Princípio XVI – Benefício Terapêutico e Excelência como princípios
norteadores
XVI
- Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição,
pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente
reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da
execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.
O
médico necessita da liberdade para prescrever o melhor a seu paciente. Mas tal
liberdade de prescrição está submetida às descobertas científicas que
fundamentem as decisões terapêuticas.
Alguns
críticos mais ácidos da ética médica tradicional, como o norte-americano Robert
Veatch, enxergam no Juramento de Hipócrates uma licença para que o médico
afirme que fará o que julgar necessário de forma autoritária e impulsiva quando
dizem que: “conforme minha capacidade e discernimento, cumprirei este juramento
e compromisso escrito.”[1]
Quando
o restante da obra hipocrática é observado, qualquer leitor com um mínimo de
dedicação perceberá todo o rigor que é exigido do médico, que deve entender a
teoria clínica e as explicações de cada fenômeno apreendido da realidade do
paciente. O médico, em nenhum momento da história, sentiu-se livre para tomar
decisões irracionais ou impulsivas. E compreender, nesse trecho do Juramento,
uma desculpa para atitudes inadequadas, ao invés de um compromisso com a
excelência, não parece algo nem remotamente desculpável.
Afirmar
isso não afasta a necessidade de ouvir o paciente e o que se espera em termos
de trato e resultados da ação terapêutica. O que percebo é uma ênfase nos
pontos de conflito e uma indisposição em reconhecer os inúmeros pontos de
convergência entre os padrões hoje tidos como adequados e toda a tradição moral
e ética da medicina.
Um
exemplo de como a falta de um compasso moral pode tornar confusa a
interpretação da tradição médica pode ser vista no seguinte trecho, que
reproduz a problematização feita pelo professor Veatch em seu livro básico
sobre Bioética:
O
dr. Morton Westerman é um ginecologista que vem atuando na área há trinta anos.
Ele vê, em um exame Papanicolau, um desenvolvimento de célula anormal, algo que
tem visto há trinta anos. Nesses casos, sua regra é: quando estiver em dúvida,
faça uma histerectomia. Recentemente, seus colegas de profissão fizeram estudos
que revelam que não há documentação que prove que uma histerectomia cause algum
bem nessas circuntâncias. Mas o dr. Westerman está nessa profissão há muito
tempo, e seu instinto é o de que é melhor para essa mulher fazer uma histerectomia
– é melhor prevenir do que remediar. O Juramento de Hipócrates nos diz que o
médico deve fazer o bem para o paciente de acordo com sua capacidade de
julgamento. Assim, o Juramento está dizendo ao dr. Westerman que, mesmo que
seus colegas discordem de seu julgamento crítico e tenham diversos estudos
empíricos e dados para dar suporte a sua posição, é seu dever moral fazer o que
ele acha ser benéfico. Ele deverá seguir seu próprio julgamento ou o de seus
colegas?[2]
O
caso acima problematizado é um caso de erro médico por imperícia – ao executar
um ato inadequado -, negligência – ao deixar de praticar atualização médica
continuada, uma obrigação nos dias de hoje – e imprudência – ao atuar
clinicamente sem o conhecimento necessário. Uma interpretação justa da tradição
moral médica e, inclusive, da tradição hipocrática, precisa incluir a
compreensão de que os bons médicos não fazem o que querem sem parâmetro algum,
baseados em sua subjetividade impulsiva. Bons médicos devem aprender a teoria
que move a medicina e fazer o melhor que há para ser feito de acordo com
padrões técnicos de excelência. Em Regime I, o autor
hipocrático informa:
II. Defendo
que aquele que aspira tratar de forma adequada a dieta humana deve primeiro
adquirir o conhecimento e o discernimento da natureza do homem em geral –
conhecimento dos seus constituintes primários e discernimento dos componentes
pelos quais tal homem é controlado. Pois se o médico for ignorante da
constituição primária do homem, ele será incapaz de adquirir conhecimento dos
efeitos do regime; e se o médico ignora os fatores que regem o corpo, ele não
será capaz de administrar o tratamento adequado ao paciente. De tais coisas o
médico deve saber, e promover a capacidade possuída individualmente por todas
as comidas e bebidas de nosso regime, ambas as capacidades possuídas por
natureza ou pela manipulação da arte humana.[3]
Que
o médico atue no máximo de suas capacidades seguindo sua consciência, isto é,
seu discernimento, é algo que só pode ser compreendido no contexto de uma
profissão amparada pela beneficência e pela excelência. A criação de um dilema
entre autonomia e beneficência, neste caso, parece ser uma vulgar distração de
outros pontos importantes como a necessidade de conhecimento, a aprendizagem contínua
e o uso das virtudes tradicionais na prática profissional.
Este
princípio também só reforça o entendimento de que a medicina não pode ser
relativista em termos morais. Há uma longa defesa de valores na civilização
chamada “ocidental” que, uma vez enfraquecida, acabará por tornar a expressão
“em benefício do paciente” em algo incompreensível ou completamente inócuo.
No
campo de trabalho em que o médico atua, vários obstáculos se colocam entre a
excelência no tratamento benéfico e a concretização disso na vida do paciente.
No sistema público pessoas morrem na fila ou aguardam cirurgias por meses – ou
anos – enquanto suas doenças ficam mais graves e sua qualidade de vida
deteriora absurdamente. No sistema privado de planos de saúde, médicos são
tolhidos cotidianamente por restrições no número de exames e descontos em seus
ganhos ao ultrapassar cotas e índices “normais”.
Lembro-me
de quando fui informado de que, se persistisse em solicitar exames de custo acima
da média de minha especialidade (oftalmologia), eu teria um desconto no valor
de minha consulta médica por meio do plano de saúde. O termo utilizado foi um
eufemismo para desconto: “você deixará de receber uma consulta bonificada”. O
que mais impressiona é que o colega da diretoria do “plano X” era
oftalmologista, e teria tudo para compreender claramente que minha
subespecialidade – órbita – exige exames de alto custo, como a ressonância
nuclear magnética, que raramente são exigidos por outras áreas da oftalmologia.
Respondi explicando o óbvio, mas sei que se a diretoria insistisse em tal
conduta, poderia muito bem acionar o Conselho Regional de Medicina utilizando o
princípio XVI.
Contudo,
este princípio não afasta a possibilidade de que protocolos baseados em
pesquisas de excelência sejam estabelecidos e fornecidos aos médicos. Mesmo
assim, o médico pode contrariar um protocolo, desde que seja capaz de fornecer
razões suficientes para tal. A imprevisibilidade inerente à condição humana é o
que torna a medicina uma arte, e todo médico sensato sabe que, em cada
consulta, por mais amparado que esteja na ciência de seu tempo e em protocolos
excelentes, terá a oportunidade de conhecer algo inédito, assim como é inédita
cada vida humana.
Quando
se fala de regras ou protocolos gerais, é preciso lembrar de que: “quem cria a
disposição estatutária não tem em mente todas as eventualidades possíveis e
imagináveis”.[4]
O
médico, a instituição na qual trabalha e toda a equipe profissional precisa
compreender que nenhum protocolo é capaz de substituir a inteligência humana.
[1]
JONES, W.H.S. (Tradutor). Op. cit.
[2]
VEATCH, Robert. Bioética 3ª edição. São Paulo: Pearson, 2014, p. 54-55.
[3] Hippocrates, Heracleitus. Nature of Man. Regimen in Health. Humours.
Aphorisms. Regimen 1-3. Dreams. Heracleitus: On the Universe. Translated by W.
H. S. Jones. Loeb Classical Library 150. Cambridge, MA: Harvard University
Press, 1931, p. 226-227. II. Φημὶ
δὲ
δεῖν
τὸν
μέλλοντα
ὀρθῶς
συγγράφειν
περὶ
διαίτης
ἀνθρωπίνης
πρῶτον
μὲν
παντὸς
φύσιν
ἀνθρώπου
γνῶναι
καὶ
διαγνῶναι·
γνῶναι
μὲν
ἀπὸ
τίνων
συνέστηκεν
ἐξ
ἀρχῆς, διαγνῶναι
δὲ
ὑπὸ
τίνων
μερῶν
κεκράτηται·
εἴτε
γὰρ
τὴν
ἐξ
ἀρχῆς
σύστασιν
μὴ
γνώσεται, ἀδύνατος
ἔσται
τὰ
ὑπ᾿
ἐκείνων
γινόμενα
γνῶναι·
εἴτε
μὴ
γνώσεται
τὸ
ἐπικρατέον
ἐν
τῷ
σώματι, οὐχ
ἱκανὸς
ἔσται
τὰ
συμφέροντα
προσενεγκεῖν
τῷ
ἀνθρώπῳ. ταῦτα
μὲν
οὖν
δεῖ
γινώσκειν
τὸν
συγγράφοντα, μετὰ
δὲ
ταῦτα
σίτων
καὶ
ποτῶν
ἁπάντων, οἷσι
διαιτώμεθα, δύναμιν
ἥντινα
ἕκαστα
ἔχει
καὶ
τὴν
κατὰ
φύσιν
καὶ
τὴν
δι᾿
ἀνάγκην
καὶ
τέχνην
ἀνθρωπίνην.
[4] FRANÇA,
Genival Veloso de. Op. cit., 2010, p.
32.