Princípio VII. A Liberdade de Consciência
VII
- O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar
serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje,
excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou
emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
Este
é o princípio que defende a quase autonomia moral do médico. Reconhece que o
profissional não é um autômato, simples prestador de atos desprovido de
moralidade própria e de convicções. Também reconhece que o médico tem a
liberdade de recusar-se a atender a determinados pacientes, dentro do contexto
de que a prática pode ser prejudicada por condições inadequadas de trabalho e
relacionamento.
Uso
a expressão quase autonomia moral porque há limites para o princípio em
questão. Em casos de urgência ou emergência, quando a vida do paciente está em
risco, na falta de outro médico, é obrigação profissional atender ao paciente,
seja ele quem for ou em que condição estiver.
A
última proposição já insere elemento subjetivo demais no princípio ao enunciar
que o médico deve atender ao paciente quando a recusa trouxer danos à sua
saúde. Há necessidade de definir melhor os termos. Se por saúde se entende
completo bem estar físico, psíquico e social do indivíduo e não apenas a
ausência de doenças – uma utópica definição da Organização Mundial da Saúde –
consequentemente haveria de se considerar que todo atendimento ao paciente é
obrigatório sempre, pois qualquer recusa poderia trazer dano psicológico a um
paciente hipersensível.
Por
outro lado, se a última proposição é considerada em relação direta com o
conceito de urgência ou emergência, no qual a falta de atendimento levará a
importante risco de morte ou de perda grave de função física, o princípio
adquire sentido mais preciso.
Nos
modelos de relação entre médico e paciente, há diversas propostas possíveis,
incluindo as três seguintes:
Paternalismo
Forte: o médico comanda a relação e dita ao paciente o que deve ser feito sem
se explicar ou informar adequadamente, tratando o paciente como um ser
desprovido de autonomia. Esta condição é indefensável, embora ocorra por
diversas vezes em relações disfuncionais.
Autonomia
Unilateral do Paciente: também configura relação disfuncional, na qual o
paciente crê estar em condição de exigir do médico qualquer procedimento que
considere desejável, mesmo contra as advertências técnicas do profissional e
contra as melhores evidências científicas. Tal postura despreza o status moral
do médico tanto quanto a anterior despreza o status moral do paciente.
Relação
Deliberativa: é o meio termo desejável, no qual médico e paciente pactuam uma
decisão em comum orientada para o bem do paciente. Dizer isto não é menosprezar
o elemento de perda de autonomia que a doença traz ao paciente, nem remover a
responsabilidade do médico. O que se deseja ressaltar é a autonomia moral de
ambos os lados da relação médico-paciente.
Almejar
o meio termo não resolve todos os problemas. Tome-se o Brasil, por exemplo,
onde há financiamento público da saúde. Na questão do aborto, alguém poderia
afirmar que devia ser liberado. Cada médico que assuma um posicionamento
individual no qual decidirá se atende ou não a casos de abortamento voluntário.
Porém, o problema muitas vezes não está na incompatibilidade entre perspectivas
morais do médico e do paciente; o simples fato de utilizar dinheiro público
para um ato considerado moralmente inaceitável para grande parcela da população
causa repúdio. Mesmo que médico e paciente concordem em realizar um abortamento
ou um homicídio infantil, a utilização de dinheiro público nessa relação
equivale a dizer que pessoas francamente opostas ao ato foram obrigadas a
contribuir e, de acordo com alguns, tornarem-se cúmplices do extermínio de vida
humana.
E
nos países nos quais o abortamento voluntário já é liberado?
Há,
cada vez mais, pressão para supressão da cláusula de objeção de consciência por
parte dos médicos. Diversos bioeticistas defendem que o médico deve dobrar sua
moralidade à moralidade estatal e oferecer todos os serviços de “saúde”
autorizados pelo Estado ao paciente que busca o serviço público. Segundo eles, “num serviço público, de acordo com a norma
técnica, o médico responsável é obrigado a fornecer o abortamento.”[1]
Afirmam também que
Se você é um médico ginecologista e não quer fazer
abortamentos, é como um policial que não usa armas, e deve parar de exercer sua
profissão.[2]
Sua justificativa é que a saúde é um bem social,
praticada somente por meio de concessão estatal. Mas há um non sequitur
nesse encadeamento lógico.
O fato de se trabalhar por meio de concessão
estatal e de se prestar um serviço à comunidade - seja em caráter público, seja
privado - não nos leva à conclusão de que os valores implicados em tal trabalho
devam ser os mesmos da elite ou até mesmo os da massa. Há uma perigosa
submissão dos valores profissionais aos elementos políticos do momento, o que
pode ser a porta de entrada de muitos horrores e sofrimento, como observado nos
terríveis exemplos da medicina nazista e da medicina comunista.
A medicina carrega uma moralidade própria, e
constitui uma comunidade moral, na qual aqueles que professam seus valores devem
defendê-la contra moralidades alienígenas ao projeto médico hipocrático.
Mesmo que a pena de morte, o suicídio assistido, o
homicídio infantil ou o abortamento voluntário sejam instaurados, a consciência
e a integridade moral dos médicos que seguem a linhagem hipocrática devem ser
resguardadas.