Princípio XX – Saúde não é um produto
XX
- A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza
relação de consumo.
Esse
princípio procura deixar bem claro que a relação médico-paciente não pode ser
entendida como relação comercial, na qual alguém adquire um simples produto.
A
atuação do médico não é prover um fim, mas sim, prover meios para que um fim
possa ser alcançado. O ato médico não pode controlar totalmente os resultados
da prática. Cada paciente é único, e nem toda a ciência do mundo pode prever o
resultado com absoluta certeza e garantia.
Feitas
todas essas observações, deve-se lembrar de que a prática médica é julgada sob
os elementos do Código de Defesa do Consumidor[1].
Neste momento, alguém poderia questionar se não há contradição em dizer que a
relação não é de consumo e o julgamento se dá por um código legal de
consumidores.
Na
verdade, o Código de Defesa do Consumidor abrange as características
profissionais prezadas pela medicina em suas definições, e continuará a servir
como parâmetro enquanto uma lei específica não for elaborada para a prática
médica assim como o foi para a prática dos advogados.
A
relação de consumo que ocorre na medicina é de caráter especial, pois envolve
aspectos claramente não comerciais: angústia, insegurança, medo, esperança e
busca pelo consolo e pela cura. Diz-se consumo porque há prestação de serviços
por um “fornecedor” mediante remuneração.
O
próprio código prevê condições especiais para as profissões liberais, ao
esclarecer em seu artigo 14, no parágrafo 4º, que “a responsabilidade dos
profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa.” Isso
significa que a lei não pode ser acionada simplesmente porque um procedimento
cirúrgico não deu certo, como se fosse uma mercadoria estragada, mas somente
quando houver suspeita de ligação entre o insucesso de um tratamento ou
procedimento e a má prática médica como agente causal do agravo.
Observando
essa relação especial de consumo entre um paciente fragilizado e um
profissional que assume responsabilidade por ajudar mediante contrato – e às
vezes gratuitamente -, deve-se ressaltar situações de potencial conflito na
realidade atual do cuidado com a saúde.
Entre
médicos e pacientes, inúmeros elementos comerciais podem interferir, agindo
como verdadeiros intermediadores comerciais e reduzindo a percepção do ato
médico a um mero produto. O médico é exposto como um simples contato num livro
de convênio, onde o paciente, a la carte,
o escolhe tantas vezes sem o conhecimento pessoal ou a indicação de um amigo. O
paciente já não é paciente do médico Fulano de tal, é paciente do Plano de
Saúde, do Convênio ou do SUS. Sem a relação pessoal estabelecida, os benefícios
especiais do médico enquanto agente terapêutico per se podem ser irremediavelmente suprimidos.
Não
podemos viver de ilusões e sonhar em concretizar uma relação médico-paciente
ideal, que nem no passado era perfeita, mas também não podemos abrir mão dos
altos ideais que mantêm vivo o projeto de uma medicina realmente benéfica. O
médico deve integrar à realidade os altos valores tradicionais da boa medicina
e aprender a adaptar sua relação com o paciente frente aos desafios impostos
pela prática contemporânea. Num contexto em que interesses comerciais podem
interferir a todo o momento, o médico será o principal elemento de humanização,
que qualificará o tratamento dado ao paciente em necessidade.