sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

MEDICINA NÃO É COMÉRCIO - 9º PRINCÍPIO DE CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

IX. Medicina não é comércio




IX - A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio.

Para a boa qualidade do exercício profissional, a medicina deve ser exercida mediante recompensa financeira e pessoal adequada. Essa boa qualidade, adquirida por muitos anos de formação e pelo restante da vida em cursos de atualização, livros e jornadas a eventos mundo afora, atua em prol do paciente que solicita ajuda. Mas para que haja correção ética, a prosperidade financeira deve ser adquirida por meios profissionais adequados.

Cabe ao médico atuar no contexto do método clínico, realizando diagnóstico, orientando acerca do prognóstico e instituindo terapia junto ao paciente. Exames complementares integram esforços diagnósticos e devem ser exercidos e interpretados, preferencialmente, por médicos. Porém, quando se fala de produtos farmacêuticos, próteses e outros elementos que constam em prescrição médica e devem ser vendidos aos pacientes, há a possibilidade de conflito de interesses e de caracterização do exercício da medicina mercantilista.

O Parecer-Consulta 19 de 1985, do Conselho Federal de Medicina, afirma categoricamente que o médico contraria normas éticas e legais ao comercializar artefatos diretamente com o paciente. Também proíbe a sujeição do ato médico a sistemas de consórcio, sorteios, lance ou loterias.[1]

Essa preocupação com a possibilidade de o médico tornar-se um mercador é antiga. O antigo monge e filósofo medieval Raimundo Lúlio já afirmava:

Ó Senhor, fonte de graça e bênçãos de Teu povo! Vemos que os médicos do corpo, ó Senhor, andam bem vestidos e montados em belos cavalos, e juntam riquezas e tesouros graças aos grandes erros que infligem sobre seus pacientes, a quem enganam de todas as formas. Pois alegam saber da doença que desconhecem. Ademais, prolongam a doença, ó Senhor, nos doentes, para que tenham mais lucros. Além disso, dão aos doentes, ó Senhor, xaropes, letovaris e outras coisas, de forma que tenham parte no lucro destinado aos especialistas que produzem aquilo que vendem aos pacientes.[2]

Atualmente, há certas atitudes que comprometem a visão profissional da medicina e a tratam como simples mercadoria, submetendo-a a deduções de acordo com índices de produtividade. Alguns planos de saúde e cooperativas, por exemplo, vigiam seus prestadores de serviço médico e deduzem a remuneração de suas consultas se solicitam exames além de determinada media do grupo, infligindo ao mesmo tempo o presente dispositivo e o anterior, que permite ao médico exercer sua arte sem restrições.

Assim como não se pode restringir o ato médico e destruir sua qualidade com objetivos primariamente mercantis, também não se deve oferecê-lo como prêmio por alguma coisa ou com descontos provenientes de cupons ou incentivos à compra de “outros produtos”.[3]

Muitos se posicionam contra este princípio de não transformar a medicina em um comércio. Afirmam que a busca do médico por uma vida profissional repleta de restrições e dificuldades não deveria ser imposta, e que a relação médico-paciente é um contrato como qualquer outra transação comercial. 

Para o bem da verdade, uma vida profissional vivida com dignidade dentro dos padrões éticos de excelência conforme a visão tradicional de nossa civilização não impõe restrições financeiras ou dificuldades de subsistência. De regra, o médico costuma viver de forma confortável. 

Dizer que o médico é um profissional e que não exerce uma atividade mercantil significa que sua atividade se enquadra em uma categoria especial, digna de certa honra e exigente de uma postura diferenciada por parte do profissional.

No antiquíssimo Juramento de Hipócrates, o médico já afirmava que desfrutaria de sua vida e de sua arte. Entendia também que receberia honra entre os homens pelo cumprimento de sua vocação.

Se cumprir e não violar este juramento, que eu possa desfrutar minha vida e minha arte afamado junto a todos os homens, para sempre; mas se eu o transgredir e não o cumprir, que o contrário aconteça.[4]

O médico deve cumprir sua vocação plena e viver com honra e felicidade para que se concentre realmente no bem de seu paciente, e não com graves problemas financeiros gerados por uma medicina que lhe remunera mal.





[1] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Parecer Consulta 19/1985. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 1985.

[2] RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres essencials II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 347.

[3] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução 1.939 de 2010. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 2010.

[4] RIBEIRO Jr., Wilson A. Juramento. In: CAIRUS, Henrique F., RIBEIRO Jr., Wilson A. Textos Hipocráticos: o Doente, o Médico e a Doença. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005, p. 151-167.