IX. Medicina não é comércio
IX
- A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como
comércio.
Para
a boa qualidade do exercício profissional, a medicina deve ser exercida
mediante recompensa financeira e pessoal adequada. Essa boa qualidade,
adquirida por muitos anos de formação e pelo restante da vida em cursos de
atualização, livros e jornadas a eventos mundo afora, atua em prol do paciente
que solicita ajuda. Mas para que haja correção ética, a prosperidade financeira deve ser adquirida por meios profissionais adequados.
Cabe
ao médico atuar no contexto do método clínico, realizando diagnóstico,
orientando acerca do prognóstico e instituindo terapia junto ao paciente.
Exames complementares integram esforços diagnósticos e devem ser exercidos e
interpretados, preferencialmente, por médicos. Porém, quando se fala de produtos
farmacêuticos, próteses e outros elementos que constam em prescrição médica e devem ser vendidos aos pacientes, há a possibilidade de conflito de interesses e de caracterização do exercício da
medicina mercantilista.
O
Parecer-Consulta 19 de 1985, do Conselho Federal de Medicina, afirma categoricamente
que o médico contraria normas éticas e legais ao comercializar artefatos
diretamente com o paciente. Também proíbe a sujeição do ato médico a sistemas
de consórcio, sorteios, lance ou loterias.[1]
Essa
preocupação com a possibilidade de o médico tornar-se um mercador é antiga. O
antigo monge e filósofo medieval Raimundo Lúlio já afirmava:
Ó
Senhor, fonte de graça e bênçãos de Teu povo! Vemos que os médicos do corpo, ó
Senhor, andam bem vestidos e montados em belos cavalos, e juntam riquezas e
tesouros graças aos grandes erros que infligem sobre seus pacientes, a quem
enganam de todas as formas. Pois alegam saber da doença que desconhecem.
Ademais, prolongam a doença, ó Senhor, nos doentes, para que tenham mais
lucros. Além disso, dão aos doentes, ó Senhor, xaropes, letovaris e outras coisas, de forma que tenham parte no lucro
destinado aos especialistas que produzem aquilo que vendem aos pacientes.[2]
Atualmente,
há certas atitudes que comprometem a visão profissional da medicina e a tratam
como simples mercadoria, submetendo-a a deduções de acordo com índices de
produtividade. Alguns planos de saúde e cooperativas, por exemplo, vigiam seus
prestadores de serviço médico e deduzem a remuneração de suas consultas se
solicitam exames além de determinada media do grupo, infligindo ao mesmo tempo
o presente dispositivo e o anterior, que permite ao médico exercer sua arte sem
restrições.
Assim
como não se pode restringir o ato médico e destruir sua qualidade com objetivos
primariamente mercantis, também não se deve oferecê-lo como prêmio por alguma
coisa ou com descontos provenientes de cupons ou incentivos à compra de “outros
produtos”.[3]
Muitos
se posicionam contra este princípio de não transformar a medicina em um comércio. Afirmam que a busca do médico por uma
vida profissional repleta de restrições e dificuldades não deveria ser imposta, e que a relação médico-paciente é um contrato como qualquer outra transação comercial.
Para o bem da verdade, uma vida profissional vivida com dignidade dentro dos padrões éticos de excelência conforme a visão tradicional de nossa civilização não impõe restrições financeiras ou dificuldades de subsistência. De regra, o médico costuma viver de forma confortável.
Dizer que o médico é um profissional e
que não exerce uma atividade mercantil significa que sua atividade se enquadra em uma categoria especial, digna de certa honra e exigente de uma postura diferenciada por parte do profissional.
No
antiquíssimo Juramento de Hipócrates, o médico já afirmava que desfrutaria de
sua vida e de sua arte. Entendia também que receberia honra entre os homens
pelo cumprimento de sua vocação.
Se
cumprir e não violar este juramento, que eu possa desfrutar minha vida e minha
arte afamado junto a todos os homens, para sempre; mas se eu o transgredir e
não o cumprir, que o contrário aconteça.[4]
O
médico deve cumprir sua vocação plena e viver com honra e felicidade para que
se concentre realmente no bem de seu paciente, e não com graves problemas
financeiros gerados por uma medicina que lhe remunera mal.
[1]
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Parecer
Consulta 19/1985. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 1985.
[2] RAMON LLULL. “Libre
de contemplació”. In: Obres essencials II.
Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 347.
[3] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução 1.939 de 2010. Brasília, DF:
Conselho Federal de Medicina, 2010.
[4] RIBEIRO Jr., Wilson A.
Juramento. In: CAIRUS, Henrique F., RIBEIRO Jr., Wilson A. Textos Hipocráticos: o Doente, o Médico e a Doença. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2005, p. 151-167.