O BÁSICO DA SEMIÓTICA DE JOHN DEELY
Paralelos entre João de Poinsot,
John Deely, Olavo de Carvalho e Xavier Zubiri na busca da filosofia realista
com instrumentos fenomenológicos.
A
leitura do livro introdutório de John Deely é esclarecedora sobre o alcance e
as ambições filosóficas da área denominada Semiótica.[1]
Segundo John Deely, “no cerne da semiótica está a concepção de que toda a
experiência humana, sem exceção, é uma estrutura interpretativa mediada e
sustentada por signos.”
Seguindo uma tradição cujo início é situado em João de
São Tomás, ou João Poinsot,[2]
Deely demonstra como a teoria semiótica ampara uma metodologia capaz de evitar
o solipsismo idealista que infectou a Era Moderna e que muitas vezes a
paralisou em termos intelectuais.
Embora
a modernidade sempre tenha sua cota de filósofos mais realistas, que seguiram
acreditando na capacidade da consciência humana em alcançar o que muitos chamam
de alteridade ou transcendência dos fenômenos, é indiscutível que, até então,
as filosofias de cunho idealista imperaram na Academia após o advento da
modernidade nas figuras de Descartes, Kant, Berkeley e tutti quanti.
Àquele
que busca a filosofia de forma consciente, todas as pegadinhas relativistas e
idealistas mostram-se um tanto pueris, afirmando a incapacidade de alcançar
algo como se os enunciadores de tais incapacidades tivessem alguma nota real
daquilo que negam, pois seria obrigatório que tivessem algum contato com aquilo
que pretendem negar, para que o negassem de fato. Mas a própria existência
dessa negação da capacidade de alcançar a realidade, ou a transcendência dos
signos, desmente a proposta de negar tal capacidade. É como o paradoxo do
relativista que afirma absolutamente “não ser possível chegar a uma verdade
absoluta”.
Tais
charadinhas mentais podem impressionar um adolescente despreparado, mas não
deveriam abundar no ambiente intelectual como o fizeram nos últimos
séculos. Contudo, nem todos caíram no
canto de sereia do relativismo e do idealismo modernos. João Poinsot é
corretamente apontado por John Deely como alguém que poderia ter iniciado uma
verdadeira revolução em seu tempo se recebesse a atenção merecida por suas
elaborações.
Antes
tarde do que nunca. João Poinsot começa a receber agora a atenção que merecera
receber antes. Tal atraso não deveria assustar o leitor, pois em filosofia
muitos autores só terão o devido sucesso e alcançarão a merecida repercussão muitos
séculos após suas mortes. Lembrem do exemplo de Aristóteles!
Assim
como a fenomenologia de Edmund Husserl, há uma expectativa de se retornar ao
real. No caso de Husserl, às coisas mesmas por meio dos fenômenos; no caso de
Deely e da Semiótica, aos signos que nos conduzem aos objetos, ambos reais, um
deles captável, outro transcendente e indiretamente perceptível. Nesse processo
epistemológico de apreensão da coisa em si, é claro que cabe algum relativismo,
pois Deely reconhecer com muita propriedade que “a semiótica é um processo de
revelação, e todo processo de revelação envolve em sua própria natureza a
possibilidade de engano ou traição. Todo método revela algo (...) dependente do
signo.”
A
concepção de João de Poinsot, nas palavras do filósofo brasileiro Olavo de
Carvalho (Aula 401 do Curso Online de Filosofia), distingue duas categorias de
signos que permitem uma reformulação epistemológica: o signo pensamento, capaz
de ser apreendido em sua totalidade e que se caracteriza pela maleabilidade em
relação a quem o pensa, e o signo-parte, que leva aquele que o apreende a inferir
um objeto por trás do signo-parte, o que Deely ressalta ser a transcendência.
Outra característica básica do signo-parte é sua resistência frente a quem o
apreende, o que resulta na sua indisponibilidade para a plena manipulação pelo
pensamento humano. Um signo-parte também apresenta ao homem um círculo de
latência, uma rede de possibilidades virtualmente infinita e ontologicamente
necessária a seu redor.
Traçando
paralelos com a obra de Xavier Zubiri, o signo-parte é como uma “nota” da
realidade.[3]
A
própria atividade filosófica perde completamente a possibilidade de existir se
não aderir a uma forma de realismo epistemológico na aceitação da proposta
hermenêutica e semiótica contemporânea. Tome-se, por exemplo, a filosofia
analítica.
Para
que exista uma verificação de significado ou veracidade de uma proposição, como
a filosofia analítica ambiciona, é necessário existir a capacidade de intuir o
significado por meio do signo-parte. Nas palavras de John Deely: “Para
verificar uma proposição, primeiro é necessário compreendê-la. Porém, se ela
pode ser compreendida independentemente de ser verificada, ela deve possuir
algum outro “significado” que não seja aquele que depende diretamente da
verificação – algum significado, de fato, que torne a verificação possível e
pensável em primeiro lugar.” Talvez esse significado inteligível em potencial e
inerente ao ser esteja fundamentado no que os antigos chamavam de Logos e que a filosofia de Zubiri
apontou como a inteligência presente da realidade.
Deely
também emite um alerta contra as pretensões de certas filosofias reducionistas,
que prometem extirpar o pensamento humano de trejeitos pretensamente supersticiosos,
como a metafísica, pelo menos segundo suas crenças equivocadas. Mal percebem
que formulam uma proposição profundamente metafísica ao negar a metafísica.
“Portanto,
a teoria de verificação, embora tenha sido exibida como método para eliminar da
ciência e da própria filosofia o ‘nonsense’ das preocupações metafísicas, foi
na verdade um método para substituir questões filosóficas por compromissos
ideológicos disfarçados de filosofia. (...) Implementou uma teoria e uma
perspectiva. Neste caso, uma perspectiva dogmática e hostil à tradição
filosófica, incapaz de analisar suas próprias fundações sem tornar-se internamente
inconsistente; uma triste empreitada, de fato.”
“Portanto,
mesmo um método de verificação, como o da dialética, precisa de alguns signos
para negar outros signos. Sua ilegitimidade não repousa sobre os signos
utilizados, mas sim, em negar outros signos; repousa em reconhecer os signos
que levariam o discurso além dos limites arbitrariamente estipulados e que
foram implicitamente utilizados em primeiro lugar para estabelecer o próprio
limite do discurso.”
A
compreensão da imensidão das repercussões da semiótica amparada pelos
fundamentos colhidos em João de Poinsot e pela sua compatibilidade com os
realistas contemporâneos, nos levará a concluir, em acordo com Olavo de
Carvalho, que toda a história das ciências e da filosofia poderia ter sido
diferente se tivessem prestado a devida atenção à obra do tomista português, pois, “o
total de nossa experiência, de sua mais primitiva origem na sensação até às
mais refinadas conquistas da compreensão, é uma rede ou teia de relações entre
signos.” O projeto da Semiótica contemporânea ambiciona, portanto, a superação
do falso dualismo moderno entre idealismo e realismo e a sustentação de toda a rede de significados.
A
própria teoria de Olavo de Carvalho sobre o Círculo de Latência, que acredito
ter sido pensada antes de o filósofo brasileiro acessar a obra de Deely e Poinsot,
de certa forma amplifica e detalha a “fórmula estabelecida por Poinsot: basta
ser um signo virtualmente para significar atualmente”.
O
ancoramento realista e transcendental da Semiótica, na visão de Deely, se
baseia no fato inescapável de que “o signo depende de algo além de si mesmo. É
representativo, porém, apenas de uma forma derivada, com uma capacidade
subordinada.” O signo é nossa ponte com o real zubiriano e com o objeto
conforme Deely.
“Para
ser um signo, é necessário representar algo além de si. Ser um signo é uma
forma de se prender ao outro, ao significado, ao objeto que o signo não é, mas
pelo qual existe e que representa.”
As
aproximações entre Zubiri e Deely também incluem outros aspectos, como o da
estimulidade descrita por Xavier Zubiri, diferenciando os humanos dos animais
pela capacidade de apreender a realidade, no caso dos humanos, e a mera
estimulidade, no caso dos animais. Segundo Deely, falando da zoosemiótica, “animais
utilizam os signos sem tomar consciência de que são signos (...), o que
significa ‘sem a percepção da relação de significação’”.
As
repercussões dessas concepções filosóficas são capazes de atingir praticamente
toda a comunicação humana. A Semiótica, na concepção de John Deely, supera o
conceito de linguagem restrita ao uso de palavras ou signos convencionais.
Aproxima-se da epistemologia e da fenomenologia ao definir linguagem como “o
uso de qualquer forma de signo enquanto envolve o conhecimento ou a percepção de
uma relação de significação.”
A
conclusão do livro Basics of Semiotics
não poderia ser diferente, ao concluir que o homem é, na verdade, um “interpretador
cujas idéias são signos, tendo o universo em sua totalidade como seu objeto.”
Hélio
Angotti Neto
Colatina,
02 de novembro de 2017.
[1]
DEELY, John. Basic of Semiotics.
Bloomington & Indiana: Indiana University Press, 1990. Os trechos entre
aspas deste texto foram todos retirados do livro aqui referenciado.
[2]
POINSOT, John; DEELY, John (Interpretative Arrangement). Tractatus de Signis. The Semiotics of John Poinsot. South Bend,
Indiana: Saint Augustine Press, 2013.
[3]
“Mas a impressão não é somente afecção, mas também alteridade. Em que consiste
a alteridade da impressão como meroestímulo? Na afecção meramente estimúlica,
torna-se presente a nota apreendida, mas como ‘outra’ que a afecção mesma;
torna-se presente sua formalidade própria. Agora, o essencial está em
conceituar corretamente esta formalidade de alteridade do estímulo enquanto
mero estímulo. É o que chamarei de formalidade de estimulidade. Em que
consiste? A nota apreendida como ‘outra’, mas enquanto sua alteridade, consiste
apenas em suscitar determinada resposta, constitui o que chamo de signo. A formalidade
de estimulidade consiste precisamente em formulidade de signitividade.” ZUBIRI,
Xavier. Inteligência e Realidade. São
Paulo: É Realizações, 2011.