweerd chama de antecipações e
retrocipações).
Absolutizar uma das esferas, como
a econômica (a economia dita os rumos da humanidade, ao gosto dos marxistas),
por exemplo, ou a sentimental (tudo é sentimento e o ser humano age por prazer
– hedonismo), é um tipo de idolatria que diminui a inteligência humana e sua
capacidade de interagir como mundo de forma eficaz. Um nome mais conhecido de
tal ato de empobrecimento intelectual é reducionismo.
Diversos autores reconhecem hoje
o problema desse reducionismo e os riscos de se arrancar o ser humano do
contato com a transcendência complexa e concreta. Um dos autores brasileiros
que repete a crítica da absolutização de esferas da realidade, como o tempo e a
matéria (o historicismo e o positivismo), é Olavo de Carvalho em sua obra
magistral “O Jardim das Aflições”.
Embora seja lembrado por suas
críticas ao protestantismo ao falar em ambientes virtuais públicos, Olavo
reconhece em suas aulas de filosofia dedicadas a seus alunos a importância de
Herman Dooyeweerd e Abraham Kuyper, mesmo ao discordar em alguns pontos como,
por exemplo, a crítica que faz a Dooyeweerd em relação à capacidade da absorção
dialética empreendida pela Igreja Católica ao lidar com a cultura pagã.
Para Dooyeweerd, há um
antagonismo (chamado de antinomia) essencial entre as visões de mundo cristã,
secular e pagã, e qualquer sincretismo pode minar irremediavelmente a potência
da cosmovisão cristã, distorcendo a forma pela qual enxergamos a realidade. Olavo
de Carvalho, por outro lado, entende a visão cristã como superior a todas as
outras e capaz de absorvê-las e enriquecer-se dialeticamente, ao invés de
degenerar-se. Mesmo em discordância em relação a alguns aspectos, Olavo de
Carvalho deixa claro em suas aulas no Curso Online de Filosofia que estudantes
sérios deverão passar por Kuyper e Dooyeweerd.
No contexto da soberania das
esferas, uma esfera inferior da realidade é considerada aberta quando permite a
progressão para a próxima. Um exemplo seria a abertura da esfera relacionada às
relações sociais, direcionada para a formação econômica de uma sociedade, a
esfera imediatamente superior. Quando uma dessas esferas inferiores se fecha,
torna-se uma fonte de reducionismo da qual o homem dependerá para interpretar e
viver a realidade. Uma compreensão introdutória das esferas pode ser absorvida
com a leitura da obra de Kalsbeek - Contornos da Filosofia Cristã -, uma
excelente introdução à filosofia de Herman Dooyeweerd.
A esfera pística, relacionada à
fé, é considerada por Dooyeweerd como a mais alta esfera. É justamente a fé que
se encontra no limiar entre o temporal e o atemporal, entre a imanência e a
transcendência. A depender da fé verdadeira, a concepção de mundo será aberta
ou fechada à transcendência.
No capítulo Fé e Cultura,
Dooyeweerd demonstra como a fé se utiliza de todas as esferas anteriores e como
as transcende, exemplificando sua teoria filosófica.
Um dos pontos de sua crítica à
formulação católica romana da fé é direcionada ao pensamento escolástico quando
este identifica a fé com
a crença no conteúdo doutrinário
católico-romano, alegando que a fé era o dom sobrenatural da graça ao
intelecto, por meio do qual o intelecto aceitava as verdades supranaturais da
salvação. Assim, a função da fé se tornou extensão sobrenatural da função
lógica encontrada na natureza humana. A fé consistia numa aceitação puramente
intelectual, mas por meio de uma luz superior que transcendia os limites da
razão natural. A compreensão da natureza única da função da fé dentro do
aspecto limite da realidade temporal havia desaparecido completamente dessa
concepção escolástica.
Embora haja vertentes mais
místicas de aproximação da fé no catolicismo romano de forma geral, assim como
o há no meio protestante e, especialmente, no meio ortodoxo, a Ênfase
escolástica realmente identifica a fé, ou procura abordá-la, dentro da
concepção discursiva lógico-racional.
Os católicos romanos costumam
culpar ao protestantismo pela secularização de nossa civilização alegando a
quebra do poder, da autoridade e da união da Igreja. Dooyeweerd enxergaria o
poder, como aos poucos se manifestou na história, e sua concentração cultural e
religiosa dentro da instituição eclesiástica por meio da autoridade e do
discurso lógico, como um perigoso precedente de reducionismo da esfera pística
e precursor do secularismo exacerbado de nossos dias.
Absorvendo as duas críticas,
tanto a protestante quanto a católica romana, é possível distinguir
colaborações ou participações de ambos os lados na derrocada da cristandade e
na ascensão do secularismo. O protestantismo quebrou a autoridade imanente
deixando um vácuo na esfera do poder por causa da desunião entre os membros da
Igreja. O catolicismo romano reduziu a fé a elementos discursivos racionais e
rompeu a soberania das esferas fechando a esfera superior da fé a elementos
inferiores institucionalizados. São dois polos de ação que poderiam ser
descritos como exageros de ambas as partes, ambos potencialmente complicados e
repletos de possíveis ganhos e falhas.
Assim como fazem muitos críticos
do protestantismo, Dooyeweerd também traça um dos nexos causais responsáveis
pela secularização à obra de Guilherme de Ockham, que separou a natureza da fé
cristã ou graça. Ockham influenciou
sobremaneira Lutero, que renegou a natureza e, por meio dela, a Lei, para
enfatizar a graça sobrenatural. Se a Igreja Católica Romana negava a divisão
entre natureza e graça, considerando aquela como uma via de acesso inferior a
esta, Lutero renega completamente um dos lados dessa visão dualista de mundo,
embora ainda se mantivesse em seu interior ao enunciar a existência dualista da
realidade. A influência mediada por Lutero ainda se faz sentir, de acordo com
Dooyeweerd, em vários teólogos modernos, como Karl Barth.
Na vertente secularista, a
natureza se separa completamente da graça e, cada vez mais, adquire autonomia e
absolutização na visão de mundo. O indivíduo é elevado à estatura de princípio
da sociedade por uns e, por outros, a matéria quantificável pela ciência o faz,
criando vertentes individualistas e liberais ou positivistas. Por outro lado, a
ênfase em elementos formais e não materiais pode agir no ambiente secular por
meio do historicismo, tão em voga nos estudos históricos contemporâneos.
A evolução do pensamento
destituído do aspecto transcendente progride, posteriormente ao racionalismo
liberal e ao positivismo, para o que se denomina romantismo, exaltando o
aspecto comunitário, geográfico e racial ao invés do indivíduo. Compreendemos as
consequências dessa guinada para a exaltação do comunitarismo, do sangue e da
terra ao verificarmos os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial.
Foi justamente essa visão que
organiza e classifica seres humanos em raças, classes ou grupos julgando a
realidade por meio de generalizações abstratas e características pretensamente
representativas, descrita por Max Weber de Tipo-Ideal, que fundamenta as atuais
ciências sociais.
Herman Dooyeweerd aprofunda
conceitos importantes para a compreensão de sua teoria da soberania das esferas
e de como a visão cristã antagoniza as visões pagãs e seculares. Busca os
pressupostos metafísicos que qualificam a visão reformada frente à busca pela
síntese executada pela Igreja Católica Romana e descreve desenvolvimentos
históricos e acadêmicos que podem nos ajudar a compreender a ascensão do
secularismo e como o mundo das idéias contribuiu para o fenômeno antirreligioso
que hoje se nota.
O livro Raízes da Cultura Ocidental é uma leitura interessante para
compreender um pouco mais sobre um dos momentos que marcou mais profundamente
nossa história: a Reforma Protestante. É óbvio que Católicos Romanos
discordarão das observações de Dooyeweerd, assim como protestantes reformados
provavelmente discordarão da síntese católica entre a visão pagã de mundo e a
visão cristã, mas vejo a leitura dessa pequena reunião de artigos como um
aporte necessário para enriquecer a discussão.
Hélio Angotti Neto
03 de outubro de 2017, Colatina - ES