sábado, 28 de abril de 2018

A Ética Gnóstica Imanentista de Sánchez Vázquez

A ÉTICA GNÓSTICA IMANENTSTA DE SÁNCHEZ VÁZQUEZ

Leio o livro “Ética”, de Adolfo Sánchez Vázquez, e eis que chego na segunda parte do capítulo IV, na qual o autor fala da moral e da religião. Lá, identifiquei alguns pontos que merecem uma boa análise dialética, por assim dizer.
Desde o começo do livro, o autor deixa bem clara a sua posição. 
Para ele, 
Uma ética científica pressupõe necessariamente uma concepção filosófica imanentista e racionalista do mundo e do homem, na qual se eliminem instâncias ou fatores extramundanos ou super-humanos e irracionais. De acordo com esta visão imanentista e racionalista de mundo, a ética científica é incompatível com qualquer cosmovisão universal e totalizadora que se pretenda colocar acima das ciências positivas ou em contradição com elas.[1]
Pergunto, antes de qualquer avanço, se uma cosmovisão que nega o aspecto transcendental da realidade, que reduz a realidade comprovável ao aspecto positivista somente e que enxerga as ciências positivas como máxima e absoluta autoridade (mesmo que elas mesmas não possam comprovar a própria autoridade do método científico que tanto utilizam) não seria igualmente ou ainda mais universal e totalizadora do que qualquer outra que possa ser colocada em questão.
Também é curioso como o autor, após achatar a realidade humana a seus aspectos imanentes, afirma que só 
É possível falar em comportamento moral somente quando o sujeito que assim se comporta é responsável pelos seus atos, mas isto, por sua vez, envolve o pressuposto de que pôde fazer o que queria fazer, ou seja, de que pôde escolher entre duas ou mais alternativas, e agir de acordo com a decisão tomada.[2]
O autor, assim como muitos outros que negam a possibilidade de existência do transcendente, afirma misteriosamente a liberdade humana a despeito da realidade empobrecida e imanente que tanto prega. Assim como tantos outros, Vázquez não enxerga problema algum, pelo que sua obra deixa transparecer, em afirmar que o ser humano só age moralmente quando pode decidir livremente, e que o mundo é pura imanência positivista.
Dessa indisposição frente à transcendência deriva toda a leitura ressequida que o autor faz da religião e de sua ligação com a moral. Transcendência esta tão bem descrita e defendida por filósofos da estatura de um João Poinsot (João de São Tomás), de um Lorenz Puntel ou de um Mário Ferreira dos Santos.
Segundo Vázquez, a religião deve ser compreendida como um protesto contra a “miséria real”, mesmo que só ofereça a solução para uma vida além desta nossa que vivemos na realidade. Para o autor, a religião se transforma num mero instrumento de dominação da elite, de conformismo, resignação e conservadorismo. Ele comemora as tendências revolucionárias que podem ser observadas nas últimas décadas com a busca pela transformação efetiva do mundo humano.
É claro que a religião cristã protesta contra a maldade, criada pela idolatria humana e pela vontade de se impor moralmente sobre o próprio Deus. Por outro lado, a religião cristã também compreende que tudo o que Deus permite e faz acontecer coopera para o bem de seus filhos. O mundo criado é bom, mesmo que muitos atentem contra o Criador e que toda a Criação sofra pela presença do pecado.
Há que se buscar um equilíbrio entre a contemplação do bem que já existe e a revolta contra a ausência do bem pleno, prometido para a próxima etapa de nossa realidade. Ressaltar a revolta e a pretensão de reformar o mundo é cair novamente no velho e perigosíssimo engodo do gnosticismo. E o pior de tudo, cair no gnosticismo político!
Nada foi tão destrutivo, nada massacrou tantos milhões de pessoas, quanto a política imanentista e gnóstica de nossos dois últimos sofridos séculos. Lênin, Stálin, Mao Dze Dong e tantos outros monstros utópicos que o digam. Suas bocas escancaradas ainda aguardam logo atrás das suas utopias gnósticas sanguinárias, prontas para sorver o sangue das massas idiotizadas pelo sentimentalismo tóxico e pela manipulação de seus mais baixos sentimentos em prol de um futuro imanente de perfeição.
Vázquez lembra da afirmação de Dostoievski: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Logo depois afirma que a moral não necessita de Deus para existir, afirmando como prova o fato de que a moral precede a religião, como “demonstra a própria história da humanidade”. 
Considerando religião no sentido proposto pelo próprio autor, acredito ser esta uma afirmação muito difícil de sustentar. Segundo ele, religião é “a fé ou crença na existência de forças sobrenaturais ou num ser transcendente e sobre-humano, todo poderoso, com o qual o homem está em relação ou está religado”.[3]
A última tese deste ambicioso trecho do livro “Ética” sobre as relações entre Religião e Moral é igualmente – ou ainda mais – ambiciosa, assemelhando-se mais ao tradicional e bem conhecido wishful thinkingdos profetas marxistas.
Se o comportamento moral e o religioso articulam-se ainda em nossos dias, com as particularidades que assinalamos, não se deduz que a moral precise permanecer necessariamente dependente da religião. Se no passado Deus era o fundamento e a garantia da vida moral, hoje são cada dia mais numerosos os que procuram no próprio homem o seu fundamento e a sua garantia.[4]
A moral não depende socialmente da religião, e ninguém em sã consciência afirmaria isso da forma como foi colocada pelo autor. 
Mesmo quem não é religioso apresenta uma vida moral em diferentes gradações. 
O que Dostoievski, assim como escritores e filósofos de todos os tempos e de todas as partes, afirmam claramente é a necessidade ontológica que a moral tem da existência de um parâmetro transcendental, caso contrário recairá no mais puro voluntarismo. 
O autor também nos lembra muito do aspecto de revolta da religião contra a maldade presente no mundo. Curiosamente, cala completamente quando chega a hora de criticar o comunismo, a maior máquina de destruição já inventada pela humanidade, mas critica abertamente o burocratismo, o produtivismo, o individualismo burguês e a aparição de novas formas de alienação.[5]Seu silêncio conformista é ensurdecedor neste aspecto e sugere somente a defesa disfarçada de uma das fés mais equivocadas e malignas de toda nossa civilização.
Talvez porque seja o próprio comunismo uma das maiores contraprovas de seu pensamento. Foi justamente nos sistemas de governos contemporâneos claramente ateus e antirreligiosos que ocorreram as maiores catástrofes da história da humanidade, como o Holodomor, as deportações em massa para os Gulagse a perseguição intelectual assassina dos dissidentes. 
Realmente, como afirma Vázquez, são cada vez mais numerosos os que procuram no próprio homem o seu fundamento moral. Nietzsche enxergou muito bem onde chegaríamos com essa falta de visão.
A tentativa de elogiar o papel reformista da religião na realidade, em prol da criação de uma nova realidade, promove o que Eric Voegelin chamou de imanentização do Eskathón: o rebaixamento das expectativas apocalípticas de perfeição no além para nossa realidade mundana e imanente. Diante de expectativas tão maravilhosas e paradisíacas de perfeição, cria-se uma nova religião de caráter historicista ou positivista capaz de justificar todas as inversões que caracterizam tão bem a mentalidade revolucionária, descrita de forma magistral pelo filósofo Olavo de Carvalho:
1 – A inversão temporal: tudo o que se faz no presente é justificado pelo futuro já garantido nas expectativas apocalípticas dos reformadores de realidades;
2 – A inversão moral: todo o mal que se comete hoje em prol de um bem futuro é desculpável (verdade seja dita, Vázquez repudia esta ideia, mas demonstra falta de visão ao não ligar suas expectativas religiosas às cruéis inversões maquiavélicas que presenciamos hoje);
3 – A inversão sujeito-objeto: um hipotético agressor é apenas uma vítima da sociedade, representada pela sua vítima que pode ser, então, assaltada ou morta em prol da causa.
Eis o perigo do gnosticismo político descrito por Hans Jonas, Eric Voegelin e Nelson Lehmann. 
Se há algo que está mais que comprovado é aquele antigo aviso de Gilbert Keith Chesterton: “Quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer besteira”.

Hélio Angotti Neto
28 de abril de 2018, Colatina – ES.


[1]VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 27.
[2]Ibid., p. 18.
[3]Ibid., p. 89.
[4]Ibid., p. 92.
[5]Ibid., p. 52-53.