Princípio I – Universalidade da Medicina
I
- A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da
coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
Houve
tempo no qual a medicina devotava-se ou restringia-se a determinadas classes ou
grupos da sociedade.
Na
antiga medicina hindu, representada pelo ayurveda,
o médico estava acima de tudo em busca de sua evolução pessoal. Para promover
sua ascese, dentro do sistema de castas da antiguidade oriental, deveria o
médico evitar o contato com a classe dos párias ou Shudras. Posteriormente, com o budismo, o médico tornou-se apto a
entrar em contato próximo com todas as classes e castas.[1]
No
século XX, em modelos repletos de crueldade, outros exemplos de acepção entre
pessoas foram observados na medicina nazista e na comunista. Os nazistas
comprometiam-se com determinada raça, embora o próprio conceito de raça tenha
sido questionado por alguns à época.[2] Já
os comunistas, no próprio juramento, colocam a revolução acima da vida humana,
priorizando a classe que o regime totalitário priorizava.[3]
A
concepção atual de nossa civilização acerca do que é a boa medicina tem suas
raízes na antiquíssima tradição hipocrática e em seu desenvolvimento ao longo
dos séculos, passando pela concepção cristã. Se a discriminação dos pacientes
estava presente em determinadas práticas médicas estranhas ao nosso modelo
médico no passado distante e no século passado, por outro lado, o caráter universalista
já estava arraigado nos primórdios hipocráticos.[4]
No
Juramento Hipocrático, o médico se comprometia a tratar com dignidade igual
pessoas de ambos os sexos, livres ou escravos, uma vez que adentrava o lar
alheio para exercer sua profissão:
(...)
em quantas casas eu entrar, entrarei para benefício dos que sofrem, evitando
toda injustiça voluntária e outra forma de corrupção, e também atos libidinosos
no corpo de mulheres e homens, livres ou escravos.[5]
Com
o advento do cristianismo, as características da fé emergente reforçaram a
idéia de igual dignidade entre humanos, dando alcance universal às tradições
judaicas e acatando os ideais essenciais da medicina hipocrática.[6]
Hoje,
quando falamos de Direitos Humanos Universais, é inegável que a raiz da dignidade
comum do ser humano está ligada à antiga percepção de que no ser humano há algo
de divino e de transcendental, seja da escola pitagórica – segundo alguns,
precursora religiosa do hipocratismo médico[7] -,
seja do judaísmo, ao anunciar que o homem foi feito à imagem e semelhança do
próprio Deus.
Essa
concepção de dignidade universal do ser humano alia-se à percepção de que cada
vida humana é especial per se,
repetida na concepção kantiana de que cada ser humano deve ser tratado como um
fim em si mesmo.
Diante
de tal nobre e elevada concepção do ser humano, a idéia mais perigosa que hoje
ameaça a medicina é a de que seres humanos nada têm de especial.[8]
Frente
à tradição de respeito ao valor e à dignidade da vida humana, pode-se
interpretar melhor esse que é o primeiro princípio do Código de Ética Médica,
assim como podemos apreender as implicações do Código como um todo quando se
dedica o ato médico ao ser humano e à coletividade sem discriminação de nenhuma
natureza.
Quanto
à definição de saúde propalada pela Organização Mundial da Saúde – talvez a
mais citada e acatada -, guarda forte elemento de utopia, sem dúvida, mas tem
seu mérito ao lembrar que a saúde está ligada às partes física, mental e social
do ser humano. Carece de precisão ao utilizar o termo “completo bem-estar” e
mostra-se incompleta ao não incluir diretamente o aspecto espiritual ou
transcendente do ser humano. Porém, é difícil imaginar definição incontestável
de saúde.
Daí
a importância em estabelecer princípios de ação geral e fundamentá-los na
experiência comum de nossa civilização, incluindo suas raízes religiosas ou
seculares e seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Nesse panorama imenso, os
assustadores exemplos da subversão de tais ideais nos mostram as consequências
de esquecer a vocação universalista da medicina e o local especial ocupado pelo
ser humano na prática médica.
Quanto
à especificação do princípio em servir à saúde do ser humano, cabe ressaltar
que alguns bioeticistas acusariam o médico de ser especista. Embora o uso de neologismos esdrúxulos como este seja
algo corrente em nossa sociedade, há que se compreender que a medicina foi
feita para o homem, e que utilizará os animais em prol da saúde humana se
necessário for, incluindo utilização em pesquisa e utilização didática. Ao
dizer isso, é óbvio que se deve compreender a necessidade de utilizar a vida
animal de forma adequada - com aprovação pelo Comitê de Ética em Uso de Animais
(CEUA) -, otimizando ao máximo o benefício e reduzindo ao máximo o uso de vidas
animais e o sofrimento.
Cabe
salientar que a distinção entre pacientes advindos de planos de saúde,
pacientes do sistema público e pacientes advindos da demanda privada, quando
atendidos no mesmo ambiente por escolha do médico, também pode ser vista como
discriminação.
Um
caso recente, no Brasil, demonstra uma curiosa aplicação deste princípio.
Revoltada com a postura extremamente agressiva do Partido dos Trabalhadores em
relação à classe médica, uma pediatra resolveu negar atendimento ao seu pequeno
paciente, filho de um casal ligado ao partido supracitado. Cabe lembrar que o
clima político no Brasil ficou extremamente polarizado e agressivo, despertando
emoções fortes de ambos os lados e, inclusive, agressividade. Também cabe
lembrar que a médica anunciou que não atenderia fora de situação de urgência e
se ofereceu para procurar outro médico que pudesse atender à criança.
Eis
a carta enviada pela médica pediatra:
Bom dia, Maria.[9]
Estou neste instante declinando em caráter irrevogável, da condição de Pediatra
de João.[10] Tu e
teu esposo fazem parte do Partido dos Trabalhadores (ele do PSol) e depois de
todos os acontecimentos da semana e culminando com o de ontem, onde houve
escárnio e deboche do Lula ao vivo e a cores, para todos verem (representante
maior do teu partido), eu estou sem a mínima condição de ser Pediatra do teu
filho. Poderia inventar desculpas, te atender de mau humor, mas prefiro a
HONESTIDADE que sempre pautou minha vida particular e pessoal.
Se quiser posso fazer um breve relatório do
prontuário dele para tu levar a outro pediatra.
Gostaria que não insistisse em marcar consultas
mais.
Estou profundamente abalada, decepcionada e não
posso de forma nenhuma passar por cima dos meus princípios. Porto Alegre tem
muitos pediatras bons. Estarás bem acompanhada
Espero que compreendas.
Do
ponto de vista do Código de Ética Médica, o médico tem o direito de recusar
atendimento. Segundo o Capítulo II, “Direitos dos Médicos”, o profissional pode
se negar a “realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam
contrários aos ditames de sua consciência”.
No
Capítulo V, parte que trata especificamente da relação com pacientes e
familiares, é vedado ao médico, conforme o Art. 36, “abandonar paciente sob
seus cuidados”. Porém cabem algumas exceções:
§
1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o
paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de
renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu
representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo
todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.
§
2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o
médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou
incurável e continuará a assisti-lo ainda que para cuidados paliativos.
Lembro,
não sem um pouco de ironia, que “petismo” não é moléstia crônica ou incurável.
A
exceção mais óbvia – na qual este caso em análise não parece se enquadrar -
estaria no Artigo 33:
Deixar
de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de
urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em
condições de fazê-lo.
Por
outro lado, a família que se sentiu agredida poderia utilizar o próprio Código
de Ética, no Capítulo sobre Direitos Humanos, considerando o seguinte artigo,
além do primeiro princípio, que veda ao médico:
Art.
23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua
dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Todavia,
cabe lembrar que a médica se esquivou de atender ao paciente justamente para
evitar o tratamento que poderia ser encaixado na descrição acima. Avisar
previamente, após julgar as próprias limitações psicológicas em atender alguém,
pode ser considerado um ato meritório e de grande civilidade. Um exemplo
extremo, todavia não impossível, seria o médico que recusa atender ao
estuprador de sua filha, sob o risco de prejudicá-lo.
Vejo
nesta situação uma médica prudente que, em sua prática particular e
personalíssima, recusou de forma responsável o atendimento a um paciente. Não
estava em plantão de urgência e não estava num posto de atendimento do serviço
público. O médico não é um escravo, é um ser humano com sentimentos,
personalidade própria e valores a defender assim como qualquer outro ser humano
digno que coabita a mesma sociedade.
Contudo,
devo ir um pouco além.
Não
julgo de forma alguma o caráter da médica que recusou o atendimento. Não a conheço
e fiz questão de não pesquisar nada sobre ela e sua vida privada justamente com
o intuito de pronunciar-me somente acerca do ato em questão.
Também
não pesquisei nada acerca da vida do casal ligado ao Partido dos Trabalhadores,
e não os julgo. Discerni partindo da perspectiva subjetiva da médica e de sua
percepção bem objetiva de que o atendimento de uma criança poderia ser
prejudicado por seus sentimentos.
Se
partirmos da herança cristã de nosso povo, caberia ao médico ir um pouco além
do mínimo requerido pela Ética. Entro aqui no campo da moral médica
contemporânea, que é justamente aquilo que dá vida e conteúdo à Ética.
Nossa
moralidade médica é cristã e hipocrática. Mesmo quem não acredita em Deus ou em
Cristo, nasceu e cresceu numa sociedade que preza a moralidade de máximas e não
de mínimos. Explico melhor.
Espera-se
mais do que o mínimo de quem é bom (ou pretende ser bom). É a conduta
supererrogatória. E do médico, já uma esperança subjetiva de que vá além mesmo
do Código de Ética.
Não
é uma imposição, mas seria louvável sacrificar-se pessoalmente e buscar o
autocontrole para atender com todo carinho e competência uma criança, inocente
dos problemas e posicionamentos de seus pais.
Palavras
e atos concretizados há cerca de dois mil anos continuam extremamente radicais
e chocantes: orar e amar o “inimigo” (amar é uma conduta bem racional e
intencional no contexto bíblico, sem a ênfase extremamente emotiva do
romantismo moderno), ajudar o desconhecido, pagar o mal com o bem, oferecer a
outra face e perdoar.
Considerando
o desenvolvimento da tradição ética médica, também cabe lembrar a virtude da
equanimidade defendida por William Osler, por meio da qual o médico, ecoando o
antigo apelo filosófico à apatheia
estoica, mantém-se em posse de suas emoções e desenvolve sua prática com o
destacamento necessário para ser eficaz.
[1] JONSEN, Albert. A Short History of Medical Ethics. Oxford, New York:
Oxford University Press, 2000, p. 30-31.
[2] VOEGELIN, Eric. Race and State
(The Collected Works of Eric Voegelin, Volume 2). Columbia: University of
Missouri, 1997. VOEGELIN, Eric. The
History of the Race Idea: From Ray to Carus (The Collected Works of Eric
Voegelin, Volume 3). Columbia: University of Missouri, 1998.
[3] Association of American Physicians and Surgeons. Comparison between
Oath of Hippocrates and Other Oaths. Internet,
http://www.aapsonline.org/ethics/oathcomp.htm
[4] DANTAS, Eduardo; COLTRI,
Marcos. Comentários ao Código de Ética
Médica: Resolução CFM nº 1.917 de setembro de 2009. 2ª Edição atualizada
até julho de 2012. São Paulo: GZ Editora, 2012, p. 11.
[5] Fontes consultadas: (1)
RIBEIRO Jr., Wilson A. Juramento. In: CAIRUS, Henrique F., RIBEIRO Jr., Wilson
A. Textos Hipocráticos: o Doente, o Médico e a Doença. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2005, p. 151-167; (2) JONES, W.H.S. (Tradutor). Hippocrates Volume I (Loeb Classical Library). Cambridge & London:
Harvard University Press, 1923, p.289-302.
[6] JONSEN, Albert. Op. cit.
[7] EDELSTEIN, Ludwig. TEMKIN, Owsei; TEMKIN, C. Lilian (ed). Ancient Medicine: Selected Papers of
Ludwig Edelstein. Baltimore & London: The Johns Hopkins University Press,
1987.
[8] WEIKART, Richard. The Death of Humanity, and the case for life.
Washington, DC: Regnery Faith, 2016. SOMERVILLE, Margaret. Bird on an Ethics Wire. Battles about Values in the Culture Wars.
Montreal: McGill-Queen's University Press, 2015.
[9] Nome fictício.
[10] Nome fictício.